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A posição preferencial do direito à vida e a liberdade religiosa

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27/10/2020 às 22:40
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III – A POSIÇÃO PREFERENCIAL DO DIREITO À VIDA E A OPÇÃO RELIGIOSA

Para ilustrar o tema, é clássico o exemplo doutrinário e jurisprudencial da Testemunha de Jeová que se recusa a submeter à transfusão de sangue em tratamento médico, abrangendo uma colisão de direitos fundamentais entre o direito à vida, previsto no art. 5º, caput, CF, e à liberdade religiosa, prevista no art. 5º, VI, da CF.

Há tempos que a doutrina e a jurisprudência buscam construir uma solução plausível para o conflito, o qual está longe da pacificação por se tratar de um caso difícil que não permite estabelecer soluções prévias e padronizadas, a significar a existência de decisões, ora pendendo para o direito à vida, ora pendendo para o direito à liberdade religiosa.

Para demonstrar que a discussão não é nova, oportuno destacar a posição de FARIAS e ROSENVALD (2006. p. 119), sobre o tema:

É significativo e eloquente exemplo dos seguidores da Igreja Testemunhas de Jeová que, por força de crença religiosa (cuja liberdade é assegurada constitucionalmente como garantia fundamental), justificando a sua postura nas passagens bíblicas do Gênesis (9, 3 a 5), Levítico (17, 10) e Atos (15, 20), não admitem o recebimento de transfusão de sangue.

...

Nessa hipótese específica, a solução que atende mais amplamente à dignidade humana, sem dúvida, deve ser o respeito à liberdade religiosa, à convicção íntima, não sendo razoável uma interpretação literal da norma legal. A questão, todavia, depende, fundamentalmente do caso específico, não sendo possível estabelecer soluções apriorísticas.

No mesmo sentido, indica julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. - No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. - Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar.  (TJMG -  Agravo de Instrumento 1.0701.07.191519-6/001, Relator(a): Des.(a) Alberto Vilas Boas , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/08/2007, publicação da súmula em 04/09/2007)

Em contraponto, entendendo que prevalece o direito a vida em casos de emergência, reportamo-nos a TARTUCE que em livro editado em 2007, ponderou sobre o tema[5]:

Com todo o respeito em relação a posicionamento em contrário, entendemos que, em casos de emergência, deverá ocorrer a intervenção cirúrgica, eis que o direito à vida merece maior proteção do que o direito à liberdade, inclusive, quanto àquele relacionado com a opção religiosa. Em síntese, fazendo uma ponderação entre direitos fundamentais (direito à vida x direito à liberdade ou opção religiosa), o primeiro deverá prevalecer.

Com devido respeito da argumentação, qual a ponderação entre direitos fundamentais que foi realizada, observando que a ponderação de interesses significa decidir, a partir do caso concreto, qual dos princípios em colisão irá prevalecer e, portanto, não cabe estabelecer de forma abstrata, prévia e acabada, que um dos princípios prevalecerá.

Ao explicar sobre o sopesamento/ponderação, MARMELSTEIN (2008, 395) informa não existir, do ponto de vista estritamente normativo, hierarquia entre direitos fundamentais, não obstante sob o aspecto ético/valorativo, defende a existência de diferentes níveis de importância dos direitos previstos constitucionalmente, merecendo transcrição a seguinte passagem de sua obra (2008, 397):

É preciso deixar claro que essa hierarquia axiológica entre os direitos fundamentais não pode, em regra, ser determinada abstratamente pelo jurista. Tirando situações bem extremadas (por exemplo, direito à vida versus direito ao lazer), é muito difícil estabelecer, de antemão, qual o direito fundamental mais importante. Não se pode dizer, por exemplo, que a liberdade de expressão vale menos do que o direito de intimidade ou vice-versa. Essa hierarquia será estabelecida sempre à luz do caso concreto, ou seja, serão as peculiares circunstâncias de cada caso que fornecerão as bases argumentativas para descobrir qual direito fundamental é, naquele caso concreto, mais importante do que o outro, através de um exercício de ponderação.

Portanto, a ponderação não é um produto pronto, mas construído a partir das bases argumentativas em defesa dos princípios colidentes, a significar que a mesma situação pode apresentar soluções diferentes a partir das particularidades envolvidas.

O seguinte exemplo nos ajuda a compreender a argumentação: Uma pessoa adulta que esteja em plena consciência de suas razões procurou atendimento médico para a realização de uma pequena cirurgia, momento em que, após os exames clínicos, foram relatadas as consequências de realizar ou não o procedimento e os riscos envolvidos, inclusive, a possibilidade de precisar de transfusão de sangue. Mesmo tendo sido devidamente informado sobre todos os riscos, inclusive, de não se submeter à transfusão de sangue, o paciente manifesta expressamente que não deseja tal procedimento por convicções pessoais e religiosas. Durante a cirurgia, há um agravamento do quadro clínico deste paciente a exigir a transfusão de sangue. A questão é: Mesmo contra a sua expressa vontade, deverá esse paciente ser submetido à transfusão de sangue?

Se a resposta for positiva, teremos que considerar que um paciente que seja diagnosticado com câncer, da mesma forma, tenha que se submeter obrigatoriamente ao tratamento quimioterápico e/ou radioterápico, mesmo contra a sua vontade, não havendo margem, por exemplo, para que se decida por escolher fazer um tratamento alternativo ou não fazer nenhum tratamento. 

Afinal, o indivíduo tem a liberdade para decidir se continua ou não um tratamento médico mesmo ciente que a interrupção poderá levá-lo a morte?

Como fica a autonomia existencial?

A discussão e a solução poderiam ser diferentes se o caso retratado fosse de uma criança e a questão seria saber se os pais poderiam recusar que o filho de 10 (dez) anos se submetesse à transfusão de sangue em uma situação médica emergencial.

A colisão entre direitos fundamentais não permite uma resposta prévia e absoluta sem que se análise o caso concreto e, portanto, é equivocado estabelecer, mesmo em casos de emergência, que sempre prevalecerá o direito à vida, pelos próprios argumentos aqui já desenvolvidos, qual seja, o direito à vida não é um direito fundamental absoluto e não está em posição de superioridade em relação aos demais direitos fundamentais.

Em 2011, foi realizada a V Jornada de Direito Civil, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, no qual foi aprovado o enunciado de nº 403:

O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante.

Talvez se entenda que a reflexão aqui posta está ultrapassada ou é tese velha visto que há foram desenvolvidas todas as argumentações necessárias a solução do caso invocado, todavia, importa indicar o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo do ano de 2020:

Apelação Cível – Tutela de Urgência Auto Satisfativa – Transfusão de sangue – Testemunha de Jeová – Direitos Fundamentais – Sentença provida a fim da realização de transfusão de sangue contra a vontade expressa da Apelante – Possibilidade – Convicção religiosa que não pode prevalecer perante a vida, bem maior tutelado pela Constituição Federal – Sentença mantida – Recurso não provido.  (TJSP; Apelação Cível 1003243-34.2018.8.26.0347; Relator (a): Marrey Uint; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro de Matão - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 20/08/2019; Data de Registro: 09/03/2020) GRIFO NOSSO

Em síntese apertada, no referido julgado o hospital entrou com a ação objetivando a autorização judicial para utilizar e ministrar sangue e derivados de sangue na paciente, obtendo a tutela de urgência e sentença favorável, no entanto, a paciente aviou recurso apelativo, cujos argumentos foram indicados no voto do Relator: a) que é Testemunha de Jeová há mais de 25 anos, considerando sua crença religiosa profunda e intrínseca à sua própria pessoa; b) que a teoria da colisão de direitos fundamentais jamais pode justificar terapia médica compulsória em paciente adulto e capaz, assim como não deveria ser aplicada ao caso concreto, vez que a crença religiosa da Apelante não prejudica terceiros, nem atenta contra direitos de outras pessoas; c) que não é contrária à Medicina e tampouco acredita em nenhum tipo de “cura pela fé”, mas requer seja respeitada sua liberdade religiosa e seu direito de escolher tratamento médico sem sangue; d) que o tratamento degradante imposto pelo Hospital, e chancelado pelo juízo “a quo”, contrariou diversos dispositivos constitucionais e internacionais de proteção aos direitos humanos; e) que é equivocado o discurso sobre colisão de direito à vida versus liberdade religiosa, uma vez que o direito de morrer não questionado, mas sim o direito de como viver.

Em vista de não haver unanimidade na decisão inicial do recurso de apelação foi aplicada a técnica de julgamento estendido, prevista no art. 942 do CPC e, ao final, a votação do referido julgado ficou 3 x 2, prevalecendo o voto do relato cujo a síntese está na ementa do julgado acima transcrito, o que demonstra a atualidade da questão.

Referida polêmica entre direito à vida e direito à liberdade religiosa é considerado um caso difícil (hard case), demonstrando a utopia de se estabelecer uma pureza metodológica no estudo do direito visto que aspectos sociológicos, filosóficos, religiosos, econômicos, políticos, éticos exercem, ainda que inconscientemente, influência na construção de soluções, notadamente, quando envolvam colisão de direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais são historicamente construídos, a significar que o direito à vida que era previsto no art. 141, caput, da Constituição Federal de 1946 não tem a mesma dimensão do direito à vida que está previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, considerando o contexto histórico nos quais foram construídos.

A única certeza aqui é que os direitos fundamentais estão em permanente construção e reconstrução, visto que a sua proteção não depende, simplesmente, da previsão no Texto Constitucional, dependendo da regulamentação infraconstitucional desse direito e, notadamente, da interpretação dada quando de sua aplicação.

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Por tal razão é que, mesmo quando a colisão entre princípios envolver, de um lado o direito à vida, não haverá resposta pronta, prévia e acabada, devendo ser analisado as nuances do caso concreto, considerando que: a) não existem direitos fundamentais absolutos; b) não existe hierarquia entre os direitos fundamentais.

Em uma sociedade pluralista, diversificada e assimétrica, não é razoável estabelecer como critério de solução para a colisão entre direitos fundamentais o princípio da maioria ou dogma da maioria, a impor a construção de uma decisão judicial que seja a mais aceitável a partir de um senso comum ou da visão de mundo da maioria, desconsiderando que o ordenamento jurídico, também, alberga a diversidade de pensamento e de escolhas existenciais.

SAMPAIO (2002. p. 550) ao tratar do estatuto das minorias políticas nos ensina que:

O conceito de democracia não se reduz a meros procedimentos de seleção de dirigentes, nem à identidade necessária entre vontade da maioria ou da opinião publica com a vontade de todos. A vitória eleitoral não importa a escravidão silenciosa dos derrotados, nem se pode confundir com a apuração momentânea e circunstancial de uma opinião pública, sem apoio em reflexões e debates suficientemente informados. Essas notas registram que as tentativas de reduzir a democracia a meros procedimentos, culminados com a regra da maioria, padecem de males congênitos. Tem-se de recorrer ao princípio da inclusão do outro que mereceu diferentes versões ao longo da história.

Ao estabelecer uma resposta pronta de que o direito à vida irá prevalecer quando em colisão com a liberdade religiosa, partindo do senso comum, não está considerando a autonomia existencial do outro ou a sua inclusão no discurso, não lhe permitindo optar pelas suas convicções religiosas, mesmo que em detrimento de um tratamento médico.

Ao prevalecer o dogma da maioria na análise de colisão de direitos fundamentais como ficaria a discussão e a solução da questão do aborto, nos casos anencefalia, em uma sociedade preponderantemente católica?

Ainda, como ficaria a discussão e a solução de considerar constitucional ou não o direito de ter escravos em uma sociedade preponderantemente escravagista?

Não se defende que a liberdade religiosa, nos casos das Testemunhas de Jeová, irá prevalecer quando envolver o direito à vida, mas a liberdade de optar ou não pelo tratamento médico e, principalmente, o direito de ser incluído no discurso, não podendo a decisão judicial partir do senso comum que a vida é o direito mais importante.

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Sobre o autor
Fabiano Batista Correa

Advogado, Professor de Direito Administrativo, Gestão Pública, Direito Constitucional e Direito Tributário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREA, Fabiano Batista. A posição preferencial do direito à vida e a liberdade religiosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6327, 27 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86315. Acesso em: 4 dez. 2024.

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