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Ilegalidade da cláusula de não devolução da taxa de inscrição em concurso público

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06/05/2022 às 14:40
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Examina-se a ilegalidade da cláusula do edital que limita a liberdade do candidato de desistência do concurso público quando houver alguma alteração que implica novas condições, sobretudo quanto à data de aplicação das provas.

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo tratar da ilegalidade da cláusula de não devolução dos valores cobrados para a inscrição em concursos públicos, sobretudo com relação aos direitos administrativo e do consumidor. Foi realizada uma prévia e breve análise sobre os editais veiculados por alguns entes públicos. É necessária uma constante atualização dos estudos acerca das cláusulas veiculadas em editais de concursos públicos, especialmente considerando inexistir uma lei nacional que regule a matéria, o que faz com que cada entidade pública o veicule como melhor lhe aprouver, muitas vezes em contrariedade com o interesse público primário. Dessa forma, a maioria das questões sobre a interpretação das cláusulas editalícias acaba desaguando no Poder Judiciário, o qual, mediante justas liminares, acaba atrasando o trâmite célere da disputa, em prejuízo à legitima expectativa dos concurseiros. Com efeito, e principalmente, nessa época de pandemia da covid-19, muitas empresas organizadoras de certames públicos tem deixado de cumprir o cronograma previsto para a aplicação das provas, sob a alegação de preservação da saúde pública e, lado outro, não tem possibilitado aos candidatos inscritos optar por não aguardar uma nova data para a feitura das avaliações, retendo, dessa forma, o valor despendido pelos cidadãos para a inscrição no concurso. Outrossim, os dados foram coletados mediante pesquisa e revisão bibliográfica de literaturas de grandes expoentes do direito e, sobretudo, do direito administrativo, e produções científicas de pesquisadores das ciências jurídicas. Propõe uma diferente abordagem sobre as cláusulas impostas nos editais de seleções públicas, em benefício dos cidadãos, tendo como foco o direito do consumidor.

Palavras-chave: Concurso público. Edital. Cláusulas abusivas. Direito Administrativo. Direito do Consumidor.

Sumário:1.     INTRODUÇÃO..2. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E OS EDITAIS.. 3. A APLICAÇÃO DO CDC AOS CONCURSOS PÚBLICOS.. CONSIDERAÇÕES FINAIS.. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.. 


1.    INTRODUÇÃO

A Administração Pública, dos três poderes da República, de qualquer das esferas federativas, ao praticarem atos administrativos, devem obediência, em especial, aos princípios insculpidos no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988.

O principal deles, para os fins deste artigo, é o princípio da legalidade, estandarte do Estado de Direito, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, conforme artigo 5º, inciso II, da Carta Magna.

E lei, nesse contexto, deve ser entendida de forma restrita, como somente aquelas espécies normativas elencadas no artigo 59 da Lex Legum, atos normativos primários, até porque os decretos devem limitar-se a regulamentar a lei (art. 84, inc. IV).

O direito administrativo, didaticamente, é o ramo do direito público que regula a pratica dos atos administrativos em geral, sejam eles oriundos de qualquer dos poderes estatais, quando no desempenho de função administrativa, conforme artigo 1º, § 1º, da Lei Federal nº 9.784/99.

De outro vértice, o direito do consumidor, didaticamente, é o ramo do direito privado que regula as relações de consumo, sejam elas praticadas no âmbito público ou no privado. Nada obstante, possui normas de ordem pública e interesse social, nos termos dos artigos 5º, inciso XXXII, e 170, inciso V, da Constituição Cidadã, o que faz com que ele também possa ser considerado como ramo do direito público, nada obstante tal discussão não possua o condão de diminuir ou elevar sua importância na sociedade de consumo, ou de massas.

Dentro do direito do consumidor, podem ser citadas as Leis Federais nº 8.078/90 e 8.987/95, que regulam as relações de consumo e a prestação de serviços públicos por concessionários, permissionários ou autorizatários.

Importante salientar essa característica didática ou metodológica na separação em ramos do direito. Em verdade o direito, assim como o poder do Estado, é uno, e essa ramificação não se opera na realidade. Existem elementos de uma área do direito dentro da de outros, principalmente quanto ao direito administrativo e o direito consumerista.

Outrossim, o Brasil adotou o sistema da civil law (origem romano-germânica), cuja derivação desse sistema é o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, e por isso possui como característica ter uma vasta legislação para tratar de todos os assuntos, diferenciando-se dos países adotantes da commom law (origem inglesa), a qual, por sua vez, tem como característica o baixo volume de legislações e códigos, tratando boa parte de seu ordenamento jurídico por meio da jurisprudência construída por seu Poder Judiciário e guiados por um sistema de precedentes normativos vinculantes (stare decisis).

Mesmo com o Estado brasileiro flertando com o sistema de precedentes atualmente (como no caso das súmulas vinculantes, criadas com a EC nº 45/2004, e o efeito vinculante das decisões proferidas no controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal), ainda é inegável a importância e presença de normas produzidas pelo Poder Legislativo, nada obstante, tem-se defendido na doutrina a superação da ideia de legalidade para a ideia de legitimidade e juridicidade, as quais abrangem não só as leis aprovadas pelo parlamento, mas também os princípios que regem o ordenamento jurídico como um todo. Por essa razão, o papel dos estudiosos do direito, a communis opinio doctorumtraduzido principalmente no trabalho dos doutrinadores e cientistas jurídicos, é de extrema relevância. Pela natureza de modificação mais vagarosa da civil law (como se pode perceber no caso brasileiro, já passados vários meses da pandemia de coronavírus, o Congresso Nacional ainda discute leis sanitárias, as quais já deveriam ter sido aprovadas, como, por exemplo, se deve ser obrigatório ou não a renegociação com os consumidores de pacotes de serviços contratados com empresas privadas), esses trabalhos dos juristas são de suma importância para manutenção da efetividade e atualidade das normas jurídicas, inclusive para buscar seu aperfeiçoamento.

Por seu corolário, então, emerge com destaque a figura das relações de consumo, em particular com os concessionários, delegatários e contratados pela administração pública para prestação serviços públicos.

Nesse diapasão, os entes públicos devem observar e garantir a efetividade do princípio da defesa do consumidor, expressamente mencionado no artigo 170, inciso, V, da Lei das Leis, além da obrigação do Poder Público prestar serviço público adequado, nas sendas do artigo 175, parágrafo único, inciso IV, da Constituição de Outubro e artigo 6º, § 1º, da Lei n. 8.987/95.

Contudo, ressalta-se novamente não existir uma lei nacional que regre as relações travadas nos concursos públicos, fato que torna ainda maior a necessidade de respeito aos princípios constitucionais expressos e implícitos aplicáveis a administração pública.

Os entes estatais não podem olvidar, sobretudo, que a administração pública não é um fim em si mesmo, mas existe principalmente para servir aos administrados, sob pena de alcançarmos o totalitarismo, que é “um sistema político ou uma forma de governo que proíbe partidos de oposição, que restringe a oposição individual ao Estado e às suas alegações e que exerce um elevado grau de controle na vida pública e privada dos cidadãos. É considerado a forma mais extrema e completa de autoritarismo”, conforme definição extraída do Wikipédia.

Portanto, tendo como alicerce o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, mormente garantindo aos consumidores a prestação de serviço adequado pelo Estado, seja direta ou indiretamente, em regime de concessão, permissão ou autorização.

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a imprescindibilidade da existência e efetivo cumprimento das normas constitucionais, singularmente na sociedade de massa, onde a maioria dos negócios jurídicos assume a roupagem de contrato de adesão, como sói serem os editais de concursos públicos, consoante a ideia defendida neste trabalho.


2. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E OS EDITAIS

É corrente na doutrina a definição do princípio da legalidade como aquele para o qual o particular pode fazer tudo o que a lei não proibir, e a administração pública somente pode fazer o que a lei determinar (atos vinculados) ou autorizar (atos discricionários).

Pela relevância do tema, transcreve-se a lição de um dos maiores administrativistas brasileiros, o saudoso Hely[1]:

Na administração pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”.

De forma semelhante, escreve o Ministro Alexandre de Moraes, segundo o qual[2]

O tradicional princípio da legalidade, previsto no art. 5º, II, da Constituição Federal e anteriormente estudado, aplica-se normalmente na Administração Pública, porém de forma mais rigorosa e especial, pois o administrador público somente poderá fazer o que estiver expressamente autorizado em lei e nas demais espécies normativas, inexistindo, pois, incidência de sua vontade subjetiva, pois na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza, diferentemente da esfera particular, onde será permitida a realização de tudo o que a lei não proíba. Esse princípio coaduna-se com a própria função administrativa, de executor do direito, que atua sem finalidade própria, mas sim em respeito à finalidade imposta pela lei, e com a necessidade de preservar-se a ordem jurídica. (g. n.)

Destarte, e principalmente no âmbito dos concursos públicos, onde não há regramento legal, a administração pública, seja de forma direta, seja por meio de algum particular contratado, deve obedecer ao princípio da legalidade, extraindo da Constituição e da legislação correlata as normas que devem basilar as regras editalícias, abstendo-se de criar restrições que não sejam oriundas do regime jurídico administrativo, sob pena de abrir caminho ao controle externo de legalidade.

Ora, como se pode observar, a Constituição Federal de 1988, expressamente, previu a obrigatoriedade de obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, o último incluído pela Emenda Constitucional nº 19/1998, cuja ideia central é a de instituir uma administração pública gerencial.

Outrossim, a Lei de Processo Administrativo Federal prescreveu serem de observância obrigatória pela Administração Pública os princípios da “legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”, conforme seu artigo 2º.

Quanto ao tema, o Advogado Federal Ronny Charles observou que, na linha do quanto aqui defendido,[3]

Vinculação ao instrumento convocatório: em função de tal princípio, impõe-se o respeito às normas previamente estabelecidas como regramento do certame. O desacato à regra editalícia pode tornar o procedimento inválido, pela presunção de prejuízo à competitividade e à isonomia. De qualquer forma, o edital não é “lei entre os licitantes”, ele é regra de competição que precisa, obrigatoriamente, adequar-se aos ditames legais e aos princípios administrativos. (g. n.)

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Dessa forma, não cabe a administração pública criar regras editalícias a seu bel prazer, em desrespeito aos participantes da disputa, como se o edital fosse a lei suprema e irrefutável do tema, acima da Constituição da República e dos princípios gerais do direito.

Voltando aos ensinamentos do professor Hely, este afirmou igualmente que é certo que[4]

Os concursos não tem forma ou procedimento estabelecido na Constituição, mas é de toda conveniência que sejam precedidos de uma regulamentação legal ou administrativa, amplamente divulgada, para que os candidatos se inteirem de suas bases e matérias exigidas. Suas normas ou seu edital, desde que conformes com a Constituição Federal e a lei, obrigam tanto os candidatos quanto a Administração (RE 480.129-DF). (g. n.)

Portanto, é pacífico o entendimento da doutrina no sentido de que as regras do edital devem dupla obediência: uma a Constituição e outra a lei.

Contudo, pode-se observar que a maioria dos editais de concursos públicos contem regras, especialmente em relação ao valor da inscrição, no sentido de que estas não serão restituídas em hipótese alguma, desconsiderando até mesmo motivos de caso fortuito ou força maior, conforme dicção do artigo 393 do Código Civil de 2002, ferindo-se, nesse sentido, vários princípios administrativos, como legalidade e razoabilidade/proporcionalidade.

Por seu turno, também restam violadas as regras do pacta sunt servanda e da vinculação da proposta (art. 21, § 4º, da Lei Federal nº 8.666/93), pois a realização das provas em data à definir pode colidir com outros compromissos dos candidatos.

Assim, o princípio da vinculação ao instrumento convocatório é sempre invocado pela administração pública e seus delegados para justificar suas arbitrariedades. Entretanto, olvidam que a alteração das cláusulas contratuais exige nova publicação e reabertura do prazo de inscrição, conforme a Lei de Licitações determina, mediante aplicação analógica, fato praticamente nunca observado pelas bancas de concurso, em violação também ao princípio da competitividade, já que uma certa data pode não ser condizente com os interesses do cidadão, mas outra, pode possibilitar a sua participação, a depender de seus compromissos.       

Dessa forma, é inconcebível a administração pública utilizar-se das normas de direito administrativo somente quando lhe for conveniente.

Aliás, por esse motivo que o professor Mazza, na linha do mestre Hely, ensina que[5]

Desse modo, levando em conta seu significado para o Direito Administrativo, o art. 5º, II, da CF deve ser assim compreendido: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de ato administrativo. (g. n.)

Portanto, fácil perceber que os editais de certames não devem prever regras restritivas ao arrepio do ordenamento jurídico, especialmente aquelas que limitam a possibilidade dos candidatos desistirem de prosseguir na disputa quando houver alteração de alguma regra editalícia, principalmente a data das provas.

Nesse sentido, brilhante observação feita em sentença pelo juízo da 2ª Vara de Fazenda Pública do Distrito Federal, nada obstante, posteriormente, reformada pela 6ª Turma Cível do Tribunal de Justiça em grau de apelação, verbis:

Os réus argumentaram que o edital apenas foi publicado em julho de 2.020 (quando a curva epidemiológica estava em níveis alarmantes), em razão do déficit de agentes de polícia. É óbvio que o déficit de servidores públicos justifica a publicação do edital. Todavia, se a administração já tem à disposição dados que impedirá a realização do certame, em que pese o déficit, não há razoabilidade na decisão administrativa que publica edital, em especial em concurso desta magnitude e relevância que, historicamente, atrai milhares de candidatos. Em setembro de 2.020, após a finalização da data prevista para o pagamento da taxa de inscrição, quando a curva epidemiológica está em desaceleração, em condições melhores quando comparada com o mês de julho de 2.020, o concurso é suspenso em razão do considerável número de candidatos inscritos, fato já conhecido quando da publicação do edital. Além da publicação do edital no auge da pandemia, as provas somente foram suspensas após o final do prazo para pagamento das taxas de inscrição e, em momento em que o próprio Distrito Federal está a flexibilizar atividades econômicas que podem causar aglomeração de pessoas. O que se observa, como já registrado anteriormente, é a ausência plena de planejamento para o referido concurso público, tanto que o edital foi publicado no pior cenário da pandemia e a suspensão das provas ocorre apenas após o prazo final previsto para o pagamento da taxa de inscrição (Ação Popular nº 0706162-46.2020.8.07.0018).

Em sentido semelhante, de decisão proferida no contexto da pandemia do coronavirus quanto à condutas arbitrárias da administração pública em sede de concurso público, a 11ª Vara Federal de Curitiba assentou que

Nos termos do Edital nº 002/2020 (na redação do Edital n.º 16/2020)  a prova preambular objetiva e a prova de conhecimentos específicos foram marcadas para o dia 21.02.2021 às 13:30 horas. Na madrugada do dia 21 de fevereiro, a UFPR comunicou a suspensão da  aplicação de todas as provas previstas e o seu adiamento para outra data a ser oportunamente informada. Não merece ser acolhido o argumento da UFPR de que houve força maior. Isso porque todas as situações elencadas pela ré - urgência no provimento dos cargos policiais do Estado do Paraná; pandemia de Covid-19 e grande número de inscritos - eram de seu conhecimento há mais de seis meses. Em 12.03.2020, quando a UFPR firmou o contrato 16.378.179-4 com o Estado do Paraná, teve conhecimento do quadro de pessoal deficitário da Polícia Civil. Nesse mesmo mês (março de 2020), a Organização Mundial da Saúde reconheceu a Covid-19 como pandemia, momento em que passaram a ser exigidas medidas de biossegurança para a prevenção e o enfrentamento da doença. Finalmente, as inscrições para o concurso encerraram-se em 02.06.2020, data em que a banca examinadora já sabia do número dos candidatos. A existência de local adequado e de pessoal suficiente para a aplicação das provas deveria ter ocorrido, pelo menos, até três dias antes da aplicação das provas, conforme item 23.6 do Edital (Procedimento de Juizado Especial Cível nº 5011150-55.2021.4.04.7000)

Outrossim, em sede de recurso de apelação, a 1ª Turma Recursal do Paraná, nos autos 5011150-55.2021.4.04.7000, assentou, para fins de afastar a condenação do ente público em danos morais que "não há como dizer que houve abalo, ofensa ou deterioração de algum direito fundamental inerente à personalidade do candidato que seja comparável a uma difamação, abalo de crédito, lesão corporal ou outra situação que represente, por si só, dano moral indenizável, especialmente considerando a necessária resiliência psicológica própria de quem almeja exercer cargo na carreira policial, que, por sua natureza ligada ao risco da atividade de segurança, demanda o enfrentamento de situações diárias muito mais estressantes que o simples adiamento de uma prova teórica."

Ademais, avançando, a mesma Turma asseverou que "as verbas para satisfação dessa indenização serão assumidas pela autarquia de ensino, atividade social essencial ao interesse público sujeita a autonomia orçamentária sustentada por toda a sociedade, que, por isso, justificam a cautela na despesa a fim de evitar a inviabilização da sua atividade principal, que, repita-se, não é explorada pela finalidade lucrativa".

Ora, não há como concordar com o julgado proferido pelo 2º grau dos juizados especiais federais do Paraná. Primeiramente, não é porque o candidato prestará concurso para carreiras policiais que ele deve ser obrigado a suportar um dano superior ao de quem preste um concurso, por exemplo, para a Magistratura, sob pena de violação da isonomia e da legalidade (art. 5º, caput, e inciso II, da CF), eis que configura exigência não prevista em lei (obrigação de suportar danos morais).

De seu turno, o fato de o ente responsável ser uma autarquia de ensino, ou uma fundação pública, não legitima a prática de atos atentatórios aos direitos dos cidadãos, visto que o interesse da máquina estatal (secundário) não se confunde com o interesse da coletividade (primário), que de certo não é aturar o desrespeito a seus direitos constitucionais.

De outro vértice, sempre que o julgador quer minimizar o desgaste psicológico alheio, utiliza a expressão "mero", "mero aborrecimento", "mero adiamento", com isso contribuindo para tornar letra morta os dispositivos legais que reconhecem a indenização por dano moral. Sigamos adiante!

Noutra quadra, conforme muito bem assentou o juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Cabo Frio/RJ nos autos de ação civil pública nº 0008703-57.2015.8.19.0011, não é o fato de estarmos em pandemia que houve alteração de fundamentos basilares da República.

Não por outra razão o Supremo Tribunal Federal vem proclamando, verbi gratia, que só por lei se pode sujeitar a exame psicotécnico a habilitação de candidato a cargo público (Súmula Vinculante n. 44).

Nessa senda, inclusive, a Suprema Corte, por maioria, julgou inconstitucional a proibição de tatuagens a candidatos a cargo público estabelecida em leis e editais de concurso público. Foi dado provimento ao Recurso Extraordinário n. 898.450, com repercussão geral reconhecida, em que um candidato a soldado da Polícia Militar de São Paulo foi eliminado por ter tatuagem na perna. “Editais de concurso público não podem estabelecer restrição a pessoas com tatuagem, salvo situações excepcionais, em razão de conteúdo que viole valores constitucionais”, foi a tese de repercussão geral fixada.

Porém, nesse precedente, o tribunal considerou que nem por lei se poderia criar uma restrição de tal jaez, pois que haveria ofensa ao princípio da proporcionalidade, já que a restrição não se justificaria para os fins a que se destina (averiguar a idoneidade do candidato), isto é, não passaria pelos três testes do princípio da proporcionalidade (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito).

Finalmente, importante salientar no ponto que a Suprema Corte definiu, em sede de repercussão geral (RE nº 662.405-AL), que a responsabilidade da organizadora do certame, em caso de existência de índicios de fraude, é primária e direta em relação à do poder público, que é subsidiária. Vejamos a ementar do acórdão em realce:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ANULAÇÃO DO CONCURSO POR ATO DA PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, EM FACE DE INDÍCIOS DE FRAUDE NO CERTAME. DIREITO À INDENIZAÇÃO DE CANDIDATO PELOS DANOS MATERIAIS RELATIVOS ÀS DESPESAS DE INSCRIÇÃO E DESLOCAMENTO. APLICABILIDADE DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RESPONSABILIDADE DIRETA DA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO ORGANIZADORA DO CERTAME. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO ENTE PÚBLICO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. 

Por conseguinte, consideramos ilegítima a restrição da devolução da valor da inscrição aos candidatos que não quiserem prosseguir na concorrência submetida à novas condições, vez que violadora do princípio magno da indisponibilidade do interesse público.

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Sobre o autor
Celso Bruno Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal e Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno. Ilegalidade da cláusula de não devolução da taxa de inscrição em concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6883, 6 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88150. Acesso em: 28 mar. 2024.

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