O cerol é uma mistura de vidro moído e cola de madeira, comumente utilizado para envolver linhas de papagaios ou pipas. Em razão do potencial cortante desse material, crianças, adolescentes e até mesmo adultos dele se utilizam para cortar as linhas dos colegas, travando uma verdadeira "batalha" em ruas, praças e terrenos baldios.
O perigo decorrente do uso do cerol é bastante conhecido. Como os empinadores de pipas costumam permanecer em vias públicas, não são raros os casos de pedestres e motociclistas feridos com as linhas. A imprensa, de vez em quando, noticia até mesmo caso de morte em razão dessa prática.
O uso dessa substância costuma ser tratado pela polícia como crime. São inúmeros os casos de apreensão do material e encaminhamento de seu dono à Delegacia de Polícia onde se lavra boletim de ocorrência por infração ao artigo 132 do Código Penal: perigo para a vida ou a saúde de outrem.
No entanto, tal figura típica não se configura com o uso do nocivo material. Esse delito exige que o agente crie perigo direto à determinada(s) pessoa(s). Não se trata, apenas, da potencialidade do perigo para a incolumidade pública.
Com efeito leciona Nelson Hungria que "o perigo criado deve ser individual (Individualgefährdung): se ocorre perigo comum (Gemeingefährdung), isto é, extensivo a um determinado número de pessoas, o crime passar a ser ‘contra a incolumidade pública..." (Comentários ao Código Penal, vol. V, Forense, 6ª ed., p. 418).
Júlio F. Mirabete também ensina no mesmo sentido: "É necessário que se trate de perigo direto, ou seja, que se relaciona à determinadas pessoas (RT 652-265, 516-369). Deve ser, assim, individual, exigindo-se uma vítima certa que esteja sendo visada pelo réu (RT 550-365). Além disso, indispensável que se trate de perigo iminente, em que a lesão pode ocorrer em seguida, imediatamente" (Manual de Direito Penal, Atlas, 23ª ed., 2005, p. 128).
Esse entendimento vem corroborado pelo magistério de Damásio (Direito Penal, 2º vol., Parte Especial, Saraiva, 17ª ed., p. 141) e Magalhães Noronha (Direito Penal, 2º vol., Saraiva, 20ª ed., p. 96).
A jurisprudência se inclina no mesmo diapasão: "No crime previsto no art. 132 do CP, o perigo deve ser direto e iminente, isto é, recair sobre vítima determinada. Não basta o perigo eventual, pois conjecturas ou meras possibilidades de perigo não caracterizam o crime em apreço..." (TACRIM-SP – AC – Rel. Toledo de Assumpção – RT 406/226).
Assim, o simples uso do cerol é fato penalmente atípico. Ocorrendo dano a outrem (lesão corporal, p. ex.), o usuário do produto poderá responder, a título de dolo ou culpa, pelo resultado produzido, conforme as circunstâncias do caso concreto.
Para encerrar, lembro que no Estado de São Paulo foi promulgada no início de 2006 a Lei nº 12.192, proibindo o uso da substância. Todavia, como sói acontecer, o diploma ainda não foi regulamentado e não sabe, ainda, quem é responsável pela fiscalização e aplicação da multa de 5 UFESPs prevista para o infrator. Houvesse regulamentação e efetiva aplicação dessa lei, a medida administrativa nela prevista por certo bastaria para acabar com o uso do cerol ou ao menos minimizar o problema.