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A crise da lei pela descrença no Legislativo

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4. A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO

Dada a crise vivenciada pela descrença da sociedade no poder legislativo e naquilo que por ele é realizado, passa a ser destaque (ou necessária) a atuação dos demais poderes, em especial o judiciário, numa perspectiva entendida como ativista. Contudo, é possível afirmar que

[...] a omissão do legislador democrático não é a causa do ativismo judicial do STF. Práticas ativistas dependem da existência de determinados elementos institucionais, políticos e/ou culturais e, muitas vezes, são respostas a esses estímulos25.

Nesse sentido Cortes liberais ou conservadoras podem ser responsáveis por julgamentos ativistas, pois acabam suas manifestações sendo vistas como tipos ideais, ou até mesmo formas de representação26.

Ativismo judicial é uma expressão desenvolvida nos Estados Unidos, empregada na qualificação da atuação da Suprema Corte, principalmente durante os anos 1954 e 1969, período no qual ocorreu uma mudança na aplicação de inúmeras práticas políticas nos Estados Unidos, que foram conduzidas por uma jurisprudência progressista, principalmente no quando eram tratadas matérias relacionadas a direitos fundamentais. As transformações foram implementadas sem a participação do Congresso ou, ao menos, um decreto presidencial; o que gerou uma reação conservadora, assumindo a expressão ativismo judicial uma conotação negativa27.

Não está o ativismo judicial ligado ao conteúdo da decisão, pois uma decisão ativista não é necessariamente equivocada, mas que em uma determinada ordem constitucional fatores como os acima relatados fizeram com que decisões dessa natureza, com um ativismo judicial, fossem tomadas. Não se pode entendê-lo sempre como sinônimo de abuso, excesso ou arbítrio28.

Entende-se que a ordem constitucional pode não só estimular, como exigir posturas ativistas do Poder Judiciário em determinadas circunstâncias. Nessa perspectiva, a redução metodológica do ativismo judicial a problemas de interpretação jurídica acabaria minimizando-o enquanto categoria funcional relevante para se analisar o papel institucional das Cortes. Se se entende que, por mais protagonista que venha a ser, uma Corte Suprema jamais poderá simplesmente ocupar o espaço legítimo do sistema político, e se o ativismo judicial, numa abordagem institucional, pretende realçar precisamente a dinâmica de atuação entre os poderes, então o ativismo judicial não deve ser analisado exclusivamente como um problema de interpretação jurídica29.

O ativismo é um fenômeno complexo, porém, pode ser verificado em qualquer atuação judicial, suprimindo vazios, fiscalizando e garantindo que as omissões legislativas não gerem inconstitucionalidades e falta de efetivação de direitos. No direito positivo temos a previsão do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, que “pode ser interpretada como uma desconfiança do constituinte em relação ao futuro legislador ordinário, que seria o encarregado de disciplinar os dispositivos constitucionais que exigiam sua intermediação”30.

[...] diante da eficácia limitada de preceitos constitucionais que exigiam norma integradora, o STF também produzia decisões ineficazes. O estado de anomia, portanto, subsistia. Porém, ao se promover uma guinada em sua jurisprudência, a Corte firmou sua competência para suprir o vazio normativo, permitindo o exercício do direito subjetivo, inicialmente no caso concreto. O ápice desse movimento se deu com o reconhecimento da eficácia erga omnes das decisões em mandado de injunção, perfazendo um ciclo que eleva os poderes do STF, afastando-o, cada vez mais, da imagem do “legislador negativo”.

Pode-se apontar precedentes da jurisprudência nacional, de postura ativista, expressos pelo STF, em diferentes linhas de decisão, como a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário, como se passou

[...] em casos como o da imposição de fidelidade partidária e o da vedação do nepotismo; a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição, de que são exemplos as decisões referentes à verticalização das coligações partidárias e à cláusula de barreira; a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, tanto em caso de inércia do legislador – como no precedente sobre greve no serviço público ou sobre criação de município – como no de políticas públicas insuficientes, de que têm sido exemplo as decisões sobre direito à saúde31.

Tais hipóteses podem ser entendidas como aquelas capazes de distanciar os responsáveis pela decisão de sua função típica, a aplicação do direito vigente, levando-os à de criação do próprio direito. O que se configura como uma escolha, ou seja, o ativismo é uma atitude proativa que visa interpretar a constituição com a expansão do seu alcance.

No caso do Brasil temos a presença desta atitude em situações de “retração do Poder Legislativo”, quando há um descompasso entre a classe política e a sociedade civil, gerando impedimentos para o atendimento das demandas sociais de modo efetiva.

Contudo, tal prática não é isenta de críticas, essa expansão judicial, com influência direta na vida social, configuraria uma violação das separações das funções, nesse sentido:

Juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos. Sua investidura não tem o batismo da vontade popular. Nada obstante isso, quando invalida atos do Legislativo ou do Executivo ou impõe-lhes deveres de atuação, o Judiciário desempenha um papel que é inequivocamente político. Essa possibilidade de as instâncias judiciais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos eleitos gera aquilo que em teoria constitucional foi denominado de dificuldade contramajoritária. A jurisdição constitucional e a atuação expansiva do Judiciário têm recebido, historicamente, críticas de natureza política, que questionam sua legitimidade democrática e sua suposta maior eficiência na proteção dos direitos fundamentais32.

Paralela a estas considerações, apresentam-se críticas de cunho ideológico, que acreditam ser o Judiciário uma instância conservadora, “responsável pelas distribuições de poder e de riqueza na sociedade”, uma perspectiva que enxerga a judicialização como uma reação das elites tradicionais contra a democratização, um antídoto contra a participação popular e a política majoritária33.

No nosso ordenamento a responsabilidade pela interpretação da constituição e a definição da atuação cabe aos três poderes. Contudo, inevitavelmente, diante de divergências, compete ao judiciário a decisão final.

Ocorre que essa primazia não significa,

que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Para evitar que o Judiciário se transforme em uma indesejável instância hegemônica, a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico. Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público34.

O Direito possui métodos específicos e próprios para argumentar, o que exige conhecimento técnico e treinamento específico, na maioria das vezes não estendido à generalidade das pessoas. Nesse sentido judicialização poderia configurar uma “elitização do debate e a exclusão dos que não dominam a linguagem”35.

É possível apontar Institutos como audiências públicas, amicus curiae e entidades da sociedade civil como titulares do direito de propositura de ações diretas, que podem amenizar, mas não eliminar tal problema. Ocorre que, do outro lado, transferir o debate público para o Judiciário politiza excessivamente dos tribunais, permitindo que se dê lugar a sentimentos em um ambiente que deve ser presidido pela razão.

Na via paralela, processos contra parlamentares passam a tramitar nas manchetes de jornais, fazendo com que juízes substituam a racionalidade da argumentação jurídica por esse campo de embates próprios da discussão parlamentar, movida por visões políticas contrapostas e concorrentes.

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A amplitude da jurisdição constitucional, da judicialização de questões sociais, morais e políticas, bem como, em algum grau, de ativismo judicial, podem ser apontados como traços marcantes do constitucionalismo contemporâneo e da ascensão institucional do Poder Judiciário.

Apesar da descrença no legislativo, deve-se cuidar para que as decisões judiciais não sejam prolatadas exorbitando de suas capacidades institucionais e limitando impropriamente o debate público, para que juízes e tribunais não se transformem em uma instância hegemônica, comprometendo a legitimidade democrática de sua atuação.

Não estando em discussão direitos fundamentais ou a preservação dos procedimentos democráticos, devem os juízes e tribunais acatar as escolhas feitas pelo legislador, ainda que esteja patente a descrença do titular do poder, abstendo-se de sobrepor a eles sua própria valoração política. Por fim, deve-se permitir ouvir os movimentos sociais e os canais de expressão da sociedade, pois o poder emana do povo.


5. CONCLUSÃO

A legislação, representação do povo e expressão da sua vontade, por causa da atuação precária dos responsáveis pela sua elaboração, caiu em descrédito.

A função do juiz, que já se entendeu como aquela responsável por reproduzir o que estava na lei, sem uma função criadora, passou a exigir um papel criativo.

A legislação é um modelo de governança dignificado e uma fonte de direito respeitável, fruto de um processo legislativo que, no Brasil, representa uma teoria normativa positivada o bastante para se estabelecer um procedimento lógico, eficaz, que não poderia produzir um diploma inaplicável ou inconstitucional.

Porém problemas enfrentados para se respeitar essa teoria normativa, bem como, a atuação descompromissada e corruptiva dos parlamentares, geram críticas à legislação e favorecem a supervalorização da jurisdição.


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre o autor
Pedro Henrique Nunes Fernandes

Mestrando do curso de Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Pedro Henrique Nunes. A crise da lei pela descrença no Legislativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6462, 11 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86783. Acesso em: 4 mai. 2024.

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