Aspectos jurídicos sobre a obrigatoriedade de vacinação no Brasil

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25/10/2020 às 17:42
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O texto expõe a razão da vacinação obrigatória principalmente pautada em legislação vigente e até recentemente promulgada, como a Lei 13.979/2020.

Palavras-Chave. Direito à saúde. Saúde Coletiva. Imunização. Direito Fundamental. ECA. Constituição Federal do Brasil de 1988.

Em nosso país, há obrigatoriedade de vacinações prevista no Estatuto de Criança e do Adolescente, a Lei 8.069/1990, sem prejuízo das legislações esparsas e, seu não cumprimento acarreta a violação do direito fundamental à saúde, igualmente previsto constitucionalmente e considerado como direito de todos.

Infelizmente, a previsão legal tem sofrido em face da influência dos movimentos antivacinas, que muitas vezes divulgam informações inadequadas e sem fundamentos para inibir que pais e responsáveis no cumprimento de seus deveres de vacinar sua prole ou pessoas sob sua responsabilidade. A propósito, o termo “vacina” é derivado da palavra latina “vacca”.

A Constituição Cidadã prevê diversos direitos assegurados a todos os cidadãos, para a garantia de uma vida digna, apta a proporcionar ao ser humano tudo o que ele precisa para sobreviver. São garantias direcionadas ao direito à vida e, não menos importante, o direito saúde. Havendo, ainda, uma proteção específica para a educação, segurança, liberdade, bem-estar, entre outros meios de interesse tanto individual como coletivo.

Tais direitos são os famosos direitos fundamentais e são definidos in litteris: "O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana".

O direito à saúde é assegurado a todos e constitui dever do Estado, sendo um direito fundamental social de segunda dimensão e que visa a redução do risco de doenças e de outros agravos, bem como prover acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, ex vi o artigo 196 da Constituição Federal do Brasil de 1988.

Convém frisar que tal garantia é um dos principais componentes da vida, seja como pressuposto de existência, seja como respaldo para qualidade de vida. E, em face de sua relevância, o direito à saúde possui a proteção constitucional no direito brasileiro como um direito fundamental, integrante dos direitos sociais, cuja aplicação deve ser garantida pelo Estado.

Aparentemente há conflito entre a autonomia individual e a proteção coletiva à saúde. Se existe de um lado, a autonomia individual de brasileiros em decidir sobre sua vida particular, o que garante o direito à liberdade de escolha e não a intervenção do Estado na vida privada. De outro viés, porém, existe o direito coletivo que busca a garantia de direitos de grande número de pessoas, existindo o direito coletivo, e considerando a sociedade como um todo[1].

A doutrina defende a ideia de que os direitos sociais valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais adequadas ao alcance da igualdade substancial, fazendo com que sejam mais compatíveis com o exercício da liberdade individual.

Analisando em seus aspectos sociais, o direito à saúde prioriza a igualdade, de forma que, para preservar a saúde de todos é necessário que ninguém possa impedir outrem de procurar seu bem-estar ou induzi-lo a adoecer. Pois essa é a razão das normas jurídicas que obrigam a vacinação, tendo em vista que uma pessoa que opta por não ser imunizada poderá contrair a doença e transmiti-la a todas as pessoas que estiverem ao seu redor.

Ledur apud Sarlet afirma que nos caso de direitos sociais, embora em causa esteja a preocupação com indivíduo como pessoa, assume importância a condição da pessoa na sua relação com a comunidade, ao passo que, nos direitos coletivos, ressalta-se é o conceito de grupo social ou entidade, sendo que a coletividade em si é quem assume a posição de titular de direito, isto é, a posição de sujeito do direito fundamental.

Sarlet ainda discorre que os direitos fundamentais sociais se referem, ab initio, à pessoa individualmente considerada e, é a pessoa, embora socialmente vinculada e responsiva, o titular desse direito. Apesar de atenderem às necessidades individuais do ser humano, tais direitos possuem nítido caráter social, pois, uma vez não atendidas as necessidades de cada um, seus efeitos recaem sobre toda a sociedade.

Afinal, a proteção social se preocupa principalmente com os problemas individuais de natureza social, e que se não solucionados projetam reflexos direitos sobre os demais indivíduos e, em última análise, sobre a sociedade. Assim, a sociedade representada por seu natural agente, o Estado, se antecipa a tais problemas, adotando para resolvê-los as medidas de proteção social.

Cumpre ao Estado proteger a coletividade de pessoas e, não somente, o ser humano de forma isolada, visto que a não efetivação dos direitos fundamentais na esfera individual pode restringir e, até mesmo impedir, a aplicação destes direitos à sociedade.

A responsabilização[2] nos casos da vacinação obrigatória é plenamente identificável, com destaque das espécies de responsabilidade civil, os pressupostos para sua existência e a responsabilidade dos pais pelos filhos menores. Essa espécie de responsabilidade tem por base o vínculo jurídico entre pais e filhos menores, isto é, o poder familiar que impõe aos pais e responsáveis várias obrigações, entre as quais a de assistência material e moral e de vigilância, sendo este nada mais que um comportamento da obra educativa. 

Segundo o artigo 933 do Código Civil brasileiro, tal responsabilidade independe de culpa, bastando existir o dano e nexo de causalidade entre o prejuízo e a conduta do menor. Portanto, responde pelo ressarcimento do dano causado pelo filho, o pai que não educa bem ou não exerce vigilância sobre este.

Em nosso país, desde o início do século XIX, as vacinas são usadas como medida de controle de doenças, sendo as principais responsáveis pela erradicação de várias epidemias. Os pais e responsáveis, juntamente com a sociedade e o Estado devem garantir às crianças e adolescentes todos os meios necessários para a sua subsistência, seja no plano material ou moral, devendo ser assegurados os direitos e garantias a estes inerentes. E, nesse mesmo sentido é a previsão do artigo 4º do ECA que estabelece que faz parte dos deveres da família, da sociedade e do Estado, assegurar, entre outros, o direito à saúde das crianças e adolescentes.

E, em seu artigo 14, §1º aduz que: O Sistema Único de Saúde (SUS) promoverá programas de assistência médica e ontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetaram a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos. §1º: É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias."

Havendo descumprimento ou violação dos direitos da criança ou adolescente, ou ainda, se os responsáveis abusarem de seus poderes, o Poder Público terá a incumbência de penalizar os responsáveis, podendo adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha, conforme estabelecem os artigos 1.637 a 1.638 do Código Civil Brasileiro.

Reprisa tal previsão legal no ECA, segundo seus artigos 22 e 24. Não obstante, o artigo 249 do mesmo diploma legal ainda prever a multa de três a vinte salários mínimos, aplicáveis àqueles que descumprirem os deveres inerentes ao poder familiar. Aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

Também configura infração por inobservar as obrigações estatuídas na Lei 6.259/75, legislação referente à saúde pública, sujeito as penalidades previstas no artigo 43 na Lei 6.259/75 e ainda penalidades do Decreto-Lei 785/1969, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.

A inobservância de calendário vacinal obrigatório possui como consequência a responsabilização elencada no próprio ECA, nas legislações esparsas que versam sobre os programas de vacinações e as ações da vigilância epidêmica, bem como, o Código Civil, sendo plenamente reprovável a conduta dos responsáveis que optarem por não vacinar.

Em verdade, mesmo com a existência da tutela inibitória, e ainda a lei que estabelece que não excluirá da apreciação do judiciário lesão ou ameaça de direito. E, ainda, o artigo 497 do CPC onde prevê que o juiz concederá a tutela específica ou determinará providências para assegurar o direito nas ações que tenham por objeto a prestação de fazer ou não fazer, sendo irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo.

Essa espécie de tutela, diferente do que ocorre nas formas de responsabilidade civil tratadas anteriormente, possui como pressuposto apenas a ameaça a um direito inviolável, sendo desnecessária a ocorrência do dano. Para que haja a aplicação da tutela inibitória basta demonstrar a probabilidade de dano que referido ato poderá causar para a sociedade. Contemporaneamente, a tutela inibitória é aplicada no direito brasileiro mais precisamente para garantir os direitos ambientais e consumeristas, em razão dos danos causados pela violação dos referidos direitos.

Deve-se igualmente conferir importância a essa tutela também na garantia do direito à saúde da população, no que concerne às imunizações regulares, decorrentes da realização das vacinas obrigatórias.

Principalmente quando o calendário de vacinações não é respeitado, as crianças e adolescentes e demais pessoas que convivem no mesmo espaço, ficam vulneráveis às doenças que seriam imunizáveis pelas vacinas determinadas pelas autoridades sanitárias. Afora isto, os impactos causados pelas pessoas que não realizam as obrigatórias vacinas não são compensados com pecúnia, tendo em vista o exponencial prejuízo que podem gerar para toda sociedade. E, prejuízos de nível grave, tanto como os danos ambientais e os decorrentes das relações de consumo.

Infere-se, portanto, que a tutela inibitória é forma de prevenção à prática do ato ilícito, de forma que a aplicação da tutela garantia a efetiva aplicação do direito que está na iminência de ser violado. Particularmente nos casos de vacinação obrigatória no sentido de reservar à população o direito fundamental à saúde, garantindo a todos a uma vida digna.

Merece destaque a atuação do Conselho Tutelar, nos casos de negligência dos pais, como responsável por zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes, consoante estabelece o artigo 131 do ECA. Cabe ao Conselho Tutelar, a aplicação de medidas específicas de proteção, de forma que sejam tomadas providências em nome da Constituição Federal brasileira e do ECA, a fim que cessem a ameaça ou violação dos direitos das crianças e adolescentes.

As normas jurídicas impõem a todos da sociedade não só abstenção de atitudes que agridam ou ponham em risco os direitos da criança e do adolescente, mas dá a cada um o poder-dever de vigilância daqueles direitos. 

Enfim, para que os direitos das crianças e adolescentes sejam assegurados na esfera judicial, é necessário que, qualquer pessoa que presenciar ou tomar conhecimento da falta de imunização, decorrente da negligência dos pais ou responsáveis, informe o caso ao Conselho Tutelar, ou mesmo a uma Promotora de Justiça, a fim de que sejam tomadas todas as medidas cabíveis, para a proteção à saúde dos titulares desses direitos e de toda a população.

Repriso em afirmar que em nosso país desde 1975 é compulsória a vacinação em razão de certas doenças, de acordo com as normas do Ministério da Saúde, ressalvados tão apenas os casos de expressa contraindicação médica. Mas, o tema historicamente, já trouxe bastante insatisfação popular e, atualmente, crescem os movimentos resistentes à vacinação mesmo que ao arrepio da lei.

Em 2013, em Jacareí, interior do Estado de São Paulo, a Promotoria da Infância e da Juventude ajuizou ação civil pública contra os pais de duas crianças que se recusavam a vaciná-las sob a alegação de que o tratamento homeopático dispensado aos filhos era suficiente para mantê-los imunizados e protegidos contra as doenças contagiosas e que a vacinação colocaria em risco a vida dos menores. 

A promotoria, por sua vez, fundamentou seu pedido no direito individual de proteção integral da saúde da criança e também na repercussão da não vacinação na rede de saúde pública, ambos os argumentos acolhidos pelo juízo, que, em decisão liminar proferida no dia 24.09.2013, determinou que os pais teriam cinco dias para providenciar a vacinação das duas crianças, sob pena de multa diária de um salário mínimo.

E, foi determinada, ainda a expedição de mandado de busca e apreensão dos infantes, que seriam encaminhados à Secretaria de Saúde do município para recebessem as vacinas, caso os cais persistissem nos descumprimentos da decisão pelo período de dez dias.

Infelizmente, o movimento antivacina que é tão antigo quanto a própria prática da vacinação, tem provocado baixas nas taxas brasileiras de imunização. Por exemplo, em 2017, dos 5.570 municípios brasileiros, 1.453 não atingiram as metas de cobertura mínima de vacinação, o que gera o risco de retorno de doenças que até então estavam sob controle, devido ao exponencial aumento de pessoas não imunizadas.

Considera-se a vacinação obrigatória um dever fundamental dirigido a todos e equivalente ao direito fundamental à saúde, dotado de dimensão positiva (prestacional) e outra negativa (defensiva, de não intervenção) sendo que esta exige do Estado o respeito e a não ingerência na saúde do indivíduo.

Enquanto a vacinação obrigatória visa cumprir a dimensão positiva de todos, ao promovera saúde pública, ela também limita a dimensão negativa do direito fundamental à saúde. Eis o fundamento do problema: a colisão entre os aspectos positivos e negativos de um mesmo direito.

A hipótese levantada é de que, embora não seja uma situação ideal, visando à proteção da coletividade, a limitação imposta à dimensão negativa do direito fundamental à saúde por meio do dever fundamental da vacinação é uma conditio sine qua non para a existência desse direito, reforçando o caráter de dever estatal e não mero direito da pessoa quanto à vacinação obrigatória.

Assim, se o Estado não garantir a incolumidade da saúde pública por meio da imunização em massa da população, cuja eficácia cientificamente está provada há séculos, o próprio direito à saúde estaria em risco de sucumbir diante de epidemias e pandemias que podem vir a se instalar novamente e que seria, por sua vez, preocupações do próprio Estado.

 Sabemos que as vacinas podem ser conceituadas como intervenções, de caráter preventivo, reconhecidas pela eficácia na mitigação da mortalidade causada por doenças imunopreveníveis. Isto é, justamente as patologias que podem ser prevenidas por meio de vacinação. Em síntese, sua função no organismo humano é estimular o sistema imunológico na produção de anticorpos, a partir de amostra enfraquecida ou inativa do agente causador da doença a ser combatida e evitada.

No Brasil, a vacinação em massa, conforme já ocorre na maioria dos países, baseia-se na chamada "imunização de rebanho", pela qual os indivíduos vacinados protegem a si e aos não vacinados, o que pode levar ao controle e, até mesmo, à eliminação da circulação do agente infeccioso. A vacinação é algo de tamanha importância que o Center of Disease Control and Prevention (CDC), dos EUA, considerou a imunização como a maior conquista sanitária do século XX.

A vacinação como prática ancestral remonta à Antiguidade Clássica, cujas descrições advêm do ano de 1000 depois de Cristo, na região da Índica, conhecida como variolação que consiste na inoculação de material obtido pela remoção das cascas das pústulas, a seguir moídas e aplicadas por esfregaço na pele ou por inoculação nas narinas, a qual, no decurso do tempo, mostrou-se arriscada, porém, eficaz.

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Historicamente, o formato vacinatório mais moderno deve sua existência ao inglês Edward Jenner que em 1796, depois de vinte anos de estudos, evidenciou a possibilidade de imunização em seres humanos por meio da inoculação de substâncias extraídas da lesão pustular humana de varíola bovina. Depois, ter conseguido com êxito, vacinar menino de oito anos, o pesquisador inglês tentou apresentar suas descobertas na Real Sociedade de Londres, porém, seu pedido fora rejeitado.

As primeiras ações contra a prática vacinatória, também são antigas, conforme explicou o infectologista Guido Levi, já em 1722, o teólogo britânico Edmundo Mossey pregava que as doenças são enviadas por Deus para punir os pecados, e que qualquer tentativa de prevenir a varíola por inoculação era operação diabólica.  Mais tarde, seguindo o mesmo raciocínio, alguns fiéis quakers, no Reino Unido, e ainda os batistas, na Suécia se posicionavam contra a vacina da varíola, sob o argumento de que seria grave pecado usar a vacinação para evitar que alguém morra de varíola, afinal, essa fora exatamente a vontade de Deus.

Em nosso país, as primeiras tentativas de imunização foram realizadas ainda em 1811, ainda durante o Período Joanino, por ocasião da criação da Junta Vacínica da Corte que utilizou método criado por Jenner. Na república, em 1892, fora criado o Instituto Vacínico Municipal que desenvolvera ampla prática vacinatória na cidade do Rio de Janeiro, a partir de verbas públicas e do conhecimento biomédico da época.

Posteriormente, ocorreu, também no Rio de Janeiro, a Revolta da Vacina[3], que foi um dos mais marcantes eventos da Primeira República e, dotado de motivações complexas do que mero fato da população rejeitar a vacinação, pois na verdade, o motim era mais contra a violência estatal do que propriamente contra a vacina em si.

E, endossando esse entendimento esclareceu o historiador Revelino Leonardo Pires de Mattos entende que "as pessoas que se rebelaram naqueles dez dias da revolta estavam fazendo-o não apenas pelo acúmulo de ações autoritárias, ou por estarem perdendo suas moradias; era mais que isto; estavam, também, perdendo o controle sobre seus próprios corpos".

O grande causador da Revolta da Vacina fora a Lei 1.261/1904, sancionada pelo então presidente Rodrigues Alves, que tornou a vacinação e revacinação contra a varíola obrigatória em todos os país. A vacinação deveria ser praticada até o sexto mês de idade da criança, enquanto a revacinação seria feita sete anos depois sempre repetida por septênios (de sete em sete anos).

É preciso sublinhar que a lei fora bem simplória, contendo apenas três únicos artigos, e sua aplicação não tivesse sido feita de forma tão truculenta e, se a alínea e do seu artigo 2º não invocasse o império do Decreto 1.151, de 5 de janeiro de 1904. Por sua vez, a referida norma que previa a reorganização dos serviços de higiene do Brasil ante os muitos casos de varíola, previa, por exemplo:

      l. A apprehensão e destruição de gêneros deteriorados ou considerados nocivos à saúde, assim como a cassação de licença fechamento, serão feitos por simples actos da autoridade e administrativa; o sequestro e venda de animaes ou objectos cuja existência nas habitações fôr

No Brasil, desde 1975 é compulsória a vacinação relativa a certas doenças, de acordo com as normas do Ministério da Saúde, ressalvados tão somente os casos de expressa contraindicação médica.

O tema, historicamente, já causou grande insatisfação popular e, atualmente, crescem os movimentos que resistem à obrigação de se vacinar, mesmo que a arrepio da lei. Desse modo, considera-se importante que tal questão seja analisada à luz dos direitos fundamentais, sobretudo do direito à saúde.

No dia 5 de setembro de 2013, em Jacareí, interior do estado de São Paulo, a Promotoria da Infância e da Juventude ajuizou ação civil pública contra os pais de duas crianças que se recusavam a vaciná-las sob a alegação de que o tratamento homeopático dispensado aos filhos era suficiente para mantê-los imunizados e protegidos contra doenças contagiosas e que a vacinação colocaria em risco a vida dos menores.

A promotoria, por sua vez, fundamentou seu pedido no direito individual de proteção integral da saúde da criança e também na repercussão da não vacinação na rede de saúde pública, ambos os argumentos acolhidos pelo juízo, que, em decisão liminar proferida no dia 24 de setembro, determinou que os pais teriam cinco dias para providenciar a vacinação das duas crianças, sob pena de multa diária de um salário mínimo.

Foi determinada, ainda, a expedição de mandado de busca e apreensão dos infantes, que seriam encaminhados à Secretária de Saúde do município para que recebessem as vacinas, caso os pais persistissem no descumprimento da decisão pelo período de dez dias (SÃO PAULO, 2013).

Ainda que, segundo a promotora responsável pela ação, trate-se de um caso sem precedentes no Brasil, o movimento antivacina pode ser considerado tão antigo quanto a própria prática da vacinação e tem se expandido por diversos motivos, de forma significativa, nos últimos anos, a ponto de causar baixas nas taxas brasileiras de vacinação.

Por exemplo, em 2017, dos 5.570 municípios brasileiros, 1.453 não atingiram as metas de cobertura mínima de vacinação, o que gera o risco de retorno de algumas doenças até então sob controle, devido ao aumento exponencial de pessoas não imunizadas[4].

Tal situação tem se mostrado preocupante e relevante, pelo que merece a atenção do Direito, uma vez que a vacinação obrigatória interfere na liberdade e na saúde individual do sujeito, enquanto a recusa à vacinação pelo indivíduo ou por seus responsáveis pode colocar em risco a saúde da coletividade, ou seja, pode-se pensar a questão pela perspectiva de um conflito entre direitos individuais e coletivos, ambos, todavia, fundamentais e de natureza muito próxima, o que dificulta, já de início, um consenso sobre eles.

Todavia, apesar da (presumida) importância desse tema, constata-se uma ausência de proposições legais ou doutrinárias que deem uma resposta efetiva à recusa de se vacinar.

Em síntese, embora haja algumas normas que determinam a vacinação obrigatória de toda a população, não há nenhuma sanção penal para quem se nega a fazê-lo, restando a coação na órbita cível, como no caso trazido a lume, com a hipótese de condução coercitiva. Por outro lado, devido ao crescimento da resistência à vacinação, começam a surgir ações judiciais, como a proposta pelo parquet em Jacareí, ademais de preocupações de especialistas referentes às possíveis consequências da baixa imunização populacional.

Então, a partir da regulamentação estatal a todos dirigida no sentido de tornar obrigatória a vacinação, o que interfere no campo de escolhas do indivíduo sobre como cuidar da própria saúde ou da de seus filhos, surge o problema aqui tratado, qual seja, a natureza jurídica da vacinação obrigatória: se direito ou dever, e a quem caberia esse dever, caso se configurasse como tal.

A princípio, considera-se que a vacinação obrigatória é um dever fundamental dirigido a todos e equivalente ao direito fundamental à saúde. Ao mesmo tempo, não se pode negar que o direito fundamental à saúde é dotado de uma dimensão positiva (prestacional) e outra negativa (defensiva, de não intervenção), sendo que esta exige do Estado o respeito e a não ingerência na saúde do indivíduo.

Enquanto a vacinação obrigatória visa cumprir a dimensão positiva de todos, ao promovera saúde pública, ela também limita a dimensão negativa do direito fundamental à saúde. Eis o fundamento do problema: a colisão entre os aspectos positivos e negativos de um mesmo direito.

A hipótese levantada é de que, embora não seja uma situação ideal, visando à proteção da coletividade, a limitação imposta à dimensão negativa do direito fundamental à saúde por meio do dever fundamental da vacinação é uma conditio sine qua non para a existência desse direito, reforçando o caráter de dever estatal e não mero direito da pessoa quanto à vacinação obrigatória.

Isto é, se o Estado não garantir a incolumidade da saúde pública por meio da imunização da população(um meio cuja eficácia tem sido cientificamente comprovada há séculos), o próprio direito à saúde correria o risco de sucumbir diante das epidemias que poderiam vir a se instalar novamente e que seriam, por seu turno, preocupações do próprio Estado.

O método de pesquisa utilizado foi o hipotético-dedutivo quanto à abordagem e o bibliográfico quanto ao procedimento. Utilizaram-se como fontes primárias doutrinas acerca do direito à saúde e vacinação, além de consulta à legislação e a fatos noticiados em jornais e em textos médicos sobre vacinas, bem como a artigos de História e de História do Direito.

As vacinas podem ser definidas como intervenções, de caráter preventivo, reconhecidas pela eficácia na diminuição da mortalidade causadas por doenças imunopreveníveis, ou seja, justamente aquelas moléstias que podem ser prevenidas por meio da vacinação.

Em suma, sua função no organismo humano é estimular o sistema imunológico na produção de anticorpos, a partir de uma amostra enfraquecida ou inativa do agente causador da doença a ser evitada. No Brasil, a vacinação em massa, tal qual ocorre na grande maioria dos países, baseia-se na “imunização de rebanho”, pela qual os indivíduos vacinados protegem a si e aos não vacinados, o que pode levar ao controle e, até mesmo, à eliminação da circulação do agente infeccioso.

Sua importância é tamanha, que o Center for Disease Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos, considerou a imunização como a maior conquista sanitária do século XX (LEVI, 2013, p. 1).Como tentativa de se prevenir o aparecimento de doenças, trata-se de uma prática ancestral, que remonta à Antiguidade, cujas descrições mais completas advêm do ano 1000 d.C., na região da Índia, com uma técnica conhecida como “variolação”, que consiste “na inoculação de material obtido pela remoção das cascas das pústulas, a seguir moídas e aplicadas por esfregaço na pele ou por inoculação nas narinas”, a qual, no decurso do tempo, mostrou-se arriscada, porém eficaz.

Todavia, o “formato” vacinatório mais moderno e próximo do atual deve sua existência ao inglês Edward Jenner, que, em 1796, depois de duas décadas de estudos, evidenciou a possibilidade de imunização em seres humanos por meio da inoculação de substâncias extraídas da lesão pustular humana de varíola bovina. Na sequência, após ter conseguido, com êxito, vacinar um menino de oito anos de idade, o pesquisador inglês tentou apresentar suas descobertas na Real Sociedade de Londres, mas seu pedido foi rejeitado. A propósito, o termo “vacina” é derivado da palavra latina “vacca”.

As primeiras ações contra a prática vacinatória, contudo, são ainda mais antigas. Por exemplo, como explica o médico infectologista Guido Levi, já em 1722, o teólogo inglês Edmund Mossey pregava que “doenças são enviadas por Deus para punir pecados, e que qualquer tentativa de prevenir a varíola por inoculação é uma operação diabólica”.

Posteriormente, mas seguindo a mesma lógica, alguns fiéis quakers, na Inglaterra, e batistas, na Suécia, se posicionavam firmemente contra a vacina da varíola, sob o argumento de que seria um grave pecado usar a vacinação para evitar que alguém morra de varíola, se foi exatamente essa a vontade de Deus.

No Brasil, as primeiras tentativas de imunização foram feitas em 1811, ainda durante o Período Joanino, quando da criação da Junta Vacínica da Corte, que passou a utilizar o método criado por Jenner. Já na vigência da República, em 1892 foi criado o Instituto Vacínico Municipal, que desenvolveu uma ampla prática vacinatória na cidade do Rio de Janeiro, a partir de verbas públicas e do conhecimento biomédico da época.

Foi no período subsequente que ocorreu, no Rio de Janeiro, a Revolta da Vacina – um dos eventos mais marcantes da Primeira República e com motivações muito mais complexas do que o mero fato de a população não querer ser vacinada (na verdade, o motim foi muito mais contra a violência estatal do que contra a vacina em si).

Nesse sentido, o historiador Revelino Leonardo Pires de Mattos entende que “as pessoas que se rebelaram naqueles dez dias da Revolta estavam fazendo-o não só pelo acúmulo de ações autoritárias, ou por estarem perdendo suas moradias; era mais que isto [;] estavam, também, perdendo o controle sobre seus próprios corpos”.

Na seara jurídica, o grande pivô da Revolta da Vacina foi a Lei nº 1.261/1904, sancionada pelo então presidente Rodrigues Alves, que tornou a vacinação e a revacinação contra a varíola obrigatórias em todo o País. A vacinação deveria ser praticada até o sexto mês de idade da criança, enquanto a revacinação seria feita sete anos depois, sempre repetida por septênios (BRASIL, 1904a).

Seria uma lei bastante simplória, com seus três únicos artigos, se sua aplicação não tivesse se dado de forma tão truculenta e se a alínea e do seu artigo 2º não invocasse o império do Decreto nº1.151, de 5 de janeiro de 1904. Tal norma, por sua vez, que previa a reorganização dos serviços de higiene do Brasil ante os muitos casos de varíola.

Em razão da rigidez das medidas a serem adotadas em prol da saúde pública. Porém, mais do que isso, chama a atenção a prontidão da administração pública da época, para efetivar tais normas, por meio, inclusive da complementação e fortalecimento das regras já editadas.

Por exemplo, logo dois meses depois, fora editado o Decreto 5.156, de 8 de março de 1904, que, na mesma linha, deu novo regulamento aos serviços sanitários a cargo da União e, entre outras previsões, em seu artigo 22, XIII, atribuiu competência aos delegados de saúde para ordenar o fechamento (provisório ou definitivo) das casas infectadas ou em precárias condições de higiene. De tais residências deveriam ser retirados seus moradores quando nenhum inconveniente mais puder ressaltar para a saúde pública.

Presume-se que os dizeres finais desse dispositivo legal se referiam ao serviço de profilaxia geral das moléstias infectuosas, que abrangia a notificação, a desinfecção, a vigilância médica e o isolamento. Enfim, todas as quatro possibilidades eram medidas ortodoxas tomadas contra o doente, sua família ou seu domicílio, em nome da saúde pública.

Por exemplo, no caso de desinfecção, se houvesse resistência por parte do proprietário, previa-se a pena de multa ou de prisão de oito dias a um mês, e, nos casos mais graves, em que a residência estivesse em más condições de higiene ou oferecesse excessiva aglomerações de moradores, o prédio deveria ser desocupado para sofrer os convenientes expurgos.

Assim, verifica-se flagrante restrição ao direito fundamental à inviolabilidade de domicílio, prevista na então vigente Constituição brasileira de 1891, além da violência policial, prisões arbitrárias e, inclusive, desterro para o Acres, expedientes que serviam suplemente às metas higienistas, bem como às políticas de exclusão social.

A insatisfação da população carioca da época remontava às políticas sanitaristas iniciadas no período imperial, ocorridas nas décadas de 1870 e 1880, que justificaram campanhas higienistas. Desenvolveu-se entre a população do Rio de Janeiro, um sentimento vacinofóbico, baseado tanto em conhecimento científico médico-sanitário quanto em uma variedade de tradições culturais afrobrasileiras, contrárias à interferência médica indevida. Havia a autorização dada aos agentes do Estado para entrar nas residências cariocas e vacinar forçosamente a população desencadeou atos de violência.

O afã sanitarista foi catastrófico e complexo, de modo a demonstrar que a Revolta de 1904 foi o clímax de um conjunto de outros eventos e fatores que desagradaram a população carioca da época. Desta forma, defende-se que os textos apresentados evidenciam dois pontos importantes, a saber:

  1. a Revolta da Vacina não foi um movimento de pessoas desinformadas que ignoravam os benefícios da imunização, mas um conjunto de atos promovidos por uma população descontente contra a violência de um governo que afetava sobretudo os vulneráveis (afinal, quem, se não os mais pobres e carentes que viviam em prédios com excessiva aglomeração de moradores?);

  2. o direito à saúde, da forma como era entendido em 1904 ou como é interpretado atualmente, se serve para justificar intervenções tão flagrantes na via dos indivíduos (em seus corpos, em suas propriedades, etc.) obrigatoriamente tem que comportar uma dimensão negativa que, em vez de exigir prestações fáticas do Estado, ao contrário, afasta ações indesejadas.

Ainda dentro de um histórico, na década de 1920 houve a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, além da ampliação das atribuições do Instituto Oswaldo Cruz, antigo Instituto Soroterápico Federal, que passou a ter a responsabilidade pela produção da cabina antivariólica.

Em 1941, durante a Era Vargas, no contexto da reestruturação ministerial da época criaram-se doze serviços nacionais direcionados a doenças específicas em que se incluíam o controle de lepra, tuberculose, febre amarela, malária, peste e doenças mentais, além de outros serviços, dos quais cinco estavam relacionados às atividades de saúde diversas.

Somente em 1975, nosso país retornou a ter legislação específica sobre a vacinação. E, nesse mesmo ano, a Lei 6.259, a qual, ainda vigente e que regulamenta o Programa Nacional de Imunizações (PNI)[5], de competência do Ministério da Saúde. É interessante sublinhar que essa lei adota como medidas de saúde pública referentes à imunização a vigilância epidemiológica e a notificação compulsória de doenças, ou seja, reformula os expedientes previstos nas normas de 1904, bem como, felizmente, elimina as hipóteses de desinfecção e de isolamento do programa governamental de saúde pública.

A Lei 6.259/1975 é regulamentada pelo Decreto 78.231/1976, o qual, em seu artigo 27 e seguintes, torna obrigatórias conforme definidas pelo Ministério da Saúde contra as doenças imunopreveníveis e estabelece o dever, de todo cidadão, de submeter a si e aos menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade à vacinação obrigatória. Ademais, o próprio decreto, no parágrafo único do artigo 29, prevê a dispensa do dever de vacinação obrigatória na hipótese de o indivíduo apresentar atestado médico de contraindicação da aplicação da vacina.

Por derradeiro, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 14, parágrafo primeiro, reafirma a vacinação obrigatória de todas as crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

Para a parte expressiva da doutrina dos direitos fundamentais costuma sustentar que os direitos civis seriam direitos de não intervenção, pelo que o Estado não poderia intervir na liberdade do indivíduo, enquanto os direitos sociais seriam direitos de prestação, por meio dos quais o Estado deveria prover bens e serviços à população.

Nessa dimensão, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins entendem que os direitos de resistência são os mesmos que aparecem nas declarações dos século XVIII e correspondem à concepção liberal clássica que procurar impor limitações à atividade do Estado, para preservar a liberdade pessoal, enquanto os direitos sociais correspondem àqueles garantidos a partir das primeiras décadas do século XX na Rússia pós-revolucionária, na Alemanha da República de Weimar e, em outros países com forte presença do movimento socialista.

Atualmente, tais teorias não se sustentam. Tem-se que, para garantir as liberdades e o exercício dos direitos políticos, o Estado deve estruturar o Poder Judiciário, com todos os seus órgão, servidores, equipamentos, sistemas, etc., ou seja, prover bens públicos relacionados à fruição dos direitos civis, ou direitos de liberdade, da mesma forma que se deve prover bens públicos em relação aos direitos sociais. Igualmente, também os direitos sociais, em específico o direito à saúde, comporta uma dimensão negativa, que exige a não interferência estatal.

Ingo Sarlet ao analisar o direito à saúde, entende que ele pode ser considerado como norma jusfundamental que constitui, além do clássico direito prestacional que impõe ao Estado a realização de políticas públicas, um direito de defesa, que afasta intervenções estatais indevidas na integridade psicofísica do indivíduo.

Considera-se, assim, que o direito à saúde significa que o sujeito tem a faculdade de resistir as ingerências em seu corpo, inclusive no sentido de decidir sobre como preservar e recuperar sua saúde. Essa possibilidade de decisão significa ser informado acerca da sua situação de saúde e das recomendações para seu tratamento, e, diante destas, poder escolher livre e conscientemente.

Nesse mesmo sentido, o Código de Ética Médica[6], em seu artigo 31, IV, estabelece que é vedado ao médico "desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

A melhor forma de manifestação da vontade do paciente é através de um termo de consentimento que consiste num documento em que o paciente, após ter recebido todas as informações e sábado todas as dúvidas sobre um ou mais procedimentos terapêuticos e diagnósticos, manifesta seu consentimento ao médico para que sejam realizados.

Recomendável a prática quanto à harmonização entre a vontade do paciente e a do médico o modelo participativo, que estaria situado entre os extremos da autonomia total do paciente e paciente e a do médico o modelo participativo, que estaria situado entre os extremos da autonomia total do paciente e do paternalismo médico. O modelo participativo pode ser considerado o mais adequado do ponto de vista ético, no qual o médico informa, orienta e aconselha o paciente, através do encorajamento, à tomada de decisões livre e consciente.

Referente aos deveres fundamentais relacionados ao direito à saúde, Sarlet e Figueiredo ressaltam dois pontos pertinentes para este estudo. O primeiro é que eles podem impor obrigações de caráter originário, como, por exemplo, as política pública de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) e o dever geral de respeito à saúde dos indivíduos, mas também podem impor obrigações derivadas, tal como o respeito à ampla gama de normas que regulam a matéria sanitária, inclusive a Lei 6.259/75 e o Decreto 78.231/76 que foram marcos regulatórios da vacinação obrigatória no Brasil.

Quanto à titularidade desses deveres, uma vez que, embora o Estado seja o titular da maior parte deles, tal fato, não afasta uma eficácia no âmbito privado, sobretudo, em termos de obrigações derivadas.

Para os doutrinadores, a noção de deveres fundamentais conecta-se ao princípio da solidariedade, no sentido de que toda a sociedade é também responsável pela efetivação e proteção do direito à saúde de todos e de cada um.

Segundo a classificação de Dimoulis e Martins a saúde se revela como dever explícito não autônomo, de acordo com o que foi expresso nos artigos 196 e 198, este, que ordena a estruturação do Sistema Único de Saúde, da Constituição Federal. Para Sarlet e Figueiredo, da mesma forma, a saúde também se trata de um dever, mas classificado como autônomo e dirigido aos particulares, como o dever de obedecer às normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Os deveres fundamentais, por sua vez, são também de extremo relevo, pois imprescindíveis para a garantia dos direitos fundamentais. A ideia de dever fundamental, via de regra, advém da concepção prévia de determinado direito fundamental, como comportamento obrigatório por parte do Estado, ou de particulares, em casos específicos e expressos para que o direito ao qual se vincula possa ser realizado, ainda que potencialmente.

Alguns casos encontram-se expressos no texto constitucional vigente, tal como o dever de alistamento obrigatório, outros são decorrentes do texto constitucional, ainda que implícitos.

Nessa toada, Dimoulis e Martins apontam a existência de diversas categorias, entre as quais se destacam: deveres estatais implícitos não autônomos: metaforicamente, são o reflexo do direito fundamental no espelho, ou seja, são os deveres que correspondem a um direito fundamental.  No que se refere aos deveres fundamentais relacionados ao direito à saúde, Sarlet e Figueiredo ressaltam dois pontos pertinentes ao tema ora abordado.

Portanto, a vacinação revela-se como dever constitucional decorrente do direito fundamental à saúde, dirigido ao Estado. As pessoas têm o direito a uma situação de saúde pública adequada, e por esse direito, cada sujeito tem o dever de ser imunizado, ainda que isso constitua uma limitação à dimensão negativa do direito à saúde.

Ao se limitar a dimensão de um direito, limita-se também o próprio direito. Porém, caso essa limitação seja necessária para garantir a outra dimensão desse mesmo direito. Mas, caso essa limitação seja necessária para garantir a outra dimensão desse mesmo direito, seria então espécie de limitação inevitável. Tem-se que não se trata de uma limitação inadequada, sendo essencial, sem a qual o direito à saúde não é passível de efetivação.

A priori, todos os direitos fundamentais são restringíveis e todos os direitos fundamentais são regulamentáveis, segundo Virgílio Afonso da Silva, ao responder sobre o que é protegido pelos direitos fundamentais, in litteris:

    “(…) toda ação, estado ou posição jurídica que possua alguma característica que, isoladamente considerada, faça parte do “âmbito temático” de um determinado direito fundamental, deve ser considerada como abrangida por seu âmbito de proteção, independentemente da consideração de outras variáveis. A definição é propositalmente aberta, já que é justamente essa abertura que caracteriza a amplitude da proteção”.

Obviamente, os direitos fundamentais não são absolutos e, todos podem sofrer intervenção estatal, ação que não corresponde a uma violação, pois deve ser sempre acompanhada de fundamentação constitucional de modo a configurar uma restrição permitida e, portanto, constitucional.

Entende-se assim que a imposição de vacinação obrigatória, enquanto restrição ao direito à saúde, seria justificada como proteção ao próprio direito à saúde, doravante em caráter público.

Entende-se que os limites aos direitos fundamentais são espécie de intervenção que se define como ação ou omissão estatal que impossibilita um comportamento correspondente a um direito fundamental abrangido pela área de proteção do referido direito e que liga ao seu exercício uma consequência jurídica negativa (proibição acompanhada de sanção).

A intervenção constitucionalmente justificada é permitida, entre outros casos, representa a concretização de limite constitucional derivado do chamado direito constitucional de colisão, realizada, num primeiro plano pelo legislador.

Ainda para Dimoulis e Martins, a concretização de qualquer direito fundamental por meio de legislação infraconstitucional pode importar em alguma forma de limitação, destacando-se as normas que regulam o Programa Nacional de imunizações e as ações de vigilância epidemiológica, mesmo que anteriores à Constituição cidadã, foram por esta recepcionadas e se trata, na prática, de concretização do direito `saúde, que, embora o limite, institucionalizam políticas públicas que permitem sua efetivação, razão pela qual a limitação genérica se considera justificada.

Por fim, defende-se plenamente a intervenção no direito à saúde em respeito à proporcionalidade desdobrada em necessidade, adequação e, ainda, a proporcionalidade em sentido estrito. Sendo necessária para a saúde coletiva e/ou individual, sendo feita de forma adequada e com a escolha de meios menos gravosos, que afetem o mínimo possível das escolhas individuais no âmbito de seu corpo e sua saúde.

Concluímos que em nosso país há três normas principais que regulam a vacinação obrigatória a Lei 6.259/1975 que instituiu o Programa Nacional de imunizações, o Decreto 78.231/76 (que regulamentou o dispositivo anterior) e a Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e dos Adolescentes) que, de forma mais específica, ratifica a obrigatoriedade da vacinação de crianças e adolescentes nas hipóteses recomendadas pelas autoridades sanitárias.

O tema da vacinação está sempre em constante tensão principalmente no atual estado de calamidade pública em razão da pandemia de Covid-19, infelizmente, o Presidente da República se equivocou ao informar que não haverá a vacinação obrigatória, posto que pela sistemática jurídica vigente, é cogente a referida vacinação, quando estiver disponível.

Na Lei 13.979[7], sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em fevereiro de 2020 com formas de enfrentamento ao surto de Covid-19 reforça que a vacinação compulsória pode ser uma das medidas adotadas por autoridades de saúde no controle da pandemia[8].  Vide ainda: http://conselho.saude.gov.br/images/Recomendacoes/2020/Reco017.pdf Conselho Nacional de Saúde. Recomendação 17, de 24 de março de 2020.

Por outro lado, é absolutamente inconstitucional, privar o acesso à vacinação gratuita quem não tiver CPF, porque significaria condenar aos milhares de invisíveis que existem no Brasil, a morte e ao abandono letal.

Referências;

BARBIERI, Carolina Luísa Alves; COUTO, Márcia Thereza; A ITH, Fernando Mussa Abujamra. A (não) vacinação infantil entre a cultural e a lei: os significados atribuídos por casais de camadas médias de São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública. v.33, 2017.

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BRASIL. Decreto 5.156, 6 de março de 1904c Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-5156-8-marco-1904-517631-publicacaooriginal-1-pe.html  Acesso em 20.10.2020.

BRASIL. Lei 1.261, de 31 de outubro de 1904a. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1900-1909/lei-1261-31-outubro-1904-584180-norma-pl.html Acesso em 20.10.2020

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Autoras:
Denise Heuseler.

Gisele Leite

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Sobre as autoras
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Denise

Professora universitária. Advogada. Pós-Graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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