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Responsabilidade tributária de ISS sobre ente público

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07/07/2006 às 00:00
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INTRODUÇÃO.

Questão polêmica, que tem colocado em lados opostos diferentes entes públicos, tem sido a imposição de regras de responsabilidade/substituição tributária entre si, especialmente no que tange ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).

Diversos municípios exigem que órgãos da administração pública, federais ou estaduais, retenham o valor do ISS incidente sobre os serviços que lhes sejam prestados e o repasse a municipalidade. No entanto, em algumas situações, usando a imunidade recíproca como principal argumento, há quem defenda que estes órgãos devem se recusar a assumir tal encargo, assim como a pagar a multa imposta em função de tal omissão. Instaura-se, então, um autêntico conflito, em que, verdade seja dita, sofre a imensa maioria de municípios, a qual se encontra despojada do poder econômico que Estados e União detêm.

Deixando de lado a diferenciação teórica entre responsabilidade e substituição tributária, no presente trabalho vamos tratar a questão como se uma só fosse, visto que, desta forma, a exposição do assunto ficará facilitada, sem causar qualquer prejuízo a elucidação da controvérsia exposta.


ARGUMENTOS CONTRÁRIOS.

Os que se opõem à idéia de responsabilidade tributária imputada a órgãos da administração pública e à conseqüente aplicabilidade de multas pelo seu inadimplemento, usam, em suma, dos seguintes argumentos:

- uma interpretação sistemática do instituto da imunidade recíproca "parece levar, inevitavelmente, à conclusão de que, se União, Estados, Distrito Federal e Municípios estão impedidos de usarem o seu poder constitucional tributante para colocarem os demais entes políticos no pólo passivo da relação tributária, como contribuinte originário, não poderão fazê-lo, também, pelo atalho da substituição tributária ou da responsabilidade tributária" [01];

- "Nem a União, nem os Estados, nem o Distrito Federal, nem os Municípios, podem ser tidos, no contexto da legislação dos tributos que incidam sobre o patrimônio, a renda e os serviços, como sujeitos passivos da relação tributária, ou como estando vinculados aos respectivos fatos geradores" [02];

- "não existe norma constitucional que permita venha a ser afastada ou restringida a imunidade recíproca, pelo subterfúgio da substituição tributária de contribuintes pelos entes políticos protegidos por aquela imunidade, sendo, assim frontalmente contrários à Constituição qualquer lei ou ato que vise impor essa condição aos referidos entes políticos" [03];

- face o disposto nos arts. 157, I, e 158, I, da Constituição da República Federativa do Brasil (CF), que tratam do imposto de renda retido na fonte por entes políticos beneficiários da imunidade recíproca, "a norma legal não pretende equiparar essa atribuição/responsabilidade de reter e recolher o tributo à substituição legal tributária de que tratam o art. 128, do CTN, e o art. 150, § 7º, da CF" [04];

- "a norma legal que institua, para determinadas operações ou atos tributados, a figura do substituto legal tributário ou do responsável tributário em caráter solidário ou supletivo, opera, em relação àqueles entes políticos, detentores de imunidade tributária recíproca, apenas como norma de responsabilidade administrativa dos respectivos servidores, ordenadores ou processadores de pagamentos" [05];

- é impossível a imposição de multa entre pessoa jurídicas de direito público, dado um desnivelamento de planos revelador da supremacia jurídica de uma das partes em relação à outra, conforme assim se pronunciou Celso Antônio Bandeira de Mello, citado em Parecer da Consultoria Jurídica da Procuradoria Geral do Instituto Nacional de Seguro Social [06] nº 24/97, in verbis:

"Multa no campo do Direito Público, é sanção de ordem pecuniária cabível quando prevista em lei, imposta pelo Poder Público aos que descumprem deveres para com ele. Seu fundamento, obviamente é o imperium do Estado, é a supremacia, sobre os que lhe estão sujeitos, assim como seu pressuposto é a inadimplência de um dever.

(...) À falta de um estado de sujeição, característico de situação de inferioridade, não há que pensar em submissão ao ato de império traduzido na multa. Só quem se encontra em posição subalterna, própria de súdito, pode ser colhido por uma tão relevante manifestação de autoridade.

Daí, ser rematado dislate, data venia, admitir-se a hipótese de que uma pessoa meramente administrativa possa onerar com multas uma entidade política, de dignidade constitucional, como o município.

(...) Se a própria tributação recíproca dos entes públicos, através de impostos, é vedada pela Constituição (art. 19, nº III, a), com maior razão o é a imposição de multa. Nem União, nem Estados, nem Municípios podem reciprocamente se multar. Que dizer, então de uma autarquia multar um município? Uma simples ramificação administrativa, desnutrida de qualquer poder político, exercer imperium sobre entidade de existência constitucional necessária é hipótese que agride os mais rudimentares princípios de Direito."

As teses acima expostas também ecoam na jurisprudência, haja vista o teor das seguintes ementas:

EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL - SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA - IMUNIDADE RECÍPROCA - ART. 150, VI, ''A'', DA CF/88 - INTERPRETAÇÃO AMPLA - GARANTIA DA FEDERAÇÃO - RESPONSABILIDADE DA UNIÃO PELO PAGAMENTO DE ISS POR SERVIÇO PRESTADO POR TERCEIRO - INADMISSIBILIDADE - 1. A imunidade constitui-se em caso de não-incidência constitucionalmente qualificada, ou seja, o legislador constituinte coloca fora de órbita de atuação do legislador ordinário a possibilidade de tributação sobre a área em que se encontra o contribuinte desonerado. Razão pela qual o instituto da imunidade, ao contrário das demais formas desonerativas, reclama interpretação ampla, suficiente a lhe dar eficácia condizente com seu atributo de seara infensa ao rigor fiscal. Ensinamentos da doutrina. 2. A imunidade tributária recíproca consagrada pelas sucessivas Constituições republicanas brasileiras representa um fator indispensável à preservação institucional das próprias unidades integrantes da Federação (Celso de Mello, ADIN 939). 3. Inviável o intuito do Município de, por via transversa, transpor a União para a condição de sujeito passivo de tributo que o Legislador Constituinte determinou expressamente não fosse a mesma sujeita. É defeso aos entes políticos (União, Estados e Municípios), dissimuladamente, criar forma de imposição tributária, ainda que por meio de Lei, de forma a colocar no pólo passivo da relação obrigacional tributária entes, que, por disposição constitucional imunizante, estão fora do âmbito da competência impositiva. Precedentes desta Corte. (TRF 4ª R. - AC 2001.72.00.003049-0 - 1ª T. - Relª Desª Fed. Maria Lúcia Luz Leiria - DJU 29.06.2005 - p. 500) [07]

IMUNIDADE RECÍPROCA - SUBSTITUTO TRIBUTÁRIO - SUJEIÇÃO PASSIVA - RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA - ISS DEVIDO POR SERVIÇOS DE TERCEIROS - 1. A imunidade tributária prevista no art. 150, VI, a, da CF/88 impede que os Entes Federados coloquem uns aos outros, bem como suas autarquias, fundações e empresas públicas que prestem serviço de natureza emimentemente estatal, no pólo passivo de obrigação tributária; 2. O reconhecimento da imunidade recíproca, contudo, não dispensa o ente imune do cumprimento de obrigações acessórias, da sujeição à fiscalização tributária, mas não o obriga ao pagamento do quantum que não foi recolhido pelo prestador de serviços. (TRF 4ª R. - AC 2001.72.00.006826-2 - SC - 1ª T. - Relª Desª Fed. Maria Lúcia Luz Leiria - DOU 30.06.2004 - p. 600)


O QUE DIZ A LEI.

A Constituição Federal, em seu art. 146, atribuiu à lei complementar a missão de dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária, regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária. Nesta função, temos a Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966, o Código Tributário Nacional (CTN), o qual, em seus artigos 9º, 121 e 128, assim dispõe:

Art. 9°. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

IV - cobrar imposto sobre:

a)o patrimônio, a renda ou os serviços uns dos outros;

(...)

§ 1° O disposto no inciso IV não exclui a atribuição, por lei, às entidades nele referidas, da condição de responsáveis pelos tributos que lhes caiba reter na fonte, e não as dispensa da prática de atos, previstos em lei, assecuratórios do cumprimento de obrigações tributárias por terceiros.

§ 2° O disposto na alínea a do inciso IV aplica-se, exclusivamente, aos serviços próprios das pessoas jurídicas de direito público a que se refere este artigo, e inerentes aos seus objetivos.

(...)

Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo ou penalidade pecuniária.

Parágrafo Único - O sujeito passivo da obrigação principal, diz-se:

I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;

II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa na legislação tributária.

(...)

Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.

(sem grifo no original)

Ratificando o que já era permitido pelo CTN, a Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003, que atualmente define o ISS, estabelece, em seu art. 6º:

Art. 6º Os Municípios e o Distrito Federal, mediante lei, poderão atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, inclusive no que se refere à multa e aos acréscimos legais.

(...)

§ 2º Sem prejuízo do disposto no caput e no § 1º deste artigo, são responsáveis:

(...)

II – a pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária dos serviços descritos nos subitens 3.05, 7.02, 7.04, 7.05, 7.09, 7.10, 7.12, 7.14, 7.15, 7.16, 7.17, 7.19, 11.02, 17.05 e 17.10 da lista anexa.

(sem grifo no original)

Ora, diante dos dispositivos legais citados, fica evidente a responsabilidade tributária da pessoa jurídica de direito público quando a lei assim dispuser. Pregar o oposto é chocar-se ao que a legislação complementar claramente regula, através do CTN, art. 9º, §§ 1º e 2º, e da LC 116/2003, art. 6º, § 2º, II, os quais, frisa-se, encontram-se plenamente em vigor, não tendo sido objeto de qualquer declaração de inconstitucionalidade.


A CONSTITUCIONALIDADE.

Visto que a legislação infraconstitucional permite a imposição da responsabilidade tributária ao ente público, vamos à análise de sua constitucionalidade. A Constituição Federal assim dispôs sobre a tão citada imunidade recíproca:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

VI - instituir impostos sobre:

a)patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

(...)

§ 2.º A vedação do inciso VI, a, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo poder público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.

§ 3.º As vedações do inciso VI, a, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exoneram o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.

Sobre o conceito de "patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros", válido o ensinamento de Aliomar Baleeiro, citado por Sacha Calmon [08]:

Constituem o patrimônio todos os bens ou todas as coisas vinculadas à propriedade pública e integrantes do serviço público, móveis ou imóveis, corpóreas ou não, inclusive complexo de coisas, como uma empresa, universitas rerum.

(...)

Rendas não são apenas os tributos, mas também os preços públicos que possam provir do exercício de suas atribuições, de venda de seus bens e utilização de seus serviços.

(...)

Serviços são os públicos, segundo a noção que deles dá o direito administrativo.

Sendo o ISS um imposto sobre a prestação de serviços, ele só deixará de existir, sob o manto da imunidade recíproca, se tratar-se de um serviço prestado pelo ente público e na condição de não estar relacionado à "exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário". Portanto, fica claro que a imunidade recíproca não tem qualquer relação com o serviço tomado por uma pessoa jurídica de direito público e com o imposto a ele inerente.

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De outra forma não poderia ser, pois o imposto cobrado sobre o serviço prestado ao ente público, não mutila o patrimônio deste, mas sim do prestador do serviço, o qual é o contribuinte original do tributo, é o titular da disponibilidade econômica ou jurídica da renda; tanto é, que sua retenção indevida constitui crime de apropriação indébita, um enriquecimento sem causa da parte de quem retém.

Assim, o dever de reter o imposto, quando da efetivação do pagamento, e posteriormente recolhê-lo aos cofres públicos, apenas objetiva conferir maior eficácia e segurança à fiscalização e arrecadação tributária, de modo a assegurar o cumprimento de obrigações tributárias referidas à capacidade contributiva de terceiros, em nada agredindo o regime federativo da Nação, razão de ser da imunidade recíproca. Se admitirmos o oposto, repelindo a figura da retenção, aí sim estaremos pondo a Federação em risco, pois, por certo, haverá municípios cuja sobrevivência financeira será precária em função de não terem como dispor de outros instrumentos de arrecadação tão eficazes. Ademais, sem a retenção, como arrecadar o imposto incidente sobre serviços cujo tributo é devido no local em que são prestados, mas que o respectivo prestador esteja localizado em outro município ou até mesmo em outro País?

Data vênia às decisões do TRF inicialmente citadas, em que posicionou-se contra a "responsabilidade da União pelo pagamento de ISS por serviço prestado por terceiro", este próprio Tribunal parece ser contraditório quando a situação se inverte, na qual o município torna-se o sujeito passivo por tributo federal:

TRIBUTÁRIO - INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA - ART. 31, LEI Nº 8.212/91 - AUTONOMIA MUNICIPAL - 1. Não se verifica a nulidade da sentença face a não intervenção do Ministério Público, pois não é a simples presença da entidade que impõe a intervenção, cabendo ao juiz examinar a existência de interesse, pela natureza da lide ou qualidade da parte. 2. Excetuando-se as hipóteses de imunidade recíproca previstas no art. 150, inciso VI da CF/88, o Município deve receber o tratamento de contribuinte, não podendo ser utilizada a autonomia administrativa para se eximir da exigência fiscal. 3. Conforme o disposto no art. 31 da Lei nº 8.212/91 (sem as alterações da Lei nº 9.711/98) o contratante de quaisquer serviços executados mediante cessão de mão-de-obra, inclusive em regime de trabalho temporário, responde solidariamente com o executor pelas obrigações para com a Seguridade Social. 4. Havendo previsão legal para a exigência da obrigação previdenciária (art. 31 Lei nº 8.212/91), não há que se aplicar o disposto no art. 71 da Lei nº 8.666/93 que não possui efeitos sobre a relação jurídico-tributária, não define o fato gerador e nem o sujeito da obrigação tributária. 5. Apelação improvida. (TRF 4ª R. - AC 2000.72.06.000216-0 - SC - 1ª T. - Relª Juíza Maria Isabel Pezzi Klein - DJU 11.07.2001 - p. 166) [09]

(sem grifo no original)

Entretanto, há quem queira aplicar uma "interpretação ampla" à regra imunizante, de modo a alcançar as despesas do ente público, seja adquirindo serviços ou produtos. O Supremo Tribunal Federal (STF) demonstra rechaçar essa linha de raciocínio, pois entende que "as normas constitucionais concessivas de benefícios devem ser interpretadas restritivamente" [10] e, em situação semelhante, editou Súmula que bem evidencia esse entendimento:

Súmula n° 591

A imunidade ou a isenção tributária do comprador não se estende ao produtor, contribuinte do imposto sobre produtos industrializados.

No mais, se não fosse possível imputar a figura da responsabilidade tributária sobre um ente da Federação, que necessidade teria a Constituição em determinar um destino diferenciado à determinadas hipóteses de imposto de renda incidente na fonte retido por Estados, Distrito Federal e Municípios (CF, arts. 157, I, e 158, I)?

Logo, a luz dos fatos, não há que ter dúvidas sobre a constitucionalidade do CTN, art. 9º, §§ 1º e 2º, e da LC 116/2003, art. 6º, § 2º, II, que permitem a atribuição de responsabilidade tributária aos entes imunes.


A IMPOSIÇÃO DE MULTAS.

Admitida a constitucionalidade da sujeição passiva em questão, nos deparamos com outra indagação. Falhando o ente público em seu dever de responsável tributário, cabe a imposição de multa e mora sobre ele?

Como vimos inicialmente, os que defendem que não cabe a imposição de multa entre pessoas de direito público alegam pela inexistência do poder de polícia, pois "À falta de um estado de sujeição, característico de situação de inferioridade, não há que pensar em submissão ao ato de império traduzido na multa".

Contudo, o Supremo Tribunal Federal, já esclareceu a questão em sentido oposto, ou seja, que as pessoas jurídicas de direito público não se acham imunes à imposição de multas, além de juros e outras cominações legais ( Acórdão nos Recursos Extraordinários ns. 65.806-RJ - 2ª Turma, in RTJ - 55-438; 70.089-SP - 2ª Turma, in RTJ-58-479; 75.064-SP - 2ª Turma in RTJ-66-274; 75.062-ES - 2ª Turma in RTJ-67-816; 75.224-MG - 2ª Turma, in RTJ-67-229).

Esta reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem um de seus melhores momentos no voto do Ministro Carlos Thompson Flores, no RE - 65.806/RJ:

"Aos argumentos invocados pelo eminente Relator permito-me acrescentar outro. É que, a Municipalidade fazendo o desconto como o faz, não opera no âmbito da Pessoa Jurídica de Direito Público, mas, como empregadora, apenas, e como tal torna-se depositária somente das importâncias. Não dando o destino dos valores nos momentos próprios, fixados em lei, sujeita-se como tal, como empregadora, às conseqüências, as sanções pela mesma lei atribuídas."

Como bem observou o Consultor da União, Sr. Galba Velloso, em Parecer aprovado pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República em 12 de julho de 2004 [11]:

Note-se que o Ministro Thompson Flores acrescentou argumento àqueles expendidos pelo relator - de que não há imunidade para pessoas jurídicas de direito público - sem deles dissentir. A esse acréscimo convém aditar, explicitando o que está implícito, que além de empregadores serem tratados igualmente, infratores também devem sê-lo, infratores de qualquer legislação, sob pena de discriminação em favor da impunidade. Pessoas jurídicas de direito público não podem, por exemplo, violar leis ambientais e exigir inação dos órgãos especializados.

(...)

A decisão do Supremo Tribunal Federal, àquela época, está de acordo com a atual Constituição, na qual nada existe que impeça a aplicação de multas a pessoas jurídicas de direito público - ao contrário, os princípios que consagra impedem, isto sim, o estabelecimento de exceções.

Pertinente ainda o voto do Sr. Ministro Adauto Lúcio Cardoso, Relator, no RE 65.806 - RJ, aprovado pelo Pretório Excelso e acorde com as demais decisões citadas, no sentido de caber a multa:

Não há imunidade alguma das pessoas jurídicas de direito público, morosas no pagamento de seus débitos, em relação aos juros e multas em que incorrem e são condenadas.

Também o Tribunal de Contas da União tende a posicionar-se na linha do Supremo Tribunal Federal, sendo relevantes os fundamentos da Decisão TCU nº 588/2002 - Plenário, dos quais transcrevemos o seguinte trecho:

62. Entendo que a atribuição de prerrogativas e privilégios extensivos e imotivados aos órgãos e entidades da Administração Pública não é coerente com a idéia de um Estado Democrático de Direito.

63. Pretender que a Administração Publica passe a deter prerrogativas em todas as relações que estabelece com os cidadãos, pessoas físicas ou jurídicas, é negar que essa mesma Administração foi concebida para a satisfação do interesse público. E não há interesse público em atribuir a órgãos e entidades da Administração a faculdade de pagar contas de serviços públicos com atraso, sem multa moratória. Se isso ocorre, ferem-se os princípios da isonomia e da moralidade, fundamentais em nosso sistema jurídico.

Acrescente-se que pela decisão nº 537/99 - Plenário, TC 004553/98, a Corte de Contas, tratando de questão do mesmo gênero, embora não idêntica, propôs à Comissão de Jurisprudência a revisão da Súmula 226 (que considera indevida a despesa decorrente de multas moratórias aplicadas a pessoas jurídicas de direito público, salvo quando existir norma legal autorizativa), pronunciando-se através da seguinte ementa:

Consulta formulada pelo Ministério da Aeronáutica. Legalidade da cobrança de multa moratória por concessionárias de serviços de energia elétrica em caso de atraso no pagamento. Conhecimento. Legalidade da cobrança. Comunicação. Arquivamento. Remessa de cópia à Comissão de Jurisprudência. Entendimento diverso do contido na Súmula 226 do TCU.

Até a ilustre magistrada do TRF, Desª Fed. Maria Lúcia Luz Leiria, da qual transcrevemos decisões que demonstram sua inclinação à tese de que a imunidade recíproca deva ter uma interpretação ampla, expôs que é cabível a multa sobre ente público:

EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE LEGISLAÇÃO MUNICIPAL. AUTARQUIA PREVIDENCIÁRIA. IMUNIDADE RECÍPROCA. DESCABIMENTO. É sabido que a imunidade recíproca dos entes políticos, prevista no art. 150, VI, ''a'' e extensível às autarquias por força do § 2º do mesmo artigo, refere-se a tributos, mais precisamente a impostos. Por seu turno, "tributo", gênero do qual os impostos constituem uma de suas espécies, tem como definição "toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada" (art. 3º do CTN). Ou seja, a imunidade tributária recíproca prevista constitucionalmente longe está de abranger as multas, as quais constituem sanção por ato ilícito, que não se enquadram no conceito de tributo. [12]

(sem grifo no original)

Assim, cabe novamente citar o Sr. Galba Velloso [13]:

(...) conceituado o poder de polícia como a prevalência do coletivo sobre o individual, assinale-se que sendo conceito, materializa-se através de normas de direito positivo e do conteúdo destas é que se pode deduzir a amplitude de sua abrangência. (...) A interpretação das Leis que disciplinam o exercício do poder de polícia não pode, como ensina Carlos Maximiliano, levar ao absurdo, que seria o estímulo à desídia, negligência e até a comportamentos tipificadores de ilícito penal. A fiscalização e a multa interessam não a quem a exerce ou aplica, mas à moralidade, à eficiência...

Como ensina Hely Lopes Meirelles, citado por Galba Velloso [14]:

O poder de polícia seria inane e ineficiente se não fosse coercitivo e não estivesse aparelhado de sanções para os casos de desobediência à ordem legal da autoridade competente.

Por fim, como bem assevera o Sr. Manoel Lauro Volkmer de Castilho, Consultor-Geral da União, a multa "revela-se perante o Poder Público como instrumento de auto controle e auto tutela em favor de interesses maiores constitucionalmente previstos" [15], sendo inapropriada, então, qualquer tentativa do ente público de se eximir sob o argumento de a ela ser imune.

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Sobre o autor
Alexandre Gomes Nunes

MBA em Direito Tributário (FGV),ex-Fiscal de Tributos Municipais de Maceió-AL, ex-Auditor Fiscal do Município de São Paulo-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Alexandre Gomes. Responsabilidade tributária de ISS sobre ente público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1101, 7 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8612. Acesso em: 2 mai. 2024.

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