Capa da publicação Os conceitos histórico-metafísico e liberal de justiça de John Rawls
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O conceito histórico-metafísico de justiça e o conceito liberal de justiça de John Rawls na Conferência 1 em seu O liberalismo político

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23/12/2020 às 09:40
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O conceito de justiça na “Conferência 1” em “o Liberalismo Político” trata-se de um conceito próprio e possui característica política.

RESUMO: Este trabalho analisa o conceito histórico-metafísico de justiça e o conceito liberal de justiça de John Rawls na “Conferência 1” em seu “o Liberalismo Político”. Inicialmente analisou-se o conceito de Justiça sob os aspectos exegético, hermenêutico e histórico. Em seguida, foi realizada estudo do conceito de justiça na “Conferência 1” em “o liberalismo político” de John Rawls. Por fim, comparou-se o conceito de Justiça analisado no primeiro tópico com o de John Rawls. O objetivo deste artigo é responder a seguinte pergunta: “O conceito de justiça apresentado por John Rawls na ‘Conferência 1’ trata-se de um conceito específico ou segue o mesmo entendimento da concepção legada pela tradição metafísica?”. Minha hipótese é a de que o conceito apresentado por John Rawls trata-se de um conceito de justiça político e não metafísico. O método de pesquisa utilizado foi o bibliográfico. Após a investigação constatou-se que o conceito de justiça na “Conferência 1” em “o Liberalismo Político” trata-se de um conceito próprio e possui característica política.

Palavras-Chave: Conceito; Justiça; Metafísica; Político; Conferência 1.


INTRODUÇÃO

O conceito de justiça demanda séria e rigorosa reflexão. A bem da verdade, de forma geral, os indivíduos possuem uma ideia ou perspectiva de justiça. Quando por exemplo, determinada pessoa tem um parente assassinado e lhe é indagado o que ela espera, a resposta é praticamente unânime: “Eu só quero que se faça justiça!”. Essa concepção de justiça é “pré-filosófica”, ou seja, não demandou uma análise guiada pelo método filosófico, contudo, se aproxima, por exemplo, do que disse Ulpiano: “justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”, ou seja, para o parente da vítima, justiça, como dar a cada um o que é seu se efetiva na aplicação da legislação da lei penal e processual penal. Foi esse conceito “pré-filosófico” oriundo das relações primárias entre os indivíduos, que proporcionou debates ulteriores, agora sob a condução do método filosófico.

Este conceito ganhou feições diversas ao longo da história do pensamento. Isto ocorreu pelo fato dele transcender os limites dos debates metafísicos e também se situar no âmbito das relações entre os indivíduos: ao ultrapassar as arguições metafísicas, relações de justiça podem ser vistas entre o Estado[1] e os indivíduos e entre os indivíduos. Os parâmetros que conduzem a uma concepção de justiça vêm da cultura, direito e costumes. Tendo em mente o conceito de justiça de Ulpiano, o que seria “dar a cada um o que é seu” ou “conforme o seu direito”? qual parâmetro é utilizado? Quando um indivíduo realiza uma atividade que gera um bônus financeiro a outro, o que seria justo? Um pagamento? Ou quando um indivíduo ultrapassa o semáforo no sinal vermelho ou conduz seu veículo acima do limite de velocidade? Uma multa? A contraprestação paga àquele que realizou uma atividade que gerou bônus a outro é conhecida como pagamento. Antes tal contraprestação era efetuada por meio da troca. Nos dias atuais, com a regulamentação feita pelas leis, de acordo com as leis trabalhista, a contraprestação é chamada de salário. Anterior à regulamentação legal, contudo, o costume e a cultura já determinavam que o justo é ocorrer uma contraprestação. No segundo exemplo, trata-se de uma situação atual, oriunda das sociedades organizadas que, para manterem esta organização é necessário que a equação, ato e consequência seja mantida, e a partir daí percebe-se a transcendência da concepção de justiça e pode-se verificá-la nas relações entre os indivíduos.

Este artigo tem como objetivo analisar o conceito de justiça no âmbito da perspectiva histórica e também na “Conferência 1” em o “Liberalismo Político” de John Rawls e, a partir desta análise verificar se ambos os conceitos são consonantes ou dissonantes. No primeiro momento, e de forma sucinta, será estudado o conceito geral de justiça dentro de uma perspectiva exegética-histórica. No segundo momento, de maneira mais detalhada, como Rawls desenvolve a ideia de justiça na “Conferência 1”. Por fim, serão comparados ambos os conceitos a fim de constatar a existência, ou não, de proximidades e distâncias. A pergunta a ser respondida é: “O conceito de justiça apresentado por John Rawls na ‘Conferência 1’ trata-se de um conceito específico ou segue o mesmo entendimento da concepção legada pela tradição metafísica?”.


1 JUSTIÇA: ASPECTOS EXEGÉTICOS, HERMENÊUTICOS E HISTÓRICOS

Neste momento, entendo ser importante destacar o significado da palavra justiça que em nossa cultura é indiscutivelmente influenciada pelo pensamento greco-romano. De modo que, os vocábulos em grego e no latim serão analisados. No idioma grego justiça vem da palavra δικαιοω que pode significar: “1) tornar justo ou com deve ser; 2) mostrar, exibir, evidenciar alguém ser justo, tal como é e deseja ser considerado; 3) declarar, pronunciar alguém justo, reto, ou tal como deve ser” (STRONG, 2002[2]). Destes significados entendo que pode-se denotar aspectos epistemológicos, ontológicos, filosóficos-políticos e éticos. Epistemológicos, seguindo a relação elementar de conhecimento entre sujeito e objeto, a relação de justiça se dá entre o que conhece o que é justo e o que é conhecido como justo e/ou as relações de justiça. Assim, no exemplo dado acima – do indivíduo que teve um parente assassinado, quando, e se, for efetivada a justiça (condenação por homicídio), o sujeito (parente) conhecerá o que é justo, o conhecido como justo, neste caso, será o Estado, que efetivou a justiça. O aspecto ontológico refere-se à resposta da pergunta “o que é justiça?”. Tal concepção existe dentro de uma perspectiva seja sincrônica ou diacrônica, contudo, nunca anacrônica, ou seja, o conceito filosófico do que é justiça está para o seu tempo, mas também relaciona-se com o que fora desenvolvido ao longo da história. Filosófico-político, pois a essência da efetivação da justiça exige uma atuação do Estado. E ético, tendo em vista, esta designar o dever-ser da atuação com justiça. Um outro vocábulo grego que se relaciona com o conceito de justiça é o δικαιος. Este possui uma concepção mais ampla e alcança, inclusive, perspectivas religiosas:

1) justo, que observa as leis divinas

1a) num sentido amplo, reto, justo, virtuoso, que guarda os mandamentos de Deus

1a1) daqueles que se consideram justos, que se orgulham de serem justos, que se orgulham de suas virtudes, seja reais ou imaginárias

1a2) inocente, irrepreensível, sem culpa

1a3) usado para aquele cujo o modo de pensar, sentir e agir é inteiramente conforme a vontade de Deus, e quem por esta razão não necessita de reticação no coração ou na vida

1a3a) na verdade, apenas Cristo

1a4) aprovado ou aceitado por Deus

1b) num sentido mais restrito, dar a cada um o que merece e isto em um sentido judicial; emitir um juízo justo em relação aos outros, seja expresso em palavras ou mostrado pelo modo de tratar com eles (STRONG, 2002, grifo nosso)

Todo o item “1.a” destaca o aspecto teológico do conceito de justiça, concernente à relação entre o indivíduo e sua divindade, no sentido daquele seguir as determinações impostas pela divindade, expressas nos mandamentos desta, e, caso assim o faça, se torna justo. Esse tornar-se justo efetiva-se com uma declaração da divindade, como se fosse o resultado de uma sentença, logo, este ato possui um aspecto jurídico. No contexto deste estudo, pode-se fazer uma analogia, diacrônica, entre os aspectos de justiça daquela época aos atuais, pois anteriormente o Estado era teocrático e os indivíduos acreditavam que parte ou total condução da sociedade estava a cargo da divindade, nesse sentido, como já dito, a ideia de justiça estava atrelado a obediência das leis da divindade, o que mutatis mutandis, a origem da justiça ainda está atrelada ao Estado, contudo, não mais por uma condução divina, mas sim, dentro de um espectro democrático, daí se falar em Estado democrático de direito. Já o item “1.b”, apresenta uma ideia próxima a de Ulpiano que se refere ao dar a cada um conforme o seu merecimento, no caso da citação, dentro de uma noção de justiça. Além disso, fala de uma relação justa entre os indivíduos, o que destaca conotação ética.

Ainda nesta perspectiva, agora sob um estudo da raiz latina da palavra justiça, tem-se o entendimento de que justiça é: “Justitia, ae (justus). 1. Justiça, conformidade com o direito, equidade; justitia erga deos Cic. deveres para com os deus; 2. Sentimento de equidade, espírito de justiça; 3. Bondade, benevolência, benignidade; 4. Santidade” (MONIZ, 2001, p. 381)

A raiz latina segue a mesma perspectiva da grega: justiça refere-se a) à conformidade com o Direito e deveres para com os deuses; b) sentimento de equidade. A ideia de um alinhamento com um padrão ou algo posto por um ente superior ao indivíduo (deuses; Estado). A relação com a ideia de equidade também é muito forte. Em uma perspectiva mais ampla, Abbagnano apresenta dois significados principais para justiça:

Em geral, a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Podem-se distinguir dois significados principais: 1º J. como conformidade da conduta a uma norma; 2º J. como eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas), entendendo-se por eficiência de uma norma certa capacidade de possibilitar as relações entre os homens. No primeiro significado, esse conceito é empregado para julgar o comportamento humano ou a pessoa humana (esta última, com base em seu comportamento). No segundo significado, é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento. (ABBAGNANO, 604-605, 2007).

O autor discorre que no primeiro caso a polêmica filosófica, jurídica e política decorre em relação a natureza da norma: natural, divina ou humana. Destaca que para Aristóteles a justiça é uma virtude integral e perfeita. É integral pois abarca todas as outras e perfeita pelo fato de quem a possui pode utilizá-la não só em relação ao si, mas também em relação aos outros. Já no segundo conceito, o autor destaca que justiça não se refere ao comportamento ou à pessoa, mas à norma: declara a eficiência da norma e sua capacidade de possibilitar as relações entre os indivíduos. Nesta situação o objeto do juízo é a própria norma, o que torna estas duas teorias de justiça diferentes.

Feitas estas considerações iniciais sobre o conceito de Justiça reitero que este trabalho se propõe a analisar o conceito de Justiça na “Conferência 1” em “o liberalismo político” de John Rawls, para ele, de forma mais ampla, “a sociedade é organizada não só quando se propõe a promover o bem dos indivíduos que a compõe,  mas também quando de forma efetiva é regulada por uma perspectiva pública de justiça. Desta forma, refere-se a uma sociedade em que:  a) os indivíduos aceitam e têm consciência que os outros indivíduos têm consciência e aceitam os mesmos princípios de justiça; b) as instituições sociais elementares com frequência promovem, e geralmente sabe que promovem esses princípios. Mesmo que os indivíduos façam grandes exigências recíprocas, reconhecem, porém, um ponto em comum a partir do qual suas exigências possam ser julgadas. Se a satisfação dos interesses próprias requeira a vigilância mútua o sentido público de justiça torna possível a relação entre os indivíduos segura. Entre os indivíduos que possuem anseios diversos, uma compreensão compartilhada de justiça cria uma relação de convivência harmoniosa; a busca de justiça limita a de outras finalidades. Pode-se compreender a justiça como a carta primordial de uma convivência entre os indivíduos bem-ordenada” (RAWLS, 2008, p. 05). Pode-se perceber que dentro desta concepção de Justiça, descrita por Rawls, não há uma dissociação dos conceitos aqui já analisados: uma ideia de convivência entre os indivíduos e a promoção de justiça por instituições.

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2 O CONCEITO DE JUSTIÇA NA “CONFERÊNCIA 1”

Rawls, no início da “Conferência 1” discorre sobre o conceito de liberalismo político, como título da conferência. Afirma que tal conceito soa familiar, contudo, sua intenção com este conceito é diferente do que provavelmente se supõe. Sugere que deve começar a definição de liberalismo político, a partir do termo “político”. Levanta um debate sobre o conceito de “justiça política” em uma sociedade democrática e levante o seguinte questionamento: “qual a concepção de justiça mais apta a especificar os termos equitativos de cooperação social entre os cidadãos considerados livres e iguais, e membros plenamente cooperativos da sociedade durante a vida toda, de uma geração até a seguinte?”

Ele trata este questionamento como primeira questão fundamental para, em seguida, acrescentar outra questão fundamental: a da “tolerância compreendida em termos gerais”. Essa segunda “questão fundamental” não é oposta à primeira, pelo contrário, está em consonância, pois tolerância associa-se a ideia de cooperação. Nesse sentido, um conceito que pode ser destacado na “primeira questão fundamental” é a ideia de cooperação. Essa palavra é repetida por Rawls e é correlacionada com a concepção de justiça. Neste primeiro momento, a conclusão que se chega é de uma perspectiva de justiça centrípeta. Centrípeta tendo o Estado como centro, desta forma, os cidadãos, em ato de cooperação constroem a justiça. Tal afirmação feita por Rawls vai de encontro com a ideia de democracia, ou seja, demonstra a participação dos cidadãos na promoção da justiça. Isso não significa, inclusive, que nesta sociedade haverá pensamento uníssimo quanto as concepções e manifestações nesta sociedade, para ele: “A cultura política de uma sociedade democrática é sempre marcada pela diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais conflitantes e irreconciliáveis”. Na verdade, tal diversidade é característica decisiva de uma sociedade liberal, marcadamente destacada pela pluralidade de manifestações, seja no campo religioso, filosófico ou moral.

Rawls então faz o seguinte questionamento: “como a filosofia política poderia encontrar uma base comum para responder a uma questão fundamental como a da família de instituições mais apropriada para garantir a liberdade e a igualdade democrática?”. Esta indagação sucede o contexto em que ele destaca o conflito entre a tradição do pensamento democrático, onde de um lado está Locke, que capitaneia o que Constant chamava de “as liberdades dos modernos” (pensamento e consciência e certos direitos básicos da pessoa e propriedade, e o império da lei) e do outro Rousseau, que privilegiava o que Constant chamava de “liberdade dos antigos” (liberdades políticas iguais e os valores da vida pública). Rawls entende que os princípios apontados pela tradição política não são suficientes para responder a indagação, por ele feita, pois entende que alguns aspectos importantes são ignorados na formulação, como a ideia de satisfação das necessidades básicas dos cidadãos. Desta forma, para responder a indagação apontada, Rawls indica como ponto de partida a ideia de cultura pública como fundo de ideias e princípios básicos implicitamente reconhecidos, para ele:

A justiça como equidade procura realizar esse intento valendo-se de uma ideia organizadora fundamental no interior da qual todas as ideias e princípios possam ser sistematicamente conectados e relacionados. Essa ideia organizadora é a sociedade concebida como um sistema equitativo de cooperação é a da sociedade concebida como um sistema equitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais, vistas como membros plenamente cooperativos da sociedade ao longo da vida.

Como já salientado, a concepção de justiça para Rawls está intrinsicamente relacionada com equidade. O sistema de equidade é consubstanciado pela perspectiva de uma sociedade organizada. Esta organização se dá por meio da cooperação entre indivíduos livres e iguais. A liberdade e a igualdade são fatores que contribuem para que a justiça como equidade seja efetivada. A partir disto, os indivíduos podem questionar se as instituições públicas são ou não justas. Para Rawls, o objetivo da justiça como equidade é se apresentar como um acordo político racional, bem-informado e voluntário, ela demonstra a razão política compartilhada e pública de uma sociedade. A razão compartilhada da justiça como equidade só é alcançada quando concepções filosóficas e religiosas opostas são colocadas de lado. Esta razão pública, que é o debate dos cidadãos concernente a questões basilares constitucionais e questões de justiça, tem feição política, e não metafísica. Neste enredo, o liberalismo político tem por finalidade uma concepção política de justiça constituída de uma perspectiva autossustentável. Contudo é importante destacar:

Enquanto interpretações de valores políticos, uma concepção política auto-sustentável não nega a existência de outros valores que se apliquem, digamos, àquilo que é pessoal, familiar ou próprio das associações; tampouco afirma que os valores políticos são separados de outros valores ou que estejam em descontinuidade com eles. Um objetivo, como disse, é especificar a esfera política e sua concepção de justiça de tal forma que as instituições possam conquistar o apoio de um consenso sobreposto. Nesse caso, os próprios cidadãos, no exercício de sua liberdade de pensamento e consciência, e considerando suas doutrinas abrangentes, veem a concepção política como derivada de – ou congruente com – outros valores seus, ou pelo menos não em conflito com eles.

O liberalismo político tem forte relação (e por que não dizer que é constituído?) da democracia, justiça e razão pública. Uma leitura superficial das primeiras páginas da “Conferência 1” pode levar a conclusão de que Rawls compreende por liberalismo político uma ideia ecumênica de pensamento filosófico, moral e religioso. Que nos espaços públicos os cidadãos devem se despir de suas concepções individuais e formar, junto aos outros cidadãos, uma ideia de justiça, autônoma e constituída por uma substância específica, devendo ser passada pelo crivo de especulações metafísicas. No entanto, o que ocorre é o inverso: liberalismo político é o resultado de democracia, justiça como equidade e razão pública. Democrática, pois, qualquer discussão sobre algo que seja público, por óbvio, fala-se da participação de mais de um indivíduo. Cada indivíduo – aqui é importante destacar a concepção etimológica deste conceito que refere-se aquilo que não pode ser dividido –, possui suas concepções filosóficas, morais e religiosas e expressa de forma livre estas concepções, que ocorrem em concomitância com outros. Ao efetivar esse debate as idiossincrasias são respeitadas. Nisto, consiste a razão pública: a livre expressão de pensamento e a ciência de que este será respeitado. Por conseguinte, isto permite que os valores políticos dos indivíduos sejam também visto dentro da esfera do liberalismo político.

Para Rawls uma concepção política de justiça possui três características principais, que são exemplificadas pela justiça como equidade. A primeira diz respeito ao objetivo de uma concepção política. Esta refere-se a uma concepção moral elaborada para instituições políticas, sociais e econômicas, que se aplica ao que ele denomina de “estrutura básica” (principais instituições políticas, sociais e econômicas de uma sociedade) da sociedade, também compreendida com democracia constitucional moderna. Sendo assim, o ponto em que inicia a ideia política de justiça é a estrutura das instituições básicas, bem como, princípios, critérios e preceitos que se aplicam a ela. A segunda característica refere-se a uma concepção política de justiça com uma perspectiva autossustentável. Esta característica destaca que uma concepção política de justiça é diferente de muitas doutrinas morais, tendo em vista que estas são comumente consideradas visões geris e abrangentes, pois, uma concepção política busca elaborar um entendimento plausível, apenas para a estrutura básica e não envolve compromisso com qualquer outra doutrina. A terceira característica é a de que uma concepção de justiça tem seu conteúdo expresso por meio de certas ideias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de uma sociedade democrática. As concepções religiosas, filosóficas e morais são chamadas por Rawls de “cultura de fundo” da sociedade civil. Trata-se da cultura do social, do cotidiano (igrejas, universidades, sociedades de eruditos e cientistas, clubes e times etc.) e não do civil.

A ideia fundamental de justiça como equidade, onde todas as outras estão articuladas sistematicamente, é a da sociedade como sistema equitativo de cooperação no transcurso do tempo, de geração em geração. Rawls aponta três pontos que especificam a ideia de cooperação social: a) a cooperação distingue da simples atividade coordenado de forma social; b) a cooperação presume termos equitativos. São os termos que cada participante pode satisfatoriamente aceitar, quando todos os outros aceitarem. Estes termos implicam uma ideia de reciprocidade; c) a ideia de cooperação social exige uma perspectiva de vantagem racional ou do bem de cada participante. Esse bem se refere ao que os envolvidos na cooperação buscam alcançar.

À ideia de reciprocidade está ligada à de imparcialidade, pois é motivada pela busca da promoção do bem coletivo. Esta ideia de reciprocidade refere-se a uma relação entre os cidadãos demonstrada por princípios de justiça que regulam a sociedade onde todos tem algum tipo de benefício. Imbricada a esta, está a de benefício mútuo que se refere a obtenção de benefícios que cada participante obtém, dentro da esfera dessa sociedade baseada em uma justiça com equidade. Reciprocidade não se refere a benefício mútuo. Dentro desta perspectiva, surge a questão que é a de se entender o conceito de justiça como equidade de maneira a abarcar os deveres de uma geração (atual) em relação a outra (futura), em uma forma de poupança justa. A Constituição Federal (CF) do Brasil tem um exemplo do conceito de justiça como equidade nesta perspectiva de reciprocidade. O art. 225, que trata sobre o meio ambiente diz que:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1998, grifo nosso).

Na CF o direito ao meio ambiente não é um atributo exclusivo de um indivíduo ou de uma comunidade. O termo “Todos têm direito” determina que tanto os brasileiros, natos ou naturalizados, e os estrangeiros residentes e não residentes, têm o direito de gozar de meio ambiente ecologicamente equilibrado. Em um artigo (FEITOSA, 2017) já havia destacado que Rocha e Queiroz (2017) argumentam que o meio ambiente, sob a ótica de direito fundamental, possui três dimensões: individual, social e intergeracional. 1) Individual porque enquanto pressuposto da sadia qualidade de vida, interessa a cada pessoa, considerada na sua individualidade como detentora do direito fundamental à vida sadia, neste sentido, com base no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o indivíduo tem direito a uma vida digna. Na verdade, não significa apenas manter-se vivo, é também preciso que se viva com qualidade, o que implica conjunção de fatores como saúde, educação e produto interno bruto, segundo padrões elaborados pela Organização das Nações Unidas, sendo certo que, em tal classificação, a saúde do ser humano alberga o estado dos elementos da natureza (água, solo, ar, flora, fauna e paisagem). 2) Social, porque como bem de uso comum do povo (portanto, difuso), o meio ambiente ecologicamente equilibrado integra o patrimônio coletivo. Não é admissível, em nome deste direito, apropriar-se individualmente de parcelas do meio ambiente para consumo privado, pois a realização individual deste direito fundamental está intrinsecamente ligada à sua realização social. 3) Intergeracional, tendo em vista, que a atual geração, historicamente situada no mundo contemporâneo, deve defender e manter o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as futuras gerações. Nesse sentido, a preservação do meio ambiente para as gerações atuais e futuras apontada no art. 225 da CF é claro exemplo de justiça como equidade na perspectiva da reciprocidade.

Rawls destaca que as pessoas participam deste sistema de cooperação a partir de faculdades morais aliadas aos elementos do entendimento de cooperação social, que são as capacidades de ter “senso de justiça” – capacidade de compreender a concepção pública de justiça que caracteriza os termos equitativos de cooperação social, aplicando-a e agindo em sua conformidade  e “concepção de bem” – capacidade de formar, revisar e procurar concretizar racionalmente uma concepção de vantagem racional  pessoal, ou bem.

A justiça como equidade retoma a doutrina do contrato social e adota uma variante de última resposta: os termos equitativos da cooperação social são compreendidos como um acordo de vontades das pessoas envolvidas, quais sejam, cidadãos livres e iguais, oriundas e componentes de uma sociedade em que vivem. As condições deste contrato, por óbvio, devem ser estipuladas em níveis equitativos. Tais condições devem albergar pessoas livres e iguais. Não se deve permitir a algumas pessoas mais direitos em relação a outras. Ademais, meios coativos físicos e psicológicos devem ser rechaçados.

Rawls rechaça a ideia de que uma concepção metafísica de pessoa é por ele desenvolvida. Contudo destaca que o simples fato de negar essa ideia é preciso demonstrar, pois a negação em si não garante a inexistência de uma concepção metafísica de pessoa, apresentado por ele na Conferência 1. Sua descrição de pessoa refere-se a uma concepção política. Uma concepção política de pessoa pressupõe a ideia de que liberdade. Parece paradoxal esta afirmação, pois a metafísica se relaciona intimamente com o conceito de liberdade. Para ele os cidadãos são concebidos como indivíduos que se julgam livres em três aspectos: a) cidadãos são livres no sentido de conceberem a si mesmos e aos outros como indivíduos que têm a faculdade moral de ter uma concepção de bem. O que não significa os cidadãos estão inevitavelmente ligados ao esforço de realização e concepção específica do bem que professam num determinado momento. Ao gozarem da liberdade, os cidadãos pleiteiam o direito de considerar sua pessoa independente de qualquer ideia específica do sistema de fins últimos associado a essa concepção. Dada a possibilidade moral de modificar racionalmente uma concepção do bem, sua identidade pública da pessoa livre não é afetada; b) os cidadãos se veem como livres ao se considerarem fontes auto autenticadoras de reivindicações válidas. Buscam reivindicar suas concepções do bem. Compreendem que tais reivindicações têm um peso próprio independentemente de serem oriundas de deveres e obrigações especificados por uma ideia política; c) os cidadãos se veem como livres pois refere-se a serem percebidos como capazes de assumir responsabilidade por seus objetivos, o que afeta a maneira de avaliar suas reivindicações. Existindo instituições de base justas, os cidadãos são considerados capazes de ajustar seus objetivos e aspirações ao que é razoável esperar que venham fazer.

Rawls destaca que falar que uma sociedade bem-ordenada é estar falando de uma sociedade que possui três características: 1) refere-se a uma sociedade onde cada indivíduo aceita, e tem a consciência que os outros também aceitam, os mesmos princípios de justiça; 2) todos reconhecem, ou há bons motivos para desta forma acreditar, que as principais instituições políticas, sociais e a forma como se adequam a um sistema de cooperação está em concordância com os princípios citados no item anterior; 3) os cidadãos devem possuir um senso normalmente efetivo de justiça, atuando conforme as instituições básicas da sociedade, que compreendem como justa. Em uma sociedade que possui estas características, que reconhece a justiça de forma pública, estabelece um ponto de vista comum, a partir do qual as reivindicações dos cidadãos podem ser julgadas.

Destaca-se que uma concepção de justiça torna-se fracassada quando não alcança o apoio razoável de cidadãos que professam doutrinas abrangentes ou por não alcançar um consenso razoável. A razão para não se alcançar este apoio ou consenso razoável dos cidadãos está no fato de que a cultura política de uma sociedade democrática possui três fatos gerais que, quando não alcançados provocam a não consenso entre os cidadãos. O primeiro é que a diversidade das concepções religiosas, filosóficas e morais não são simples condições históricas que desaparecem brevemente. O segundo fato, que está intimamente ligado ao primeiro, refere-se a um entendimento compartilhado e contínuo que tem por objetivo uma única doutrina religiosa, filosófica e moral só pode ser mantida pelo uso opressor do Estado, logo, não se trata(ria) de um Estado democrático. O terceiro fato geral é que um regime democrático longevo e estabilizado, não é dividido por tendências doutrinárias conflitantes e classes sociais hostis. Recebe apoio voluntário, pelo menos, da maioria de seus cidadãos politicamente ativos.

Pelo fato de não existir uma doutrina religiosa, filosófica e moral que seja professada por todos os cidadãos, pelo menos em um Estado democrático, a concepção de justiça em uma sociedade democrática bem-ordenada, precisa ter o que Rawls chama de “o domínio político” e seus valores. Para isso, os cidadãos que professam doutrinas abrangentes razoáveis, porém opostas, deve, fazer parte de um consenso sobreposto, ou seja, aceitem, de forma ampla, com uma concepção de justiça que determina o conteúdo de seus julgamentos políticos sobre as instituições básicas; e desde que, as doutrinas abrangentes que não são razoáveis não disponham de uma aceitação necessária para retirar a justiça necessária da sociedade.

Rawls compreende que uma sociedade democrática bem-ordenada não é uma comunidade, nem, em termos gerais, uma associação. Aqui, ele considera uma comunidade como um tipo especial de associação unida por uma doutrina abrangente, como uma igreja, por exemplo. Os membros das associações têm frequentemente fins compartilhados, mas estes não constituem uma doutrina abrangente e podem até ser puramente instrumentais. Ele destaca que uma sociedade democrática deve ser vista como um sistema social completo e fechado, pois é auto suficiente e possui espaço para todos os principais objetivos da vida humana. Também é fechado, pelo fato de se ingressar pelo nascimento e somente se sai pela morte. Desta forma, o ingresso na sociedade ocorre com o nascimento onde se passará toda a vida, diferente de uma associação em que se refere a um ato voluntário e se exige razão. Nesse contexto, os princípios de justiça são aqueles que formam o mundo social, onde o caráter e a concepção que se tem de si e também das nossas visões abrangentes com a concepção do que é certo é formado.

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Sobre o autor
Adriano Brito Feitosa

Advogado, professor, palestrante, consultor jurídico e empresarial. Mestrando em Filosofia (UFBA); MBA (em andamento) em Marketing, Branding e Growth (PUC/RS); Especialização (em andamento) em Direito 4.0: Direito Digital, Proteção de dados e Cibersegurança (PUC/PR); Especialização (em andamento) em Gestão de Risco, Compliance e Auditoria (PUC/PR); Graduação (em andamento) em Ciências Contábeis; Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Advocacia Trabalhista. Especialista em Relações Pessoais e Gestão de Conflitos. Especialista em Métodos de ensino e aprendizagem numa perspectiva andragógica. Bacharel em Direito. Bacharel em Teologia. Bacharel em Filosofia. Fui técnico judiciário no Tribunal de Justiça do estado de Rondônia, onde exerci a função gratificada de conciliador judicial. Fui estagiário de Direito nos seguintes órgãos: Tribunal de Justiça, Justiça Federal, Procuradoria Geral Estadual, Ministério Público Estadual e Ministério Público Federal. Fui estagiário de direito nos escritórios Enry Gouvea Advocacia e Carlos Alberto Trancoso Justo Advocacia. Fui estagiário administrativo no Ministério da Fazenda. Foi membro/colaborador do grupo de estudos "Fenomenologia e Hermenêutica", na Universidade Estadual de Feira de Santana, departamento de Filosofia, sob a orientação da Doutora Tatiane Boechat Abraham Zunino; Foi membro/colaborador do grupo de estudos "Nomisma, Riqueza e Valor: um estudo sobre o pensamento econômico de Aristóteles", na Universidade Estadual de Feira de Santana/BA, departamento de Filosofia, sob a orientação da Doutora Adriana Tabosa. Foi membro/colaborador do grupo de estudos "Pós-modernidade", no Seminário Latino Americano de Teologia da Bahia, sob a orientação do Doutor Daniel Lins; - Foi aluno especial do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FEITOSA, Adriano Brito. O conceito histórico-metafísico de justiça e o conceito liberal de justiça de John Rawls na Conferência 1 em seu O liberalismo político. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6384, 23 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87533. Acesso em: 22 dez. 2024.

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