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A Lei nº 11.313/06 e a competência dos Juizados Especiais Criminais

19/07/2006 às 00:00
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Sumário : 1. Introdução. 2. Níveis hierárquicos e critérios informadores das normas de competência. 3. A competência por conexão e continência e a competência estabelecida constitucionalmente.4. A inconstitucionalidade da alteração legislativa pretendida. 5. Conclusão. 6. Referências Bibliográficas.


1. Introdução.

            No dia 29 de junho do corrente ano, foi publicado no Diário Oficial da União o texto da Lei 11.313, que alterou a redação de alguns dispositivos das Leis 9099/95 e 10.259/01, diplomas legais que, como se sabe, regulam, em todos os seus aspectos, o funcionamento dos chamados Juizados Especiais Criminais.

            Nesses termos, rezam os artigos 1º e 2º da referida Lei :

            Art. 1o Os arts. 60 e 61 da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, passam a vigorar com as seguintes alterações: 

            "Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. 

            Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis." (NR) 

            "Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa." (NR) 

            Art. 2o O art. 2o da Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, passa a vigorar com a seguinte redação:

            "Art. 2o Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. 

            Parágrafo único. Na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrente da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis." (NR) 

            Na verdade, comparando-se o novo texto com anterior, percebe-se quais sejam os objetivos perseguidos pelo legislador com as referidas modificações: a) Corrigir a distorção provocada pela Lei 10259/01, que teria criado um novo conceito de infração de menor potencial ofensivo, válido somente para as infrações da competência da Justiça Federal; b) Afastar da competência dos Juizados as infrações com pena inferior a dois anos, quando conexas a outras, afetas a outros órgãos jurisdicionais.

            No que se refere ao primeiro objetivo, não há qualquer reparo a fazer ao texto legal, embora seja necessário reconhecer que a alteração promovida só tem utilidade didática e estética, pois de há muito a doutrina e a jurisprudência pátrias já vêm reconhecendo que o novo (e mais abrangente) conceito de infração de menor potencial ofensivo trazido pela Lei 10259/01 também se aplica aos crimes da competência da Justiça Estadual, em que pese o teor do antigo texto da Lei 9099/95. A rigor, portanto, do ponto de vista da operatividade do sistema normativo, a alteração não se fazia mesmo necessária.

            O problema, contudo, reside na pretensão de excluir da competência dos juizados, através de norma infraconstitucional, as infrações que, embora apenadas dentro dos limites fixados para a definição de um crime de pouca monta, sejam por qualquer razão conexas a crimes não sujeitos à sua competência. É isso que se pretende debater nas linhas que seguem.


2. Níveis hierárquicos e critérios informadores das normas de competência.

            As normas que estabelecem a competência jurisdicional penal, como se sabe, estão espalhadas por todos os níveis hierárquicos do ordenamento jurídico.

            Assim, por exemplo, se alguém estiver sendo processado por um crime de homicídio praticado contra um índio, em razão de sua etnia, do texto da Constituição Federal colhe-se que deverá ser processado pelo Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII) de alguma circunscrição judiciária da Justiça Federal (art. 109, inciso XI). Do CPP (art. 70), por outro lado, colhe-se a regra segundo a qual o órgão competente para processá-lo deve ser aquele com jurisdição territorial no local onde o crime se consumou. Por fim, se por qualquer motivo o acusado resolver impetrar uma ação de habeas corpus contra o juiz federal que conduz o processo, deverá fazer isso perante o Tribunal ao qual estiver vinculado o magistrado, mas somente a partir dos regimentos do Tribunal Regional Federal é que poderemos saber qual dos seus órgãos internos deverá decidir sobre o HC.

            Por outro lado, embora as normas de competência estejam presentes nos diversos níveis do ordenamento, é fácil perceber que existe sempre um padrão na sua elaboração. Isto é, o legislador parte da constatação de que há inúmeros órgãos jurisdicionais agrupados em categorias distintas e com funções distintas, que devem dar conta de categorias diversas de processos, ou de atos diversos dentro da mesma relação processual. Assim, por exemplo, na chamada competência por prerrogativa de função, ao estabelecer que espécies de processos devem ser julgados originariamente por tribunais, o legislador considera uma qualidade especial da parte ré, isto é, um determinado cargo que ela eventualmente exerça. No caso dos juizados especiais, especificamente, o legislador constituinte (art. 98, I, da CF) escolheu como critério a própria gravidade da infração penal, ao dizer que os referidos órgãos jurisdicionais são competentes para processar e julgar as infrações de menor potencial ofensivo.


3. A competência por conexão e continência e a competência estabelecida constitucionalmente.

            As regras que estabelecem a competência por conexão e continência, como se sabe, estão previstas nos artigos 76 a 82 do CPP, embora haja na própria Constituição Federal alguma referência à matéria.

            A lógica que inspira os referidos dispositivos legais, considera, em última análise, que se duas infrações guardam entre si alguma relação de conexão ou continência entre elas, para evitar que haja decisões díspares, é melhor que sejam processadas e julgadas conjuntamente, e por um único juiz, mesmo que, para isso, pelo menos uma delas deixe de ser julgada pelo juiz (que seria) competente, à luz dos critérios normais. Somente nessa última hipótese, aliás, é que se pode dizer que a conexão e a continência sejam critérios substitutivos de determinação da competência, pois, pelo menos em relação a uma das infrações as regras estabelecidas a priori devem ser afastadas, e a sua competência deve ser estabelecida em função das regras de competência criadas para uma outra infração penal, tudo isso, repita-se, para evitar decisões desencontradas e garantir a uniformização dos julgados.

            Por outro lado, se a reunião de processos resulta em que a competência de uma das infrações será determinada em função da outra, é preciso, evidentemente, estabelecer regras para saber qual dentre os diversos órgãos jurisdicionais será o competente para todas as infrações conexas, e o dispositivo legal que cumpre essa função é o art. 78 do CPP.

            É preciso ter em mente, contudo, que se as regras de conexão e continência estão previstas no CPP, é evidente que só podem ter aplicação quando a competência originalmente estabelecida também estiver prevista em normas da legislação infraconstitucional, pois, do contrário, ter-se-á um conjunto de normas infraconstitucionais (que dizem o que é conexão e continência, determinam a unidade de processo e julgamento, e dispõem sobre juízo prevalente), repercutindo para afastar normas constitucionais de competência que estabelecem o juiz natural para processar e julgar os determinados crimes [01].

            Na verdade, algo semelhante só será possível, a rigor, quando a própria Constituição admitir essa hipótese. Veja-se, por exemplo, o que dispõe o art. 52, I, da CF, quando estatui que compete privativamente ao Senado Federal: processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles (grifamos).

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            Em casos assim, ainda que a própria Constituição diga outra coisa sobre a competência para processar e julgar Ministros de Estado nos crimes de responsabilidade (como de fato diz: art. 102, I, c, da CF), é forçoso reconhecer que, se os crimes forem conexos (conforme as regras do art. 76) com os do Presidente da República, todos devem ser julgados pelo Senado Federal.

            A contrario sensu, se a Constituição Federal estabeleceu qual seja a competência da Justiça Federal comum, por exemplo, ainda que o crime de sua competência seja conexo a uma outra infração da competência de uma justiça especializada, não se poderia cogitar de unidade de processo e julgamento, pois isso seria o mesmo que privar o acusado, por meio de uma norma infraconstitucional, de ser julgado pelo seu juiz natural, estabelecido constitucionalmente. No que se refere à Justiça Militar, aliás, é o próprio CPP, como vimos, quem veda a reunião de processos, afastando a incidência da regra do art. 79, caput, e abrindo mão, sem maiores problemas, do ideal de uniformização dos julgados.

            Essa lógica, aliás, vinha sendo francamente adotada pela jurisprudência pátria [02], sempre que ocorresse conexão ou continência entre um crime de menor potencial ofensivo, assim definido pela Lei 9099/95, e outro da competência de uma vara criminal comum, resultando, portanto, na separação dos processos, já que, como se sabe, a competência para processar os crime de bagatela pertence ao Juizado Especial Criminal, por determinação expressa da norma do art. 98, II, da CF, e não pode ser alterada por força de norma infraconstitucional.


4. A inconstitucionalidade da alteração legislativa pretendida.

            Como já dito na introdução do presente trabalho, as alterações introduzidas na Lei 9099/95 e na Lei 10.259/01 pretendem, na verdade, modificar esse quadro, ao excluir da apreciação dos juizados os crimes de menor potencial ofensivo que sejam conexos a outros delitos, mantendo, contudo, os institutos da transação penal e da composição de danos civis.

            O problema é que, também aqui, o que se pretende é alterar a competência estabelecida constitucionalmente a partir de uma alteração da lei ordinária, restringindo a jurisdição dos juizados especiais onde o legislador constituinte não restringiu.

            É possível argumentar, note-se bem, que próprio texto constitucional deferiu à lei ordinária a competência para estabelecer o conceito de infração de menor potencial ofensivo. Veja-se, contudo, que isso não significa que o legislador tenha em suas mãos um cheque em branco, mas, antes, deve agir dentro dos limites que a própria Constituição estabelece, observando uma série de princípios, tais como: lesividade; proporcionalidade; e isonomia. Assim, mesmo que se alegue que as mudanças trazidas pela Lei 11.313 acabaram alterando o próprio conceito de infração de menor potencial ofensivo, é preciso reconhecer que, ainda assim, o legislador teria laborado com violação ao princípio da isonomia e da proporcionalidade, ao afastar a competência dos juizados delitos tão ou até menos graves que outros, pelo só fato de terem sido supostamente praticados num contexto de conexão ou continência com outras infrações penais.

            Nem se diga, tampouco, que as alterações pretendidas não trazem qualquer prejuízo aos acusados por tais delitos, já que preservam os institutos da transação penal e da composição dos danos civis. É preciso ter em mente que a existência dos Juizados Especiais não se justifica apenas em face dos chamados institutos despenalizadores. Se os referidos órgãos foram criados constitucionalmente com uma tarefa específica, há de se esperar que sejam eles os mais bem aparelhados para exercer bem essa função, até porque a realizam rotineiramente. Ademais, é preciso lembrar que o procedimento previsto para ser aplicado nos juizados, abstraída a questão da transação penal e da composição dos danos civis, traz uma série de outros benefícios para o acusado, como oralidade e simplicidade, que representam enormes conquistas, aliás, do ponto de vista da efetivação do direito a ser julgado em prazo razoável.


5. Conclusão.

            É forçoso concluir, portanto, que pretender subtrair, através de norma infraconstitucional, da competência dos Juizados Especiais as infrações penais conexas a outros crimes, mesmo em nome de uma pretendida e duvidosa uniformização dos julgados, significa violar a Constituição Federal, ferindo o princípio do Juiz Natural, e discriminando indevidamente pessoas acusadas por delitos semelhantes, usurpando delas o direito a um procedimento oral, mais simples e menos demorado, e conduzido por profissionais em tese mais bem preparados para essa função.


6. Referências Bibliográficas.

            DUCLERC, Elmir. Curso Básico de Direito Processual Penal, vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

            KARAM, Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.


Notas

            01

Para KARAM, "As regras infraconstitucionais que disciplinam a atribuição da competência pela vinculação das causas, em nenhuma hipótese, podem se sobrepor às regras constitucionais concretizadoras do princípio do juiz natural. Quando em confronto com regra constitucional sobre competência, a conexidade de causas deixa de ser fator determinante da competência, não podendo levar à reunião das ações.[...]Da mesma forma, a incidência da regra contida no inciso III do art. 78 do Código de Processo Penal, que estabelece a prevalência do órgão jurisdicional superior, há que se condicionar ao que dispõem as regras constitucionais que definem a competência originária dos órgãos de diferentes categorias, só se podendo considerar a vinculação entre as causas como fator determinante da reunião das ações se com esta não se vulnerar o princípio do juiz natural concretizado por aquelas regras"[...]. (KARAM, Maria Lucia. Competência no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 75-76).

            02

Ver o teor da seguinte decisão : TRF 4ª. R. – 8ª T – REC 200271000455375 – Rel. Luiz Fernando Wowk Penteado – J. 30.04.2003 – DJU 21.05.2003, p. 815.
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Sobre o autor
Elmir Duclerc Ramalho Junior

promotor de Justiça em Salvador (BA), mestre em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes (RJ), coordenador estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), professor de Direito Processual Penal das Faculdades Jorge Amado (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMALHO JUNIOR, Elmir Duclerc. A Lei nº 11.313/06 e a competência dos Juizados Especiais Criminais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1113, 19 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8663. Acesso em: 24 nov. 2024.

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