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Criminologia da complexidade:

reflexões epistemológicas

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09/03/2021 às 13:35
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DISCUSSÃO

Os três programas de pesquisa da Criminologia apresentados nesse estudo mostram que existe uma separação abismal entre o valor da abordagem etiológica e o valor dos outros paradigmas.

Na agenda de trabalho da Criminologia crítica, por exemplo, Dias & Andrade (1997, p. 177) lembram que “não se pode esquecer que muito dos postulados de fundo daquelas teorias [bioantropológicas] continuam a presidir ao quadro de representações coletivas e aos estereótipos mais divulgados em relação ao crime e ao criminoso. E, por isso, [estão] a pré-determinar as soluções práticas da política criminal”.

Segundo os mesmos autores:

É o que acontece com o modelo médico de resposta ao crime e ao criminoso e com a ideologia de tratamento que lhe preside. Forma-se uma retórica de guerra ao crime cada vez mais difundida na mentalidade coletiva e nos discursos políticos. Por analogia, considera-se que o delinquente é um vírus que importa erradicar, ou um inimigo, que importa combater (DIAS & ANDRADE, 1997, p.178).

Outros adversários da Criminologia biológica afirmam que “a personalidade é função de vários fatores, apenas um dos quais é a hereditariedade. As famílias criminosas somente o são pelo ambiente contaminador em que vivem seus membros” (ZAFARONNI & OLIVEIRA, 2010, p. 321). Nessa linha de raciocínio, “o homem vive numa atmosfera herdada, mas pode sublimar tendências e dar vazão às inclinações negativas pela prática do esporte, pela produção artística ou literária. O atleta que se exaure nos exercícios físicos de cada dia perde ali a agressividade” (ZAFFARONI & OLIVEIRA, 2010, p. 322).

Na opinião dos mesmos autores (ZAFFARONI & OLIVEIRA, 2010, p. 290): 

Não há evidência alguma de que violência e vingança sejam fatalismo biológico. A verdade é que não existe evidência deste destino biológico da espécie. Muitos são os comportamentos que historicamente foram considerados condicionados ou naturais, quando eram produto da cultura, e frequentemente, como recurso de poder, pretendeu-se que eles eram instituições naturais ou padrões culturais.

Na agenda de trabalho da Criminologia pós-crítica, segundo Salo de Carvalho, constam itens significativos do ponto de vista epistemológico como abertura do conhecimento; não-dogmatismo; transdisciplinaridade; atitude cética em relação ao Positivismo; humanização do saber criminológico com maior participação dos sujeitos envolvidos; apelo à complexidade; fim das grandes narrativas, etc. Entretanto, nessa mesma agenda de trabalho Salo de Carvalho (2010, p. 58) afirmou que:

É impossível apreender as causas e as origens da delinquência, pois os inúmeros fatores, as variáveis e os acasos que atuam nas e sobre as diversas pessoas que cometem os mais diferentes atos em circunstâncias absolutamente distintas de tempo, local, e forma de agir – fatores que tornam inconsistente qualquer individuação – inapropriado propor fins específicos e universais aos mecanismos da pedagogia e da moral punitiva. Se o evento delitivo é a experiência única e não repetível ‘na vida de quem o praticou e o sofreu, igualmente as técnicas punitivas quaisquer que sejam terão distintos impactos nas pessoas (des) cumprindo sempre seus objetivos, por mais nobres que sejam.

Com essa afirmação não se admite na Criminologia Pós-crítica do autor Salo de Carvalho a contribuição etiológica e a possibilidade de ser o crime um comportamento de origem biológica.

Salo de Carvalho preferiu concordar com Nietzsche:

Portanto, o que é a Verdade (do crime, do criminoso, da pena?). Responderá Nietzsche: um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que após longo uso parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esquece o que são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível [...].

Em outra passagem do seu livro, Salo de Carvalho (2010, p. 60) volta a dizer em que é importante o olhar transdisciplinar; também recusa “qualquer sistema fechado de pensamento”; e aponta a necessidade de “uma troca dinâmica entre as ciências exatas, as ciências humanas, a arte e a tradição”. Contudo, em outra passagem da mesma obra considera Salo de Carvalho que “a ruptura com as práticas criminológicas neopositivistas parece pois essencial, juntamente com a crítica às leituras advindas de linha obsoleta da própria criminologia crítica fundada em causalismos sociais e econômicos” (CARVALHO, 2010, p. 192).

Na agenda de trabalho da Criminologia Pós-crítica Salo de Carvalho (2010, p. 34) incluiu também a utilização da teoria pós-moderna “demonstrando que para problemas complexos é fundamental construir mecanismos complexos de análise, avessos às respostas binárias, unívocas e universais, bem como alheios à pretensão de verdade inerente à vontade do sistema que orienta os modelos científicos modernos”.

 A aversão à Criminologia positivista-etiológica foi mantida por Salo de Carvalho levando em conta os seguintes aspectos (CARVALHO, 2010, p. 7):

  1. Essa Criminologia é demarcada por saberes sanitaristas psiquiátricos e psicológicos;
  2. Tem feição essencialmente institucional;
  3. Reproduz a concepção patológica do crime e do criminoso e em decorrência disso propõe a sua demonização;
  4. Por último, reproduz perspectivas causal-deterministas

Salo de Carvalho descarta a participação da Neurocriminologia em seu projeto transdisciplinar pois:

As neurociências revitalizam o positivismo criminológico e ao criarem a especialidade neurocriminologia mantêm viva a rede de distribuição de estigmas do sistema punitivo. O retorno à biologia como explicação do comportamento humano e o uso da cultura para projetar qualidades negativas a determinados grupos (raciais, étnicos, sociais, religiosos e ou econômicos), resolvem duplo problema da tradição positivista: os criminosos nascem criminosos como pela cultura do grupo se tornam criminosos. Conforme assinala Jock Young, a fusão dos essencialismos culturais e biológicos permite condições ideais para o exercício de demonização bem sucedida e fabricação de monstros.

A Criminologia crítico-marxista de Alessandro Baratta (2002), da mesma forma, descartou a importância da abordagem etiológica, colocando em seu lugar os processos sociais de criminalização e de estigmatização, bem como a seletividade do sistema penal em relação a determinados sujeitos.

A rejeição do modelo etiológico da parte desse autor tem a seguinte motivação:

Uma investigação das causas não é procedente em relação a objetos definidos por normas, convenções ou valorações sociais e institucionais. Aplicar a objetos deste tipo um conhecimento causal-naturalista, produz uma “reificação” dos resultados dessas definições normativas, considerando-os como “coisas” existentes independentemente destas. [...] os “criminosos” são, sem dúvida alguma, objetos deste tipo: resultam impensáveis sem intervenção de processos institucionais e sociais de definição, sem a aplicação da lei penal por parte das instâncias oficiais e, por último, sem as definições e as reações não institucionais (BARATTA, 2002, p. 210).

Mas ao contrário do que afirmam tradicionalmente os adversários, o programa de pesquisa etiológico tem procurado desenvolver uma Criminologia da complexidade com a ajuda da Psiquiatria forense, da Neurocriminologia, e do Direito Penal. Uma característica relevante dessas novas abordagens é que continuam sendo etiológicas, mas não se restringem à visão clássica de uma causa representada por um único elemento biológico ou social independentes de outros fatores. As novas abordagens nessa área propõem uma causalidade relacional, interativa, ou seja, dois ou mais elementos ou disciplinas encontram-se em relação de simultaneidade, constituindo novos olhares e saberes complexos sobre a realidade social. A causa do crime é, portanto, uma inter-relação de fatores, sendo por isso multifatorial. Existem inclusive, causas distantes e próximas.

Na Psiquiatria forense, por exemplo, a integração de vários fatores ou disciplinas, especificamente, Medicina, Psicologia e Sociologia traz o conceito de “transtorno de personalidade antissocial” (TPAS).

Não será mais a loucura - como acontecia nos primórdios da psiquiatria - e sim uma classe particular de transtorno, o “transtorno de personalidade antissocial” (TPAS), o que se converterá em peça-chave da ampliação do universo de objetos compreendidos nos processos contemporâneos de medicalização do crime. A principal característica dessa conduta anormal seria a criminalidade violenta (MITJAVILA & MATHES, 2012, p. 1378; 1385).

O mesmo conceito considera que “a violência humana é consequência da perversão dos valores dominantes e do desenvolvimento psicológico provocado por graves perturbações na interação Mãe-Filho-Pai”. Nesse conceito, “a família e, fundamentalmente, em condições de pobreza, tende a ser observada como espaço privilegiado para o desenvolvimento do TPAS e da criminalidade que dele decorreria” (MITJAVILA & MATHES, 2012, p. 1389).

Usando esse conceito, pesquisa realizada por Rigonatti (1999) envolvendo um grupo de condenados por homicídio e estupro no Brasil concluiu que “não foram achadas correlações entre doença mental e crime; porém, os resultados apontam para a alta prevalência do transtorno de personalidade antissocial, que estaria presente em 96% dos homicidas e 84% dos estupradores” (MITJAVILA & MATHES, 2012, p. 1386).

A configuração do TPAS inclui os seguintes aspectos:

  1. Indiferença e insensibilidade diante dos sentimentos alheios.
  2. Atitude persistente de irresponsabilidade e desprezo por normas, regras e obrigações sociais estabelecidas.
  3. Incapacidade de manter relacionamentos estabelecidos.
  4. Baixa tolerância à frustração.
  5. Baixo limiar para a deflagração da agressividade e violência.
  6. Incapacidade de experimentar culpa.
  7. Grande dificuldade de aprender com a experiência ou com a punição que lhe é aplicada.
  8. Tendência a culpar os outros e a apresentar argumentações e racionalizações plausíveis para explicar um comportamento que leva o portador desse tipo de transtorno a entrar em conflito com a sociedade (MITJAVILA & MATHES, 2012).

Na Neurocriminologia, por sua vez, pesquisa realizada recentemente por Adrian Raine autor do livro The Anatomy of Violence (A Anatomia da Violência) “descreveu como funciona o cérebro de um indivíduo violento e como uma série de tratamentos pode prevenir esse tipo de comportamento” (SANTOS, 2018, p. 61). De acordo com esse pesquisador, “a Neurocriminologia pode ajudar a explicar os casos extremos de violência, pois é uma nova disciplina que está começando a se desenvolver [...] e envolve a aplicação de técnicas da neurociência para entender as causas do crime” (apud SANTOS, 2018, p. 61). Na explicação desse mesmo cientista, “é importante juntar tudo o que foi aprendido nos últimos anos - a genética, as técnicas de imagem cerebral, a neuroquímica, a psicofisiologia e a neurocognição - para explicar porque algumas pessoas crescem e se tornam criminosos violentos [...]” (SANTOS, 2018, p. 61).

A Neurocriminologia considera que “as formas diferentes de violência não têm a mesma base cerebral, conforme evidenciaram estudos com psicopatas em que os criminosos não têm empatia nem remorso” (SANTOS, 2018, p.  62). Estudos nessa área demonstraram que os psicopatas apresentam “um baixo funcionamento da amígdala, que é o centro emocional do cérebro” (SANTOS, 2018, p. 62). Outras pesquisas revelaram, inclusive, que nos indivíduos portadores de psicopatia a “estrutura física dessa área cerebral é 18% menor do que no resto da população da sociedade” (SANTOS, 2018, p. 62). Por esse motivo, “com o centro emocional reduzido e sem funcionar direito, os psicopatas passam a não sentir medo. E é por isso que eles quebram as regras da sociedade, pois não têm medo da punição” (SANTOS, 2018, p. 62).

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Entretanto, a Neurocriminologia chama a atenção para o fato de que:

Nem todo o comportamento violento pode ser explicado por disfunções no cérebro, devido a causas multifatoriais, pois na verdade, encontrar as causas da violência é muito mais complexo do que isso. [...] A amígdala é uma peça, o córtex pré-frontal é outra peça, e certamente há outras áreas cerebrais envolvidas. Mas também há outros tipos de peças; não é só a Biologia. Fatores sociais também são importantes. Desemprego, pobreza, preconceito racial, maus tratos paternos e más condições de habitação e educação têm seu papel nisso; e, inclusive, podem afetar o desenvolvimento cerebral. Acontece que por décadas os pesquisadores têm estudado só essas peças sociais, mas agora estamos descobrindo as peças biológicas do quebra-cabeça e o próximo desafio será colocar essas peças juntas (SANTOS, 2018, p. 63).

No Direito Penal, existem também algumas publicações que mostram a importância da Criminologia da complexidade, dentre elas, uma dissertação da Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo (USP), intitulada “Pedofilia: aspectos clínicos, éticos e forenses”, da autora Jessica Almeida (2014). A pesquisa dessa autora demostrou que a prisão de pedófilos condenados pela Justiça que cometerem crime sexual pode ser direcionada ao conhecimento clínico com a utilização de uma abordagem interdisciplinar, juntando-se a Medicina Forense, a Psiquiatria Forense, a Psicologia Jurídica, a Dogmática penal e a Bioética. A pergunta que se pretendeu responder nesse programa de pesquisa é se são necessárias ou não medidas terapêuticas para o prisioneiro portador de transtorno pedofílico.

A ontologia desse programa de pesquisa defendido na Pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, seção Penal, considerou que a pedofilia é um tema complexo e multifacetado; o que justifica a interdisciplinaridade visando acompanhar clinicamente o indivíduo portador de “distúrbio parafílico”.

A metodologia dessa pesquisa da USP desenvolveu uma análise tridimensional da saúde conforme recomenda a Organização Mundial (OMS) integrando aspectos biológicos, sociais e psicológicos nas políticas de bem-estar dos indivíduos, compondo finalmente um olhar biopsicossocial sobre a realidade do tema.

Foram realizadas entrevistas, principalmente com os agentes de saúde (médicos, psicólogos, psiquiatras); observação participante; e pesquisa bibliográfica e documental a respeito do tratamento clínico dedicado aos pedófilos (ou portadores de transtorno pedofílico).

A axiologia da pesquisa destacou como valor central a dignidade da pessoa, e propôs medidas clínicas alternativas ao apenado respeitando a livre escolha individual com a oferta de tratamento clínico voluntário.

A teoria de base dessa pesquisa se apoiou na interação ou diálogo entre o conceito de transtornos mentais, sexualidade humana, Direito Penal e bioética. Consequentemente, as medidas alternativas e eticamente defensáveis em favor do bem-estar e do desenvolvimento humano do apenado incluem: 1- voluntariedade do tratamento; 2-abordagem terapêutica interdisciplinar; 3- envolvimento e participação da família; 4-promoção de psicoterapia de grupos; 5- criação de centros especializados destinados à terapia dos pedófilos apenados; e 6- realização de campanhas educativas sobre o assunto, criticando mitos, enfraquecendo estigmas, e destacando a importância do tema dentro e fora dos presídios na perspectiva de uma análise clínica e social integrada.

Finalmente, o contexto delimitado por esse programa de pesquisa observou que existe uma história social e científica que desumaniza a pessoa do pedófilo; “circunstância que avaliamos ser inadequada e bastante perigosa”, conforme escreveu a autora da dissertação (ALMEIDA, 2014, p. 18).

Também foi utilizada a Criminologia clínica da inclusão social, que aborda o sujeito em seu contexto individual e social, entendendo que a prática da pedofilia tem rejeição social intensa, porém, não se admite nesse programa de pesquisa o uso de estereótipos comuns na dogmática jurídica (chamados frequentemente de monstros, de criaturas anormais, de predadores sexuais, etc.), que atrapalham o progresso da Criminologia sobre esse tema e condenam o pedófilo a uma eterna exclusão e fracasso existencial.

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Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor de Criminologia; associado 4, da FADIR - UNIFESSPA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. Criminologia da complexidade:: reflexões epistemológicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6460, 9 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88040. Acesso em: 16 nov. 2024.

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