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O caráter instrumental dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência

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27/09/2006 às 00:00
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IV- REGULAÇÃO DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL

            O histórico da legislação antitruste brasileira consiste nas seguintes leis, que antecederam à atual lei em vigor: Lei n.º 4.137/62, Lei n.º 8.137/90 Lei n.º 8.158/91. Para o momento, entretanto, interessa-nos apenas abordar, brevemente, a Lei n.º 8.884, de 11.06.1994.

            Em seu artigo 1º, a Lei n.º 8.884/1994 define a amplitude de seu conteúdo, nestes termos: "esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico"; e completa o seu parágrafo único: "a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei".

            Ressalte-se que, orientada por tais princípios constitucionais, dentre eles os da "livre iniciativa" e da "livre concorrência", e não exclusivamente no §4º do art. 173 da Constituição da República, a Lei n.º 8.884/1994 não consiste simplesmente em um diploma antitruste, mas se encontra voltada à preservação do modo de produção capitalista.

            Com efeito, uma vez que as regras da mencionada Lei "conferem concreção aos princípios da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso do poder econômico, tudo em coerência com a ideologia constitucional adotada pela Constituição de 1988" [17] e tendo em vista que tais princípios, em especial os da "livre iniciativa" e da "livre concorrência", complementam-se e voltam-se à preservação do modo de produção capitalista, através da tutela do consumidor e da garantia de oportunidades iguais a todos os players do mercado, outra não poderia ser a conclusão.

            A "livre iniciativa" e a "livre concorrência", princípios preservadores do modo de produção capitalista, são protegidos pela Lei n.º 8.884/1994, que estabelece, em seu artigo 20, "que os atos de qualquer natureza que tenham o efeito, potencial ou real, de limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa são definidos como infração da ordem econômica" [18].

            Três são, dessa feita, as condutas definidas como infração da ordem econômica: limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa. Esclareça-se que, "se a limitação, falseamento ou prejuízo atingiu a liberdade de concorrer" – livre concorrência – "ou a liberdade de empreender" – livre iniciativa –, "as repercussões jurídicas são rigorosamente idênticas" [19].

            Fábio Ulhoa Coelho, em seu "Curso de Direito Comercial", define brevemente no que consistem as condutas acima apontadas [20]:

            I-"limitar a livre concorrência ou a livre iniciativa é barrar total ou parcialmente, mediante determinadas práticas empresariais, a possibilidade de acesso de outros empreendedores à atividade produtiva em questão. Em geral, a obstaculização do acesso decorre do aumento dos custos para novos estabelecimentos, provocado com vistas a desencorajar eventuais interessados";

            II-"falsear a livre concorrência ou iniciativa significa ocultar a prática restritiva, através de atos e contratos aparentemente compatíveis com as regras de estruturação do livre mercado". Frise-se, entretanto, que "pode haver falseamento da concorrência, sem que o negócio jurídico que o viabiliza se caracterize como simulado"; e

            III-"prejudicar a livre concorrência ou iniciativa, por fim, significa incorrer em qualquer prática empresarial lesiva às estruturas do mercado, ainda que não limitativas ou falseadoras dessas estruturas. Trata-se de conduta difícil de se exemplificar em nível conceitual. A previsão normativa se explica como cautela do legislador, tendo em conta as imprevisíveis e variadíssimas possibilidades abertas pelas múltiplas formas de relacionamento entre empresas, de que podem derivar restrições horizontais ou verticais".

            O que se verifica é que a Lei n.º 8.884/1994 sistematiza a matéria antitruste, de forma a aperfeiçoar o tratamento legislativo que lhe era dado anteriormente. Como visto, mais do que sistematizar a matéria antitruste, o referido texto legal pretende a manutenção do modo de produção capitalista, concretizando, dessa forma, os princípios constitucionais analisados nesse estudo.

            Mas o mais importante de tudo isso, conforme obtempera Paula A. Forgioni [21], é que, de forma diversa da ocorrida com as leis que antecederam a que ora se analisa, a Lei n.º 8.884/1994 não é mais aplicada apenas em "surtos":

            "Não obstante a utilização da Lei Antitruste, pelo governo, com fins populistas, a atuação do CADE, nos últimos quatro anos, vem-se consolidando de forma a já não se vislumbrar ‘surtos’ de aplicação da Lei Antitruste, mas sim uma linha contínua de atuação. Identifica-se um novo interesse acadêmico pela matéria e o aumento do número de monografias jurídicas publicadas. Os conselheiros do CADE, por sua vez, têm proferido várias palestras, com o escopo de chamar a atenção do empresariado para alguns dispositivos da Lei Antitruste, desempenhando as funções educativas que estão previstas no inc. XVIII do art. 7º da Lei Antitruste. (...) Espera-se que com o fortalecimento do CADE perante o sistema político e a própria opinião pública uma maior atenção seja dada, por parte das autoridades antitruste, às chamadas condutas anticoncorrenciais dos agentes econômicos".

            A aplicação da legislação antitruste, dessa feita, deve continuar, sem que por "surtos". Ademais, tendo em vista que a legislação antitruste tem por escopo a preservação do modo de produção capitalista através da proteção aos princípios constitucionais da "livre iniciativa" e da "livre concorrência" – por outras palavras, tendo em vista que tal legislação é instrumento para se "assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" – "aparece clara", na lição de Paula A. Forgioni [22], "conjuntamente com o aspecto instrumental desse tipo de norma, sua aptidão para servir à implementação de políticas públicas, especialmente de políticas econômicas entendidas como ‘meios de que dispõe o Estado para influir de maneira sistemática sobre a economia’".

            Ou seja, ainda conforme os ensinamentos da professora, "o antitruste já não é visto apenas em sua função de eliminação dos efeitos autodestrutíveis do mercado, mas passa a ser encarado como um dos instrumentos (...) de que dispõe o Estado para conduzir o sistema".

            Assim se dá, dessa feita, nos dias de hoje, a regulação da concorrência no Brasil enquanto forma de proteção da "livre iniciativa" e da "livre concorrência" e, por conseguinte, como forma de "assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social".


V - CONCLUSÕES

            Por esse breve ensaio, restou esclarecido que a "valorização do trabalho humano", acompanhada da "livre iniciativa", são condições para que se assegure a "dignidade da pessoa humana". A "livre concorrência", princípio que complementa o da "livre iniciativa", dessa mesma forma, deve ser vislumbrada como condição para que se atinja o fim maior da dignidade humana.

            Isso porque o princípio constitucional da "livre iniciativa" deve ser entendido como atributo inalienável do ser humano, como a liberdade "da expansão da própria criatividade", da "participação sem alienações na construção da riqueza econômica" e "da organização de outros homens com vistas à realização de um objetivo", vale dizer, da empresa. O princípio da "livre concorrência", por sua vez, deve ser entendido como liberdade de concorrência, no sentido de direito subjetivo a competir no mercado, observada a garantia de igualdade de oportunidade entre os players. Ou seja, "livre concorrência" nada mais é que uma extensão do conceito de "livre iniciativa", desdobrando a liberdade de empresa na liberdade de competição entre as empresas.

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            Assim sendo, para que, pela "livre iniciativa" e pela "livre concorrência", princípios que se complementam e se voltam à preservação do modo de produção capitalista, se possa "assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social", indispensável a existência de legislação que estabeleça aos players o dever jurídico de não adotarem práticas entendidas pela legislação antitruste como anticoncorrenciais, sob pena de sobre eles recair a ação disciplinadora e punitiva do Estado.

            A atual lei antitruste nacional (Lei n.º 8.884, de 11 de junho de 1994), na medida em que protege os princípios da "livre iniciativa" e da "livre concorrência", protege, em verdade, o próprio modo de produção capitalista.

            Mas o mais importante é que a Lei n.º 8.884/1994 vem sendo aplicada com regularidade, não mais em "surtos", como eram as legislações antitruste anteriores, possibilitando, dessa forma, a efetiva concretização dos princípios em comento. Dessa feita, importante que se preserve constante a aplicação da Lei nesse sentido e, sobretudo, que se passe à "implementação de políticas públicas, especialmente de políticas econômicas entendidas como ‘meios de que dispõe o Estado para influir de maneira sistemática sobre a economia’", tudo com o objetivo de se atingir o fim último e maior de se assegurar a dignidade humana.


VI – BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

            . Calixto Salomão Filho, "Direito Concorrencial: as estruturas", São Paulo, Malheiros, 1998.

            .Celso Ribeiro Bastos, "O Princípio da Livre Concorrência na Constituição Federal", Revista dos Tribunais – Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n.10, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995.

            .Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 7, São Paulo, Saraiva, 1990.

            . Eros Roberto Grau, "A Ordem Econômica na Constituição de 1988", 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000.

            .Eros Roberto Grau, "Contrato de Obrigações – Falsa ‘reserva de mercado’; livre iniciativa, livre concorrência e soberania nacional; o princípio da igualdade", Revista Trimestral de Direito Público, 6/1994, São Paulo, Malheiros.

            .Eros Roberto Grau, "Princípio da Livre Concorrência – Função Regulamentar e Função Normativa", Revista Trimestral de Direito Público, 4/1993, São Paulo, Malheiros.

            .Fábio Ulhoa Coelho, "Curso de Direito Comercial", 3ª ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva, 2000.

            .J. Cretella Jr., "Comentários à Constituição de 1998", 2ª ed., vol. 8, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993.

            .José Afonso da Silva, "Curso de Direito Constitucional Positivo", 15ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998.

            .Paula A. Forgioni, "Os Fundamentos do Antitruste", São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998.


NOTAS

            01

"A Ordem Econômica na Constituição de 1988", 5.ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 222.

            02

"Os Fundamentos do Antitruste", São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 170.

            03

Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 231.

            04

Ob. cit., p. 179.

            05

"Curso de Direito Constitucional Positivo", 15.ed.., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 760.

            06

"Comentários à Constituição do Brasil", vol. 7, São Paulo: Saraiva, 1990, p. 16.

            07

cf. Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 233.

            08

"A economia e o controle do Estado", parecer publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", p. 50, em 04.06.1989, apud Eros Roberto Grau, "A Ordem Econômica na Constituição de 1988", 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 232.

            09

Ob. cit.,, p. 761.

            10

"Disciplina jurídica da concorrência – Abuso do poder econômico", Resenha Tributária, 1984, p. 119/120 apud Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 7, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 25.

            11

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 7, São Paulo, Saraiva: 1990, p. 25.

            12

Eros Roberto Grau, Ob. cit., p. 234/236.

            13

"A economia e o controle do Estado", parecer publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", p. 50, em 04.06.1989, apud Eros Roberto Grau, "A Ordem Econômica na Constituição de 1988", 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 236.

            14

Eros Roberto Grau, "Princípio da Livre Concorrência – Função Regulamentar e Função Normativa", Revista Trimestral de Direito Público, 4/1993, São Paulo, Malheiros, p. 126.

            15

"Os Fundamentos do Antitruste", São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 170.

            16

Celso Ribeiro Bastos, "O Princípio da Livre Concorrência na Constituição Federal", Revista dos Tribunais – Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n.10, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995.

            17

Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 238.

            18

Fábio Ulhoa Coelho, "Curso de Direito Comercial", 3ª ed., vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 205.

            19

Fábio Ulhoa Coelho, ob. cit., p. 206.

            20

Fábio Ulhoa Coelho, ob. cit., p. 206/207.

            21

"Os Fundamentos do Antitruste", ob. cit., p. 134/135.

            22

"Os Fundamentos do Antitruste", ob. cit., p. 170/171.
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Sobre o autor
Mario Luiz Elia Junior

advogado em São Paulo (SP), especialista em Direito de Empresa pela USP, especializando em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ELIA JUNIOR, Mario Luiz. O caráter instrumental dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1183, 27 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8679. Acesso em: 23 abr. 2024.

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