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Constituinte:

Constituição ou Desconstituição?

10/08/2006 às 00:00
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            Nos últimos dias, esteve (e ainda está) sob forte debate nos meios de comunicação a questão lançada pelo Presidente Lula a respeito da necessidade de uma nova Constituinte para a promoção da reforma política. Ressuscita-se, portanto, a idéia de novamente se elaborar mais uma Constituição para o Brasil e, para tanto, faz-se indispensável a manifestação do Poder Constituinte Originário.

            Só para lembrar: salvo a concepção de Emmanuel Joseph Sieyes, feita na obra "Qu’est-ce que le Tier État?", para quem o titular do poder constituinte era a nação, é unânime a afirmação de que, em qualquer Estado Democrático de Direito, tal poder pertence ao povo, que normalmente o exerce por meio de representantes.

            Em tese, a expressividade do Poder Constituinte Originário se dá justamente em um momento de ausência de Estado, sendo ele a força responsável pela instituição de algo que até então não existia. No entanto, na prática, o fenômeno não se mostra dessa forma. O Poder Constituinte originário se manifesta em locais ou situações nas quais já existe uma ordem jurídica, sendo necessária a perda da validade dessa ordem para que possa se brotar novamente.

            Conforme dito por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "essa perda de eficácia traduz um evento revolucionário, ou melhor, a revolução quebra a Constituição até então em vigor (pois revolução juridicamente falando, é sempre rompimento da ordem vigente) e assim abre caminho para a nova Constituição. É por isso que se costuma dizer que a revolução é o veículo do Poder Constituinte originário". [01] No entanto, observa-se que há Constituições não precedidas de revolução, que decorrem ou de uma reforma da ordem anterior, acarretando enormes inovações e repletas mudanças, ou concedidas por um Estado libertador a uma antiga colônia, que anteriormente estava sob seu domínio.

            No momento da confecção da Constituição, o Poder Constituinte do agente desaparece, restando apenas o que lhe foi delegado pela Constituição, enquanto que o poder do titular permanece; havendo necessidade de ajustes ou modificações que não ocasionem a ruptura da ordem vigente, utiliza-se apenas do poder derivado.

            No caso em questão, sem prejuízo das reformas poderem ser feitas por meio do poder constituinte derivado, de fato, juridicamente, seria possível apresentar por meio de Emenda Constitucional uma proposta de convocação de uma Assembléia Constituinte, e uma vez aprovada pelo Congresso Nacional, e na seqüência submetida a plebiscito e aceita pelo povo, estaria justificado que o detentor do Poder Constituinte Originário manifestou-se a favor de uma nova Carta.

            Contudo, é de se observar que o Brasil teve, ao longo de sua história, oito Constituições: quatro foram democráticas (1891, 1934, 1946, 1988) e quatro foram impostas (1824, 1937, 1967, 1969 [02]). Além desses diplomas, o país teve dois outros, provisórios [03], que serviram como Constituição em épocas de transição política.

            Independentemente da reiterada e sólida idéia de que as Constituições brasileiras são provisórias (a última de 1988, com 18 anos, já sofreu 52 Emendas, enquanto a americana, que tem 217 anos, teve apenas 26), analisando a história brasileira, percebe-se que a edição seqüencial das Constituições está diretamente ligada aos momentos políticos brasileiros: Independência do País, Proclamação da República, queda da política do café com leite, início e fim do Estado Novo, e inicio e fim da ditadura militar.

            Portanto, a primeira questão a ser indagada é qual o momento político atual que justificaria a convocação de uma nova Assembléia Constituinte; em seguida, se a resposta consistir na necessidade de se realizar a alegada reforma política, analisar o que realmente se quis dizer com isso, no que consistiria de fato a reforma política – uma vez que outras reformas, como a Administrativa (EC 19/98), parte da Previdenciária (EC 20/98 e 41/03) e a do Judiciário (EC 45/04), foram realizadas por meio do poder derivado.

            O único motivo técnico que justificaria a invocação do Poder Constituinte Originário é a necessidade de se alterar uma das cláusulas pétreas previstas no parágrafo 4º do artigo 60 da CF, que são as seguintes:

            a) Forma Federativa de Estado;

            b) Voto Direto Secreto Universal e Periódico;

            c) Separação de Poderes;

            d) Direitos e Garantias Individuais;

            Se analisarmos bem, todas elas representam características e garantias da preservação de um Estado Democrático de Direito. O voto secreto e igual para todos é a principal arma que garante a qualquer cidadão, independentemente de sua condição, a possibilidade de escolher seus governantes; sendo o voto periódico, concede-se a chance de trocar os mandatários quando a linha governista não satisfaz os anseios populares. A separação de poderes permite que exista um mecanismo de controle do poder pelo poder, evitando assim que algum deles se sobressaia de forma absoluta. Função semelhante acaba tendo o Federalismo, que reparte competências entre diversos entes políticos. Por fim, os direitos individuais asseguram aos indivíduos a condição de não sofrerem abusos por porte do Estado, que assim torna-se servidor e não senhor dos súditos.

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            Chama a atenção ainda o fato de se invocar apenas a necessidade da reforma política, deixando-se de lado um dos pontos mais importantes que enseja reparo, que é o Sistema Tributário Nacional. Destaque-se particularmente nesse ponto que o embrião das Constituições, a Carta Magna de João Sem Terra de 1215, foi elaborado justamente por conta de uma alegada cobrança exagerada de impostos; nesse mesmo sentido, a Constituição Americana, que brotou de uma disputa envolvendo aumento das tarifas sobre chumbo, tinta, papel e chá, em 1767, quando o Reino Unido aprovou os Atos de Townsend, criando revolta na população americana.

            Acrescente-se que a tendência atual da hermenêutica constitucional dispensa a elaboração de novos textos que visem apenas adequar o antigo à realidade moderna e atual do mundo globalizado e cibernético.

            A história constitucional demonstra que, além das mudanças previstas, formalmente as Constituições passam por um processo de transformação diverso, que está diretamente relacionado com a interpretação do sistema constitucional. A evolução dos conceitos no mundo jurídico e a modificação dos sentidos de determinados institutos pode implicar na detecção de realidades distintas, em épocas diversas, mesmo quando se está diante de um mesmo mandamento.

            Trata-se da mutação constituição, sobre a qual leciona Uadi Lammêgo Bulos:

            "O caráter dinâmico e prospectivo da ordem jurídica propcia o redimensionamento da realidade normativa, onde as constituições, sem revisões ou emendas, assumem significados novos, expressando uma temporalidade própria, caracterizada por um renovar-se, um refazer-se de soluções, que muitas vezes, não promanam de reformas constitucionais [04]

".

            De acordo com Konrad HESSE, sendo a Constituição "um sistema aberto de normas e princípios", deve ela "ficar imperfeita e incompleta, porque a vida que ela quer ordenar é vida histórica e, por causa disso, está sujeita a alterações históricas" [05].

            Além de Hesse, Friedrich Muller e Karl Loewenstein também destacam a mutação como um fenômeno que muitas vezes dispensa até mesmo a reforma, tendo esse último observado que, enquanto que a reforma constitucional possui um significado formal e outro material, as mutações assim não o são, pois a letra do texto constitucional não é alterada, permanece intacta.

            Finalizando, indagamos: Constituinte para constituir o quê? Um novo modelo de Estado em uma época em que o Democrático de Direito se alastra cada vez mais pelo mundo?


Notas

            01

Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 27a edição, São Paulo, 2001. p.26.

            02

A doutrina diverge se esta é uma Constituição autônoma ou não, vez que é fruto de várias emendas e atos institucionais relativos a Constituição de 1967.

            03

O Decreto Republicano no 1 de 15 de novembro de 1889 e o Decreto 19.398 em 11 de novembro de 1930 no Governo Vargas.

            04

Bulos, Udi Lammego, Mutação Constitucional, Saraiva, São Paulo, 1997, p.53.

            05

Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, trad. Luís Afonso Heck, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1998, p. 40.
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Sobre o autor
Caio Marco Berardo

assistente Jurídico e mediador Judicial do TJ/SP, professor de Direito Constitucional do Curso FMB, especialista em Direito Publico pela ESMP/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERARDO, Caio Marco. Constituinte:: Constituição ou Desconstituição?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1135, 10 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8782. Acesso em: 28 mar. 2024.

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