O livro “A sociedade do espetáculo” foi escrito por Guy Debord no final da década de 60 do século passado [1], e nunca se mostrou mais atual no presente. Em seu tempo Debord já questionava de forma contundente a unificação do espetáculo, e a proletarização do mundo [isso em 1967]. De fato, para os que defendem a tese de que o mundo vive a chamada era pós-moderna - e que teria surgido a partir da segunda metade do século passado -, houve profundas modificações globais, com acentuada implementação de técnicas de controle, de técnicas de manipulação das massas, sendo afastadas as ideias iluministas. Para os que defendem a ideia de que o mundo apenas e tão-somente vive nova fase da modernidade, há muito iniciada, o modelo global, sobretudo a contar da década de 70, passou a viver acentuado e desenfreado processo tecnológico, a par da convivência com uma sociedade eminentemente de consumo exacerbado.
Passados mais de 50 anos desde a primeira edição da obra em exame, nota-se que o sistema presente [em pleno século 21] ainda mantém-se girando em torno do [mesmo] espetáculo tão bem descrito por Debord, lá na década de 60. Em outras palavras, prepondera a ideia do aparentar ser e ter, deixando-se de lado o ser; persiste a mercadoria como centro das atenções.
Com efeito, o sistema globalizante, no qual evidentemente o Brasil se insere, mesmo que de forma capenga, tímida, impõe à sociedade [moderna] certos costumes, estilos de vida, modo de conduta em grupos, e principalmente estabelece qual o caminho a ser seguido pelo homem moderno [ou pós-moderno]. A massificação tecnológica, principalmente no campo da informática, da telefonia etc., e apenas para não se desviar do tema ora proposto, impõe ao cidadão certas formas de procedimento, de agir, sendo que o novo já passa a ser obsoleto, porque há imediatamente um outro novo.
Paralelamente a isso, o mundo atual globalizante assiste ao espetáculo do controle sobre o homem, cujos efeitos imediatos saltam aos olhos, tal como bem esclareceu Foucault [2]. Nem se discute, também, que o próprio homem aprecia o controle. Com efeito, escreveu Debord que "toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de ‘espetáculos’. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação" [3]. De fato, pinçando-se algumas das contundentes e profundas teses desenvolvidas no texto em foco, nota-se a sua atualidade.
Alguns pensamentos de Guy Debord, como dito, são também deste tempo, pertencem ao século novo, até mesmo porque, como disse o próprio autor, "uma teoria crítica como esta não se altera, pelo menos enquanto não forem destruídas as condições gerais do longo período histórico que ela foi a primeira a definir com precisão"[4]. Novas condições não surgiram no século 21, de modo que a teoria desenvolvida nos anos 60 mantém-se hígida.
Eis algumas teses importantes:
"O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, medida por imagens" [5]; "no mundo ‘realmente invertido’, a verdade é um momento do que é falso" [6];
"como indispensável adorno dos objetos produzidos agora, como demonstração geral da racionalidade do sistema, e como setor econômico avançado que molda diretamente uma multidão crescente de imagens-objeto, o espetáculo é a ‘principal produção’ da sociedade atual" [7];
"a primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou, no modo de definir toda realização humana, uma evidente degradação do ‘ser’ para o ‘ter’. A fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um deslizamento generalizado do ‘ter’ para o ‘parecer’, do qual o ‘ter’ efetivo deve extrair seu prestígio imediato e sua função última. Ao mesmo tempo, toda realidade individual tornou-se social, diretamente dependente da força social, moldada por ela. Só lhe é permitido aparecer naquilo que ela ‘não é’"[8];
"o mundo presente e ausente que o espetáculo ‘faz ver’ é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é assim mostrado ‘como ele é’, pois seu movimento é idêntico ao ‘afastamento’ dos homens entre si e em relação a tudo que produzem[9]".
Por fim, e apenas para não se tornar enfadonho, e muito embora o tema seja deveras interessante, cabe ressaltar uma tese bastante profunda, e que merece maior reflexão:
"o espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias. O dinheiro dominou a sociedade como representação da equivalência geral, isto é, do caráter intercambiável dos bens múltiplos, cujo uso permanecia incomparável. O espetáculo é seu complemento moderno desenvolvido, no qual a totalidade do mundo mercantil aparece em bloco, como uma equivalência geral àquilo que o conjunto da sociedade pode ser e fazer. O espetáculo é o dinheiro que ‘apenas se olha’, porque nele a totalidade do uso se troca contra a totalidade da representação abstrata. O espetáculo não é apenas o servidor do ‘pseudo-uso’, mas já é em si mesmo o pseudo-uso da vida" [10].
A teoria de Debord, porque se mantém atual, presente no século 21, é de ser ponderada, refletida na sua essência. Suas reflexões, muitas vezes cáusticas como se percebe da leitura simples de alguns axiomas ora transcritos, além de presentes, mais que isso, são necessárias a fim de demonstrar que a globalização, a abertura de fronteiras de forma desorganizada, olvida de um elemento chave, indispensável: o homem. A globalização, cujos efeitos [até mesmo de viés negativos] já são questionados até e principalmente pelos países desenvolvidos, de primeiro mundo, também tem em seu contexto um paradoxo evidente e descritível a olho nu, apresentado pelo próprio Debord: há o isolamento das ‘multidões solitárias’.
[1] La Societé du Spectacle, lançada em Paris no mês de novembro de 1967.
[2] Segundo o filósofo, o homem é visto nada mais como objeto e sujeito da prática do poder.
[3] La Société du Spectacle. Paris:Éditions Gallimard, 1992, p. 15. Grifo consta do original.
[4] Op. cit., p. 7.
[5] Op. cit., p. 16.
[6] Idem, p. 19. Grifos constam do original.
[7] Idem, pp.21-22. Grifos no original.
[8] Tese 17, p. 22, cit., e grifos estão no texto.
[9] Op. cit., p. 36. Grifos constam da obra.
[10] Axioma 49, pp. 44-45.