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Ilegalidade da cláusula de não devolução da taxa de inscrição em concurso público

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06/05/2022 às 14:40
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3. A APLICAÇÃO DO CDC AOS CONCURSOS PÚBLICOS

Doravante, trataremos agora da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor nos concursos públicos, que nada mais são que serviços públicos prestados no interesse público.

Primeiramente, convém assinalar o que diz o CDC. Eis seu artigo 2º, verbis:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (g. n.)          

Consequentemente, conforme expressa disposição legal, as pessoas jurídicas de direito público, quando prestem serviços no mercado de consumo, são consideradas fornecedores para os fins do Código do Consumidor.

Outrossim, conforme o artigo 1º, § 2º, inciso II, da Lei Federal nº 13.460/2017, a qual estatui normas básicas para participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente pela administração pública, estipula que a aplicação desta Lei não afasta a necessidade de cumprimento do disposto na Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990, quando caracterizada relação de consumo.

Ab initio, cabe trazer a baila o conceito de serviço público proposto pelo administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello e adotado na obra dos professores Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, os quais consideram serviço público unicamente a prestação direta à população, pela administração pública ou pelos delegatários de serviços públicos, de utilidades ou comodidades materiais voltadas à satisfação de suas necessidades ou meros interesses. (Direito Administrativo Descomplicado. 29ª Ed. Metódo. 2021. Pág. 804)

Nesse diapasão, conforme anota o professor Fabrício Bolzan[6],

Nesse sentido, sem dúvidas o usuário do serviço público se enquadra no conceito de consumidor em sentido estrito. Como exemplo, basta pensar no serviço de energia elétrica, ao qual somos destinatário final (...) O STJ desempenha um papel interessante e de equilíbrio na aplicação da interação entre Direito Público e Direito do Consumidor. Essa posição intermediária do STJ, entendendo que se aplica o CDC ao serviço público desde que uti singuli e remunerado por tarifa, é um bom exemplo para um tribunal que tem que se deparar com matéria de ordem pública e de direito privado e, muitas vezes, equacionar o meio-termo fazendo o diálogo entre as fontes e tentando buscar a melhor aplicação possível ao caso concreto. (g. n.)                                   

Prosseguindo, fato é que, de acordo com o Superior Tribunal de Justiça, aplica-se a Lei Federal n. 8.078/90 quando o serviço público for uti singuli e remunerado por tarifa ou preço público.

Nesse espírito, a Advogada da União Nathália Stivalle Gomes anota que[7]

O Poder Público, diretamente, por seu permissionário ou concessionário, quando presta serviço público remunerado mediante tarifa ou preço público, é fornecedor enquadrado pelo CDC e deve prestá-lo de forma adequada e eficiente.                                           

Ora, a maioria dos certames são prestados individualmente somente a quem se interessar, e remunerados por tarifa, visto que o preço da inscrição geralmente é feito por estimativa de custos, mediante pesquisa de mercado em procedimento licitatório, e não por lei em sentido estrito.

Até por esse motivo, soa estranho os editais fazerem constar como “taxa” de inscrição, quando, na maioria das vezes, são tarifas ou preços públicos.

Conforme entendimento antigo do STF, preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias (Súmula n. 545).

De outro vértice, para o Código Tributário Nacional, as taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição (art. 77).

Nessa linha, o professor Roberto Caparroz diferencia taxa de tarifa, nos seguintes termos:[8]

a) Taxas: são receitas derivadas, obtidas em razão do poder de tributar do Estado, cobradas quando do exercício do poder de polícia ou da prestação de serviços públicos, utilizados ou colocados à disposição do contribuinte, em regime de direito público, com pagamento compulsório por força de matriz legal. Exemplo: taxa de coleta de lixo, taxa de fiscalização de estabelecimentos etc.

b) Tarifas (também tratadas, em provas, como sinônimo de preço público): são receitas originárias, provenientes da atuação do Estado ou de terceiros (concessionárias de serviços públicos, por exemplo), quando da exploração de atividade econômica em regime de direito privado. São de pagamento facultativo, pois a relação entre as partes instaura-se mediante manifestação de vontade, por contrato. Exemplos: tarifa de consumo de água, energia elétrica etc. (g. n.)                 

De forma análoga, a Defensora Pública Federal Fernanda Marques Cornélio assinala que[9]

Assim, o preço público é cobrado pela utilização de um serviço facultativo (não compulsório), livremente contratado pelo usuário, colocado a sua disposição pela administração pública ou quem lhe faça as vezes. Por exemplo, o serviço de telefonia. Já a taxa de serviço é compulsória, visto que a lei assim a define e o serviço é posto a disposição do usuário (contribuinte), estando em efetivo funcionamento. Exemplo, o serviço de coleta domiciliar de lixo. (g. n.)

Portanto, não há como classificar o valor da inscrição no concurso público como taxa, por não decorrer do poder de polícia e não ser compulsória, livremente contratada pelos usuários, tampouco instituída por lei, consoante o princípio da legalidade tributária previsto no artigo 150, inciso I, da Lex Mater, cabendo, dessa forma, a aplicação da legislação consumerista, além de não existir utilização potencial de um concurso público.

Dessa forma escreve a Advogada Flávia Teixeira Ortega, citando José Geraldo Brito Filomeno[10],

Importante salientar-se, desde logo, que aí não se inserem os 'tributos', em geral, ou 'taxas' e 'contribuições de melhoria', especialmente, que se inserem no âmbito das relações de natureza tributária. Não há que se confundir, por outro lado, referidos tributos com as 'tarifas' estas, sim, inseridas no contexto de 'serviços' prestados diretamente pelo Poder Público, ou então mediante sua concessão ou permissão pela iniciativa privada. O que se pretende dizer é que o 'contribuinte' não se confunde com 'consumidor', já que no primeiro caso o que subsiste é uma relação de Direito Tributário, inserida a prestação de serviços públicos, genérica e universalmente considerada, na atividade precípua do Estado, ou seja, a persecução do bem comum. (g. n.)

Nessa esteira, o Código do Consumidor prescreve que os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos (art. 22).

Não por outro razão que o guardião da Constituição entendeu, na ADI n. 800/RS, que “o pedágio cobrado pela efetiva utilização de rodovias não tem natureza tributária, mas de preço público, consequentemente, não está sujeito ao princípio da legalidade estrita”.

De forma semelhante, o Tribunal da Cidadania, por meio da Súmula n. 412, proclamou que “a ação de repetição de indébito de tarifas de água e esgoto sujeita-se ao prazo prescricional estabelecido no Código Civil”, afastando o regime de direito público dessa relação de consumo, cujo prazo prescricional é o quinquenal, conforme o Decreto n. 20.910/1932.

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Nada obstante, cabe fazer uma emenda quanto a alguns respeitáveis entendimentos contrários.

Com efeito, Cláudia Lima Marques chama a atenção para o fato de que o regime dos contratos concluídos com a administração é especial, mesmo se regido por leis civis, não perde a relação seu caráter dito de verticalidade, reservando-se à administração faculdades que quebram o equilíbrio do contrato.[11]

De seu turno, Marçal aduz que o regime de Direito Administrativo prepondera sobre o Direito do Consumidor nas hipóteses em que haja regulamentação divergente e incompatível com o princípio da supremacia e da indisponibilidade do interesse público. Invoca, no caso, a aplicação do princípio da proporcionalidade, enquanto reconhece a utilização da disciplina prevista no CDC quando se tratar de disciplinas uniformes.[12]

Quanto ao tema, conclui de forma lapidar a Juíza Federal Tani Maria Wurster[13]:

Dada a complexidade de bens jurídicos a serem protegidos segundo o modelo de Estado proposto pela Constituição Federal, é insuficiente afirmar que o Código de Defesa do Consumidor se aplica, indistintamente e automaticamente, em face da prestação de serviços públicos.

A Lei 8.078/90 e a Lei 8.987/95, com vistas à regulamentação dos arts. 170, V, e 175 da Constituição Federal, reconheceram pontos de convergência entre a defesa do consumidor e a prestação de serviços públicos.

A compatibilização dos sistemas privado, de defesa do consumidor, e público, da prestação dos serviços públicos, naquilo que são incompatíveis, impõe a utilização do princípio da razoabilidade, a ser verificado caso a caso.

Os princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, no entanto, determinam que o regime de Direito Administrativo prepondera sobre o Direito do Consumidor. Neste caso, importante invocar, ainda, os princípios da alteração unilateral das condições da prestação do serviço, da vinculação ao edital no caso de licitação e da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro para justificar a posição adotada.

(...) De qualquer sorte, necessário reconhecer pontos de convergência entre os sistemas, como as prescrições protetivas do usuário previstas na legislação extravagante sobre o controle e prestação de serviços públicos e o reconhecimento da responsabilidade objetiva do Estado na hipótese de danos causados àquele. A incidência das prescrições da Lei 8.078/90 se distingue, ainda, segundo o tipo de serviço prestado, se uti singuli ou uti universi, cabendo invocá-las somente no primeiro caso, dado que, no segundo, o custeio dos serviços se dá através do pagamento de tributo, não se reconhecendo nele o conceito de “remuneração” previsto no art. 3º do CDC. (g. n.)

Desse modo, para Wurster, a aplicação da Lei n. 8.078/90 fica restrita aos casos de serviços prestados a usuários determinados, observando-se, prefacialmente, os princípios basilares do direito administrativo.

Por outro lado, mesmo para os autores que consideram que a relação travada entre a administração pública e os consumidores deva reger-se pela supremacia e indisponibilidade do interesse público numa relação verticalizada, não afastam por completo os influxos que tal relação sobre das normas protetivas do consumidor, que são de ordem pública e interesse social.

Ademais, as normas veiculadas nos editais possuem a roupagem de contrato de adesão (art. 54, CDC), colocando, de qualquer sorte, o consumidor como parte vulnerável da relação jurídica, já que não possui a prerrogativa de discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

Finalmente, a prática de não possibilitar ao consumidor o reembolso da quantia já paga, quando o certame não se realiza na data prevista, ou somente em caso de anulação, configura cláusula abusiva, sendo nula de pleno direito, conforme determina o artigo 51, incisos II e XI, do Código de Defesa do Consumidor.

Portanto, é razoável afirmar que a "supremacia do interesse público" exige que, nas relações qualificadas por partes desiguais, como sói ser as relações consumeristas e os processos seletivos de agentes públicos, seja dada proeminência às normas de ordem pública e interesse social insertas no Código de Defesa dos Vulneráveis.

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Sobre o autor
Celso Bruno Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal e Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno. Ilegalidade da cláusula de não devolução da taxa de inscrição em concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6883, 6 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88150. Acesso em: 19 abr. 2024.

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