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A prova inequívoca da fumaça do bom direito

02/08/2006 às 00:00
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À primeira vista, a frase que intitula este artigo pode levar o leitor à impressão de se tratar de um contra-senso. Entretanto, as breves considerações que ora se traçam pretendem evidenciar que, na sistemática recursal do agravo de instrumento, por vezes é necessário ao relator aferir, justamente, a presença de prova inequívoca do fumus boni iuris – a "fumaça do bom direito" ou a ainda denominada "relevância da fundamentação".

É fato que a chamada "prova inequívoca" não se confunde com a "fumaça do bom direito", pois, enquanto esta gravita na seara do juízo de plausibilidade, aquela encontra sede no campo da certeza aparente, da formação do juízo de verossimilhança.

No processo civil, a fumaça do bom direito é representada pelo convencimento que se firma no julgador de que a alegação que lhe é submetida à apreciação se revela plausível, ou seja, que a lógica da narrativa leva à conclusão, ao menos inicial e num juízo típico da cognição sumária, de que o quanto aduzido pela parte representa um direito que a ela assiste e que deve ser amparado, normalmente por medidas dotadas do caráter de urgência. É a presença aparente de um direito que ainda não foi inteiramente certificado.

Trata-se do requisito comum às medidas cautelares, sejam elas próprias, reguladas no Livro III do Código de Processo Civil; sejam impróprias, a exemplo da liminar requerida em mandado de segurança, cuja finalidade visa garantir a efetividade da vindoura concessão definitiva da ordem perseguida.

Aliás, sobre esse tema, deve-se abrir parênteses para esclarecer que a liminar no mandado de segurança, ao contrário do que se pode, inadvertidamente, deduzir, não representa antecipação da tutela, mas, sim, efetiva medida de cunho acautelatório, tanto que fundada na "relevância da fundamentação" apresentada pelo impetrante, ou seja, o fumus boni iuris (vide art. 7º, inc. II, da Lei nº 1.533/1951). É, assim, medida dotada de cunho provisório e passível de revogação a qualquer tempo, exatamente como as medidas cautelares propriamente ditas (CPC, art. 807, 2ª parte).

Sendo certo que a "fumaça do bom direito" se encontra relacionada à plausibilidade, tem-se, de outro lado, a constatação de que a "prova inequívoca" se reveste de maior rigidez para sua configuração, porquanto sua presença leve não à plausibilidade do direito, mas à sua imediata certificação, ainda que precária.

É o elemento que firma no julgador o convencimento inicial de que o direito invocado pela parte é, efetivamente, procedente, e não só provável. Sua presença autoriza ao julgador deferir medidas antecipatórias da própria tutela objetivada pela ação – art. 273, CPC – e não medidas que apenas visem assegurar sua efetividade, como sói ocorrer com as cautelares.

Sob este prisma, o caput do artigo 273 do CPC é bastante didático:

Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:. ............................... (original sem grifo)

A prova inequívoca, desta feita, é efetivo elemento de convicção, em estágio, portanto, mais avançado que a mera inferência de probabilidade.

Aliás, a distinção entre a prova inequívoca e a fumaça do bom direito rende, em sede jurisprudencial, ricas construções que com propriedade a identificam, como exemplificativamente se pode verificar:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO – PROCESSUAL CIVIL – ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA – AÇÃO ORDINÁRIA – MATÉRIA DEPENDENTE DE PROVA – AUSÊNCIA DE REQUISITO DO ART. 273 DO CPC – IMPOSSIBILIDADE DE ANTECIPAÇÃO – A tutela antecipatória, por constituir uma medida excepcional, já que importa na antecipação provisória dos efeitos da própria solução definitiva que advém com a sentença, exige, ao contrário da tutela cautelar, requisitos muito mais rígidos para sua concessão. Assim, enquanto para a tutela cautelar bastam apenas o fumus boni iuris e o periculum in mora, para a tutela antecipatória são necessários a prova inequívoca e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Para se pretender a antecipação dos efeitos da tutela é de se anexar prova que, por sua própria estrutura e natureza, gere a convicção plena dos fatos e juízo de certeza na definição jurídica respectiva, não sendo possível seu deferimento quando o entendimento do juiz depender da coleta de outros elementos probatórios. A alegação unilateral da parte autora, de que a parte ré tem a obrigação de prestar serviços médicos à primeira, inexistindo, conseqüentemente, prova inequívoca desse fato, não autoriza a antecipação dos efeitos da tutela". (TAMG – AI 0397408-7 – (67119) – Belo Horizonte – 3ª C.Cív. – Rel. Juiz Maurício Barros – J. 11.06.2003).

Pois bem. Fixada a distinção entre o fumus boni iuris e a "prova inequívoca", resta delinear o ponto de convergência entre tais institutos, para que se possa desfazer o aparente contra-senso estabelecido no título do presente artigo.

A questão não é das mais complexas e está longe de ser rara, tendo seu elemento identificador na sistemática recursal aplicável ao agravo de instrumento.

Dispõe o artigo 527, III, do Código de Processo Civil – em redação não afetada pelas reformas infraconstitucionais – que, recebido o agravo, pode o relator "atribuir efeito suspensivo ao recurso (art. 558), ou deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal, comunicando ao juiz sua decisão".

A antecipação da tutela, portanto, não se limita ao processo em trâmite no primeiro grau, mas é também permitida em sede de recurso, como visto, no processamento do agravo de instrumento.

Cuida-se do procedimento também conhecido por "efeito suspensivo ativo", pois que, ao revés de apenas retirar a eficácia imediata da decisão agravada – efeito suspensivo puro -, tem por objeto suprir o indeferimento de pedido formulado no primeiro grau.

Com a habitual propriedade, assim discorre Bernardo Pimentel Souza:

"Também por força do inciso III do artigo 527, o relator tem competência para até mesmo antecipar ‘a pretensão recursal’, com a concessão provisória do requerimento denegado pelo juiz a quo. Então, além de retirar a eficácia da decisão interlocutória de indeferimento, o próprio relator pode deferir o pleito denegado na origem. Daí a expressão ‘efeito suspensivo ativo’ (rectius, antecipação da tutela recursal). (...) Em síntese, satisfeitos os requisitos dos artigos 273 e 558, o relator no tribunal pode (rectius, deve) conferir efeito suspensivo ativo ao agravo de instrumento, a fim de deferir o pedido denegado pelo juiz de primeiro grau". [01]

A sistemática recursal regente do agravo de instrumento, assim, ao permitir ao relator deferir ao recorrente, em antecipação da tutela, a pretensão recursal, remete à presença de "prova inequívoca" do direito invocado, exatamente como preconizado no art. 273 do CPC.

Mas o que dizer se a pretensão indeferida no primeiro grau não exigir prova inequívoca do direito que a ampara, e sim, tão-somente, o fumus boni iuris? Em outras palavras, se o pedido formulado no primeiro grau exigir, para o seu deferimento, a constatação apenas da "fumaça do bom direito", será necessário que o recurso interposto de seu indeferimento apresente, não mais a fumaça, mas a prova inequívoca do próprio direito, para que a parte possa ver antecipada a tutela recursal?

É justamente nesse ponto que a fumaça do bom direito e a prova inequívoca se encontram, ainda que não se confundam.

Para melhor visualização do quanto aqui se discorre, imaginemos a seguinte situação hipotética: uma parte ingressa em juízo com uma medida cautelar preparatória, requerendo a concessão de liminar (para cujo deferimento, como se sabe, são necessários o fumus boni iuris e o periculum in mora). O pleito liminar é indeferido no juízo de origem, ao argumento de não se vislumbrar a presença da plausibilidade do direito. A parte, então, interpõe agravo de instrumento ao tribunal, requerendo a antecipação da tutela recursal, ou o efeito suspensivo ativo, para ver deferida a liminar.

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Como visto, não há dúvida de que, para deferir a antecipação da tutela recursal, o relator deverá aferir a presença da prova inequívoca do direito perseguido pelo recorrente. Contudo, é necessário ter-se registrado que, nestes casos, a dita "prova inequívoca" somente respeita à pretensão recursal, não se relacionando com aquela pretensão formulada no juízo de origem e que consiste no objeto do primário requerimento liminar.

Portanto, ao relator não é dado exigir prova inequívoca do direito invocado na hipotética medida cautelar - pois que o deferimento da respectiva liminar originalmente exige a fumaça do bom direito -, mas, sim, de que se faziam presentes, na instância de origem, os requisitos ensejadores do deferimento da medida, particularmente o fumus boni iuris.

Afinal, se a pretensão de origem demanda, para seu deferimento, a presença de fumus boni iuris, não há razão para que, na esfera recursal, tal requisito se robusteça, passando-se a exigir, para o mesmo objetivo, que a parte suplante tal demonstração, para trazer, não o indício, mas a prova inequívoca da própria pretensão originária.

A finalidade da distinção repousa, justamente, na necessidade de não se confundir a "prova inequívoca" na fase recursal com a da pretensão originária, eis que, se o deferimento da liminar na medida cautelar requer, tão-somente, a presença da "fumaça do bom direito", não faria sentido exigir, em relação ao pleito de origem, mais do que isso para a antecipação da tutela recursal no agravo de instrumento.

Efetivamente, em tais casos, a prova inequívoca da qual se exige a demonstração é a de que, no primeiro grau, foi evidenciado o fumus boni iuris, ou seja, exige-se, nessas circunstâncias, para a antecipação da tutela no agravo de instrumento, a prova inequívoca (no segundo grau) da fumaça do bom direito (ofertada na primeira instância).

Desse modo, não há contra-senso em se falar de "prova inequívoca da fumaça do bom direito", já que, quando elementos relativos a instâncias distintas (a quo e recursal), necessária se fará, justamente, sua constatação concomitante.

À vista das exíguas considerações que ora se traçam, tem-se, conclusivamente, que:

a) "fumaça do bom direito" e "prova inequívoca" são elementos distintos e inconfundíveis, sendo, o primeiro, mais tênue, relativo ao indício do amparo de uma pretensão por um direito – juízo de plausibilidade; e, o segundo, mais robusto, relativo à demonstração, de plano, da existência do direito perseguido – juízo de verossimilhança;

b) a "fumaça do bom direito" autoriza o deferimento de medidas acautelatórias, ao passo em que a "prova inequívoca do direito" permite a antecipação da própria tutela que constitui o objeto da ação;

c) a antecipação da tutela pode se verificar no processamento do agravo de instrumento, exigindo, para tanto, a "prova inequívoca" do direito do recorrente;

d) a "prova inequívoca" do direito na seara recursal não se confunde com a prova do direito na pretensão originária;

e) cuidando-se a pretensão originária de requerimento para cujo deferimento se exija, apenas, a presença do fumus boni iuris, este permanece sendo o requisito exigido para seu deferimento na esfera recursal;

f) na hipótese de agravo de instrumento em que se requer a antecipação da tutela recursal, para a obtenção de uma pretensão denegada na primeira instância e para cujo deferimento se fazia necessário o fumus boni iuris, será necessário que a parte evidencie, no recurso, a presença de "prova inequívoca" daquela "fumaça do bom direito" que assiste sua pretensão originária.


Nota

01 Pimentel Souza, Bernardo. Introdução aos Recursos Cíveis e à Ação Rescisória – 3ª ed. ampl. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2004; p.413.

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Sobre o autor
Fabricio Rebelo

Pesquisador nas áreas Jurídica e de Segurança Pública, Coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (CEPEDES), Professor (cursos livres), Autor de "Articulando em Segurança: contrapontos ao desarmamento civil", Assessor Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBELO, Fabricio. A prova inequívoca da fumaça do bom direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1127, 2 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8688. Acesso em: 18 nov. 2024.

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