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Da neutralidade à brutalidade sob a perspectiva do neocolonianismo financeiro

05/12/2020 às 09:40
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É essencial atuar contra as variadas formas de preconceito, auxiliando ativamente na geração de espaços para os grupos mais vulneráveis, para que possam, efetivamente, ser considerados.

“Há um fato de minha infância que nunca esqueci. Morávamos em Paranaguá, mas aquele dia estávamos em Curitiba. Meu pai, seguramente, embora nascido nas longínquas terras do Líbano, foi a pessoa mais apaixonada pelo Brasil que conheci e não faltava sequer um único evento cívico. Por vezes, era só ele a assisti-los. Naquele dia viemos à Curitiba para as comemorações, na praça Tiradentes, do dia de Tiradentes. Terminada a homenagem, fomos comer pastel na praça Generoso Marques, na pastelaria de um senhor de fala baixa, origem oriental, não sei se chinesa ou japonesa. Um homem completamente embriagado entrou no local e começou a ofender os clientes, derrubar os objetos das mesas, jogar os guardanapos no chão, um funcionário, sem, em momento algum, encostar nele, pediu que ele se retirasse e ficou na porta, para, com sua presença, constranger o retorno deste cidadão embriagado ao estabelecimento, tudo de forma relativamente tranquila. Foi o que bastou. Um terceiro cidadão corpulento, que passava pela rua, ao ver a cena, invadiu a pastelaria, retirou detrás do caixa o proprietário pelo colarinho, o levou no meio do calçamento e com muita força lhe desferiu um tapa no rosto que o derrubou no chão, gritando, ‘você não é daqui, é estrangeiro, nem brasileiro é, tem que baixar a bola’. Os que passavam, a grande maioria fingia não ver; outros, davam gritos de apoio, tipo, ‘isto mesmo, arrebenta este japa’. O pai me colocou atrás do balcão, aos cuidados de uma assustada e conhecida balconista, recomendada para que não deixasse eu sair de modo algum, foi à calçada, entrou na frente, e tentou falar, deixando transparecer a insuperável troca do P pelo B característico do imigrante Libanês, ‘Pbor favor Pbare Senhor, ele não fez nada”, ao que o agressor gritou, você também é um “turco”, não tem que se meter, aos aplausos dos transeuntes que gritavam ‘tem que apanhar também, estes turcos são tudo fdp’. Sorte grande, Curitiba sendo Curitiba, começou a chover intensamente, todos dispersaram, acabou a confusão. Isso aconteceu no País sem preconceito” (Adel El Tasse)

Rotineiramente, notícias informam sobre situações envolvendo racismo, violência contra mulheres, crianças, idosos e imigrantes. Não raramente, dessas situações acabam ocorrendo mortes. Vidas humanas são ceifadas em nome do ódio de pessoas, contra as demais vidas que o cercam.

Conviver com o diferente sempre foi uma das tarefas essenciais do projeto civilizatório humano, superando a construção da “anormalidade” em relação aos demais, não conduzindo para a ideia de que existam seres, a partir de sua forma de ser, fora dos parâmetros “do aceitável” pela sociedade e que devam ser objetivizados, transformados em coisas, à serviço dos que se consideram os seres normais e socializados.

Cada momento apresenta seus desafios, sendo esperado que, após os Estados autoritários do século passado, o discurso coletivista fosse desprestigiado e a preocupação com a preservação dos espaços individuais sofresse maximização, afinal, toda construção retórica do nazismo e do fascismo foi centrada na proclamação de que o individual deveria ceder em prol dos objetivos comuns do povo, da raça, da pátria. Com isso, aceitou-se os sacrifícios de pessoas, pois elas seriam simples manifestações de individualismo, em prol dos valores e sentimentos coletivos.

Naturalmente, quando os modelos democráticos contemporâneos começam a ter assentamento, esse processo é contraposto e a lógica retórica dos Estados Ocidentais passa a ser a de total garantia de individualidade, com importante e indispensável evolução de direitos neste aspecto, porém, com a produção de efeito devastador sobre a noção de coletividade.

Evidente que a construção dos valores e direitos individuais foi essencial para a evolução humana e o bloqueio à massacres em nome do Estado. Porém, a discussão que ora se coloca é a da possibilidade de convívio dos espaços individuais com sentimentos e valores coletivos, canalizados sempre para a amplificação da proteção dos seres vivos.

A propósito, um dos elementos mais marcantes do individualismo é a geração da omissão, do silêncio. Em relação às dificuldades dos demais, passa a ser regra o olhar somente voltado para o seu próprio universo pessoal e a ignorância completa em relação ao sofrimento dos demais seres.

O silêncio com roupagem de neutralidade é regra, esvaziando até mesmo os conteúdos previstos no Código Penal, como a omissão prevista pelo artigo 135 do Código Penal.

A conciliação entre a preservação dos direitos individuais e as preocupações de ordem coletiva, principiam com a compreensão de que defender o direito alheio é, em última análise, forma direta de garantir os próprios direitos.

Em definitivo, as etapas pelas quais a humanidade passou demonstram que, em matéria de exercício do poder, as exceções que admitem seu crescimento tem inexorável tendência a converterem-se em regra. Assim, uma vez usurpado determinado direito, com o tempo, o que se consolida é o precedente para a produção de violação dos demais direitos; o direito violado para um, tende a se consolidar como a violação dos direitos de todos.

Nessa perspectiva, a inaceitabilidade de qualquer conduta que afronte as condições fundamentais de estruturação da dignidade da pessoa é essencial, permitindo dotá-la de conteúdo efetivo.

O individualismo, na forma aqui referida é, segundo Bauman, uma das marcas da modernidade líquida – sendo viga mestra para a edificação da neutralidade em determinados assuntos relevantes para toda a sociedade.

A questão é que o ser neutro inexiste em sua forma. A neutralidade sempre é a escolha pelo predomínio do mais forte, de quem controla a estruturas de poder, pela não alteração das estruturas culturais e sociais.

A questão é relativamente simples, quando se é neutro diante da ofensa de direitos, do ataque à vida e à evolução da humanidade, não há efetiva neutralidade, mas garantia de não resistência para o crescimento das ações violadoras, como no malfadado exemplo constituído na frase “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, a qual não conduz para a neutralidade, mas para o reforço da posição da agressão contra a mulher. Por isso, a conciliação das bases individuais com a noção de coletividade conduzem a que, o que antes era compreendido como não intromissão, atualmente seja direta  omissão e descaso.

Há uma amplificação da problemática quando se insere a perspectiva do atual neocolonialismo financeiro, pelo qual a centralidade do poder está onde se concentra o capital e a cultura gerada é da maior respeitabilidade da pessoa, quanto maior seja sua capacidade de auxiliar nesta concentração.

É fácil perceber que brancos e negros não apresentam a mesma possibilidade de gerar riquezas para o centro, na medida em que o processo escravagista aliado ao bloqueio do desenvolvimento da população negra, faz com que ela, regra geral, disponha de menor capacidade de consumo que a população branca, o que induz o discurso do poder central sempre em favor desta.

Sopesando a capacidade de enriquecimento do centro, entre homens e mulheres, os dados continuamente apresentados dão conta da grande diferenciação existente entre as remunerações, sendo que os menores ganhos em geral são atribuídos ao gênero feminino, gerando claro sentido de maior habilitação, pelo poder central, ao masculino, pois, como mais ganha, mais gasta e, em consequência, mais enriquece o sistema de colonização financeira.

Entre crianças e os seus abusadores a situação é ainda mais gritante. Mesmo entre os imigrantes e os natos a diferenciação é bastante sensível, pois aqueles deixam seus países de origem justamente para tentar a construção de condição financeira mais confortável, exatamente porque não a ostentam e, portanto, não interessam ao poder central.

Na lógica perversa do neocolonialismo financeiro a habilitação discursiva em favor dos que maior lucratividade podem representar fomenta os preconceitos, afinal, fácil catalogar mulheres de fracas, negros de vitimistas, crianças de inconsequentes que não sabem o que falam, imigrantes de perigosos, com isso fortalecendo posições dos que maior lucro podem canalizar ao centro.

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Nesse sentido, a seletividade do sistema punitivo se amplia de forma ímpar, pois não é a violência de uma ação ou a gravidade dela que habilita as punições, mas, inexoravelmente, a pessoa que pratica o ato, o que induz condenações fáceis de grupos vulneráveis como negros e imigrantes e permanente tentativa de normalizar a violência de gênero, racial, contra crianças ou imigrantes.

No Brasil, em novembro de 2020, um homem foi espancado por três pessoas, com socos e pontapés, tudo filmado. Do que até agora demonstrado, morreu por asfixia produzida durante a tortura que sofreu. Grande parte das pessoas manifestou, a despeito da clareza das imagens, preocupação prevalente com os antecedentes criminais da vítima, como se estes garantissem o direito de quem o desejasse, matá-la. Muitos correram dizer que houve apenas o uso de forma equivocada de uma técnica de imobilização. Sinceramente, uso equivocado de técnica de imobilização? Foi um massacre e as imagens registradas não deixam dúvidas.

Ocorre que, em todas essas falas, está a tentativa indisfarçável de normalizar: morreu porque tinha antecedentes ou porque não teve sorte quando empregaram uma técnica de imobilização contra si. Em verdade, tudo isso mascara o claro preconceito presente na hipótese, pois toda ação somente ocorre porque há certeza de que, por ser a vítima negra, sua condição humana é diferente e, portanto, pode ser espancada. Até porque se negra é, dentro da sociedade desigual, não terá amigos ou parentes importantes para vingarem o mal feito contra ele praticado.

Situações como essa indicam necessidade de pensar o coletivo e a neutralidade se converte em problema social crônico, pois vai permitindo a reafirmação dos preconceitos históricos, pois suas vítimas nunca são os que tem suas posições reafirmadas pelo poder neocolonial financeiro.

Importante para o avanço da sociedade brasileira reconhecer seus vários preconceitos e decidir enfrentá-los, o que não se faz com neutralidade e afirmação cômoda individual de que não se é preconceituoso e isto basta.

Em verdade, é essencial atuar contra as variadas formas de preconceito, auxiliando ativamente na geração de espaços para os grupos mais vulneráveis, para que possam efetivamente ser ouvidos, considerados, manifestarem seus pleitos legítimos e receberem proteção.

Quando Castro Alves escreve seu Navio Negreiro, chocou a sociedade à época, não por trazer fatos desconhecidos, mas, justamente, por ter tido a coragem de narrar os fatos que todos conheciam, mas dos quais não se falava, pois deles não falando, os negros eram por todos vistos como coisas e, ao narrar suas dores, histórias e sofrimentos não se pode negar sua humanidade e a brutal crueldade do processo escravagista.

Com isso, retirou as pessoas da cômoda posição de assistir a história “de camarote” e a dor alheia não podia mais ser ignorada, sob o pretexto da neutralidade, ou se defendia escravidão, ou contra ela tinha que se contrapor.

Enxergar os preconceitos em uma sociedade que se autoproclama isenta deles é honrar os sentimentos de igualdade, pois, como no navio negreiro de Castro Alves, o que se faz é proclamar a realidade, para que, a partir da impossibilidade de ignorá-la, o individualismo egocêntrico ceda espaço para a preservação das individualidades de cada um, sem perder de vista que ela se insere em um coletivo que deve avançar. Seu avanço, contudo, depende de que todos avancem, o que é incompatível com os preconceitos e a separação da sociedade pela identificação de alguns como cidadãos e de outros como seus objetos descartáveis.

Sim, é preciso olhar para a realidade e assim, como Castro Alves há 240 anos, não haverá como não proclamar, “Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras! É canto funeral! … Que tétricas figuras! …Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”

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Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL TASSE, Adel. Da neutralidade à brutalidade sob a perspectiva do neocolonianismo financeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6366, 5 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87186. Acesso em: 22 dez. 2024.

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