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Não houve descriminalização do porte de entorpecentes para uso próprio

30/08/2006 às 00:00
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Finalmente, após várias tentativas de se racionalizar os problemas jurídicos decorrentes da sobreposição das legislações que tratavam do tema acerca do consumo e tráfico ilícito de entorpecentes, foi publicada, em 24 de agosto de 2006, a nova Lei de Entorpecentes (Lei n° 11.343/2006), que somente entrará em vigor 45 dias após sua publicação (art. 74), substituindo, portanto, os antigos textos legais que regulamentavam a matéria (as Leis nº 6.368/76 e nº 10.409/2002, expressamente revogadas pelo art. 75 da Lei n° 11.343/2006).

Merece aplausos o legislador, notadamente pelo fato de que, como bem o sabe a comunidade jurídica, a abordagem normativa atinente aos alcunhados crimes de entorpecentes havia se tornado um conglomerado de dispostivos penais, dispostos desordenadamente no cenário jurídico.

Ao se editar a Lei n° 10.409/2002, pretendeu-se substituir integralmente o texto da então vigente Lei n° 6.368/76. Contudo, o texto da Lei n° 10.409/2002 veio a ser vetado quase que na sua totalidade pela Presidência da República. A partir de então, surgiram vários questionamentos acerca de como os dispositivos remanescentes da Lei n° 10.409/2002, poupados do veto presidencial, deveriam ser aplicados em conjunto com os dispositivos mantidos na Lei n° 6.368/76.

Tal situação, é bem verdade, acabou por ser razoavelmente equacionada pelos estudiosos da matéria, e vinha sendo tranquilamente aplicada pelo Poder Judiciário nos últimos anos – não, é claro, sem as naturais divergências de opiniões, no tocante a qual seria a melhor maneira de se conferir efetividade a estes diplomas legais disciplinadores desta relevante matéria.

Com a edição da nova Lei de Entorpecentes (Lei n° 11.343/2006), parece que mais um destes empecilhos passará a fazer parte dos embates que ocorrerão nas arenas jurídicas nacionais, que diz respeito a se definir se a nova Lei de Entorpecentes teria ou não descriminalizado o porte de drogas para consumo próprio.

Em que pese a opinião de renomados autores, a posição mais correta parece ser aquela que entende não ter havido a retirada do caráter criminoso da conduta de possuir substância entorpecente para uso pessoal.

O raciocínio daqueles que defendem ter havido esta descriminalização (desaparecimento do caráter de ilícito penal) escora-se numa premissa um tanto duvidosa. Em geral, fazem uma análise a partir da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-lei n° 3.914/41), que, no seu art. 1º, prescreve o seguinte:

"Art. 1° Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente."

A partir deste preceptivo, concluem que, se no sistema jurídico penal brasileiro crime seria apenas o ilícito penal sancionado com uma pena de reclusão ou detenção (de forma isolada, cumulativa ou alternativamente com a pena de multa), não haveria dúvida de que o porte de entorpecente destinado ao uso pessoal – com a vigência da Nova Lei Antidrogas – teria deixado de ser considerado crime.

De fato, a resposta repressiva dada pela Nova Lei a este comportamento compreende tão-somente as sanções de advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos (Lei n° 11.343/2006 , art. 28), sem a previsão de uma pena privativa de liberdade (reclusão, detenção ou prisão simples). Destarte, ante a inexistência de uma tal sorte de sanção penal, teria ocorrido a descriminalização desta conduta.

"Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

...

§ 3o  As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4o  Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

...

§ 6o  Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa."

Contudo, esta não se vislumbra como sendo a vertente de pensamento mais acertada nem parece se coadunar com a vontade do legislador. Apesar de a nova lei ter encampado as políticas criminais de redução de risco, da justiça terapêutica e restaurativa, não houve a intenção de descriminalizar a posse de drogas para consumo pessoal.

Prova maior e irretorquível desta afirmação é que enquadrou esta modalidade de conduta no Capítulo III da Nova Lei de Entorpecentes, que trata dos crimes e das penas. Assim, revela-se, insofismavelmente, a intenção de capitular a posse de drogas para consumo pessoal como uma das figuras criminosas que compõem este capítulo da nova normatização.

Nada obstante, foi feita, acertadamente, a diferenciação entre esta conduta e aquelas previstas no Título IV, que versa sobre a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, reservado às condutas mais nocivas, em relação às quais foram alinhavados outros tipos penais incriminadores mais rigorosos (arts. 33 e seguintes).

Na realidade, tais condutas continuam a ser consideradas criminosas, porque a mencionada Lei de Introdução ao Código Penal (art. 1°) foi cunhada para se harmonizar com o preceituado pelo Código Penal atualmente em vigor (Decreto-lei n° 2.848, de 07 de dezembro de 1940), o qual, na sua redação original, apenas previa como sanções penais (penas principais) as penas de reclusão, detenção e multa (art. 28).

Todavia, o Código Penal, desde então, vem sendo objeto de sucessivas modificações, com o intuito de o atualizar ao modo de vida contemporâneo. Dentre estas alterações, a Lei n° 7.209/84 promoveu a reforma de toda a intitulada Parte Geral do Código Penal (arts. 1° ao 120), modificando também o rol de sanções penais inicialmente previstas pelo texto original.

Assim, no art. 32 da vigente Parte Geral do Código Penal ficou sedimentado que as penas são privativas de liberdade, restritivas de direitos e de multa. Note-se que estão previstas como sanções penais não apenas aquelas de privação de liberdade ou de multa, mas também as alcunhadas penas alternativas, dentre as quais se inserem as restritivas de direitos – que, apesar de não redundarem em privação da liberdade, ostentam nítido caráter repressivo do ordenamento penal.

Neste mesmo diapasão, veio a Lei n° 9.714/98, ampliando ainda mais o rol das chamadas penas restritivas de direitos. Nesta relação de penas alternativas, agora, aparece a "prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas", como uma das espécies de sanção penal, no inciso IV, do art. 43, do Código Penal. Em tal aspecto, encontra-se em perfeita harmonia com a Constituição Federal, que previu, no seu art. 5°, XLVI, a prestação social alternativa como uma das possíveis penas passíveis de serem aplicadas àqueles que violem os mandamentos proibitivos penais.

Noutros dizeres, se as penas restritivas de direitos são consideradas como sanções penais pela redação do Código Penal, incluindo nesta relação a "prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas" (arts. 32, e 43, IV), não há porque dizer que a mesma estirpe de sanção prevista na Lei n° 11.343/2006, art. 28, II (prestação de serviços à comunidade) não tem natureza penal. O tipo penal está completo, em plenas condições para ser implementado: existe o preceito primário (descritivo da conduta incriminada, de portar drogas ilícitas para uso próprio), assim como também se faz presente o preceito secundário, estipulador da sanção penal cabível – ainda que não seja privativa de liberdade – pelo prazo máximo de cinco meses.

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Nada impede, é fato, que o magistrado não aplique esta sanção de "prestação de serviços à comunidade", preferindo cominar a sanção de "advertência" ou de "medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo".

Porém, nem por isto se poderia asseverar que teria sido retirado o caráter criminal da conduta de possuir drogas ilícitas para uso próprio – até porque, mais uma vez é forçoso enfatizar, o próprio art. 28, § 6°, II, abre a possibilidade de ser fixada multa contra o agente para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III (do art. 28), a que injustificadamente se recuse o agente.

Tal multa nitidamente possui índole penal, o que é insofismavelmente revelado pelos critérios que deverão orientar o julgador no seu estabelecimento, posto que faz referência a dias-multa para o arbitramento do quantum (Lei n° 11.343/2006, art. 29), medida que somente é utilizada no direito penal para tais fins (Código Penal, art. 49).

"Art. 29.  Na imposição da medida educativa a que se refere o inciso II do § 6o do art. 28, o juiz, atendendo à reprovabilidade da conduta, fixará o número de dias-multa, em quantidade nunca inferior a 40 (quarenta) nem superior a 100 (cem), atribuindo depois a cada um, segundo a capacidade econômica do agente, o valor de um trinta avos até 3 (três) vezes o valor do maior salário mínimo."

Ora, se o legislador não estivesse de fato inclinado a conferir uma indumentária penal a esta multa, bastaria que se utilizasse de outros parâmetros para orientar o julgador no instante da sua quantificação. Se preferiu manter as diretrizes vigentes no Direito Penal, certamente é porque pretendeu manter esta sorte de conduta regrada pelos mecanismos penais.

Ao que tudo indica, a Lei de Introdução ao Código Penal não acompanhou a evolução legislativa que vem se sucedendo ao longo dos anos, seja por descuido do legislador, seja por conceber-se que seria desnecessário atualizar esta lei introdutória. Talvez o esforço que as análises legislativas exigiriam para se fazer derrogações deste texto não trouxesse repercussões práticas de relevância que justificassem o dispêndio destas energias legislativas.

Pouco importa! O fato é que esta Lei de Introdução ao Código Penal não foi expressamente alterada e, assim, fica sujeita às mesmas derrogações tácitas ou indiretas que possam atingir os demais textos legais, quando a nova normatização for incompatível ou regulamentar diferentemente a matéria tratada pelo lei pretérita (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 2°, § 1°).

Persiste, destarte, a índole criminosa da conduta de possuir drogas ilícitas para o consumo pessoal, cuja repressão se dará, pelo menos num primeiro momento, por sanções penais de cunho pedagógico, que não acarretem a privação da liberdade do agente usuário de entorpecentes.

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Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA NETTO, Sérgio. Não houve descriminalização do porte de entorpecentes para uso próprio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1155, 30 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8864. Acesso em: 22 dez. 2024.

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