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Revisão de ofício do lançamento fiscal

06/09/2006 às 00:00
Leia nesta página:

            No horizonte administrativo-fiscal-previdenciário, os processos decorrentes de lançamentos impugnados pelos sujeitos passivos são julgados, em 1ª instância, pelos Serviços de Contencioso Administrativo, na esteira do inciso I do art. 78 do Regimento Interno da Secretaria da Receita Previdenciária, aprovado pela Portaria MPS n.º 1344, de 18/07/2005:

            "Art. 78. Aos Serviços e Seções de Contencioso Administrativo compete:

            I - julgar defesa contra Notificação Fiscal de Lançamento de Débito e Auto de Infração;

            II - julgar defesa contra Informação Fiscal sobre cancelamento de isenção;"

            A autoridade a quem compete essa tarefa é o Auditor-Fiscal da Previdência Social (AFPS) julgador administrativo.

            Por vezes, ocorre, no exame desses processos, de o julgador administrativo detectar, nos lançamentos, omissões ou contradições que não tenham sido impugnadas pelos sujeitos passivos. Nesses casos, é usual solicitar aos AFPSs notificantes/autuantes que, em sendo cabíveis, se promovam os devidos saneamentos. Na hipótese de as omissões ou contradições cuidarem de vícios insanáveis, é comum já se julgar pela nulidade dos lançamentos.

            Freqüentemente, essas situações causam desconforto aos AFPSs autores dos lançamentos fiscais. Estes argumentam que, deixando a empresa de impugnar determinada matéria, teria ocorrido a confissão ficta nesse particular. Na tentativa de corroborar esta tese, muitas vezes invoca-se o §6º do art. 9º da Portaria MPS n.º 520/2004, que regula o contencioso administrativo-fiscal-previdenciário:

            "Art. 9º A impugnação mencionará:

             ..........................................................................

            § 6º Considerar-se-á não impugnada a matéria que não tenha sido expressamente contestada."

            No entanto, o estudioso do Direito deve sempre lembrar que não há texto sem contexto ou, nos dizeres do jurisconsulto romano Celso, que: "É contra o Direito julgar ou responder sem examinar o texto em conjunto, apenas considerando uma parte qualquer do mesmo" (Digesto, liv. 1, tít. 3°, frag. 24).

            Fazendo uma analogia para melhor fixar essa idéia, consideremos: i) o ordenamento jurídico de certo Estado como um arquipélago; ii) os preceitos jurídicos como as ilhas; e iii) as viagens a nado, de barco e de avião e as comunicações telefônicas, por internet, telegráficas e postais realizadas entre as ilhas como as interações entre os preceitos jurídicos. Suprimamos desse quadro as viagens e as comunicações entre as ilhas e teremos um exemplo de aplicação do Direito em que se pinça um preceito jurídico apenas, esquecendo que mais preceitos existem no ordenamento e que o alcance de muitos preceitos é ampliado ou comprimido pela influência exercida por outros preceitos. Bem se vê que essa aplicação superficial é insuficiente para entendermos "o que diz o Direito" sobre qualquer situação.

            Desse modo, no tocante à Portaria MPAS n.º 520/2004, é oportuno indicar que seu art. 11 permite ao julgador administrativo solicitar, de ofício, a realização das diligências que entender necessárias:

            "Art. 11. A autoridade julgadora determinará de ofício ou a requerimento do interessado, a realização de diligência ou perícia, quando as entender necessárias, indeferindo, mediante despacho fundamentado ou na respectiva Decisão-Notificação, aquelas que considerar prescindíveis ou impraticáveis."

            Ora, a possibilidade de serem requeridas, pelo julgador administrativo, diligências de ofício já salienta que este, no exame do processo, não está adstrito ao conteúdo da impugnação. Caso vislumbre, sponte propria, estar o lançamento maculado por erro e/ou omissão (ambos sanáveis) que, dificultando a compreensão de seu substrato pelo sujeito passivo, tenham impedido o pleno exercício do direito de defesa, deverá instar o AFPS autuante/notificante a prestar os esclarecimentos necessários para sanear o lançamento, reabrindo, em seqüência, o prazo para o sujeito passivo defender-se.

            De notar-se que a Administração Pública tem de obedecer ao princípio da eficiência (art. 37, caput, CF). A aplicação desse princípio, na seara do julgamento administrativo, não se restringe a julgar o processo o mais rápido possível. Mais importante do que isso é efetuar o controle de legalidade sobre o lançamento fiscal, esquadrinhando se este se harmoniza com os dispositivos legais e sublegais, tanto de cunho material quanto procedimental, aplicáveis ao caso.

            Não consigo, portanto, ver justificativa para, a despeito de silêncio do sujeito passivo em sua impugnação, encerrar rapidamente a apreciação administrativa do lançamento, julgando-o procedente, quando, por exemplo, não tiverem sido minuciosamente apontados os documentos donde se colheram os montantes dos salários-de-contribuição; bases de cálculo tiverem sido erigidas em duplicidade; não tiverem sido abatidos todos os recolhimentos de contribuições realizados pelos sujeitos passivos; na hipótese da caracterização de trabalhadores autônomos como segurados empregados, não se tiver demonstrado a contento o requisito da subordinação, etc.

            Penso não ser recomendável fazer recair sobre os Procuradores Federais a incumbência de cobrar um crédito fraturado em brechas que podem resultar na improcedência da execução fiscal e, pior, na obrigação de pagar honorários advocatícios. Sendo amplo o direito à defesa (art. 5°, LV, CF), nada impede que, em Juízo, o sujeito passivo insurja-se contra vícios que não foram impugnados na esfera administrativa.

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            Continuando, convém não esquecer que, no caso de descoberta de fato desconhecido ou omissão de ato essencial, a Administração Pública tem o dever de revisar de ofício o lançamento, consoante o disposto no inciso IX do art. 149 do CTN:

            "Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: (...)

            VIII- quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior;

            IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade essencial."

            Na esfera judicial, se a petição inicial não preencher os requisitos legais ou contiver defeitos que dificultem o julgamento meritório, o juiz deve abrir prazo para ela seja emendada, de acordo com o art. 284, caput, do CPC:

            "Art. 284. Verificando o juiz que a petição inicial não preenche os requisitos exigidos nos arts. 282 e 283, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor a emende, ou a complete, no prazo de 10 (dez) dias."

            Considerando que essa regra entra em ressonância com a constante no art. 149, inciso IX, do CTN, e considerando que o relatório fiscal é a petição inicial do lançamento, quando lhe faltar o requisito da clareza na descrição do fato gerador, nada mais razoável do que o julgador administrativo solicitar aos AFPSs notificantes/autuantes a elaboração de relatórios fiscais complementares.

            Ainda fazendo um paralelo com o CPC, o pressuposto processual da imparcialidade do juiz implica que a este se confere a livre formação do convencimento, tendo em conta a partitura do art. 131:

            "Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento."

            Esse preceito, acentue-se, ecoou, com bastante semelhança, no art. 14 da Portaria MPAS n.º 520/2004:

            "Art. 14. Na apreciação da prova, diligência ou perícia a autoridade julgadora formará livremente sua convicção."

            Descortina-se, pois, que até – melhor seria dizer principalmente, pois o processo administrativo pauta-se pelos princípios da verdade material e da informalidade – no processo administrativo-fiscal-previdenciário é inerente ao julgamento o livre esquadrinhar do lançamento, fundamentando-se as conclusões, evidentemente, na decisão. O fato de o julgador administrativo ser um AFPS de forma alguma o franqueia a passar ao largo de questões que, embora não suscitadas pelo sujeito passivo, fragilizem ou lancem por terra o lançamento. Se nessa linha o fizesse, estaria patente a parcialidade do julgador, o que não se admite sequer no processo administrativo.

            Deve-se ter em mente, ainda, que a Administração Pública deve sempre dar prevalência ao interesse público primário (de toda a sociedade) ante o interesse público secundário (da própria Administração). E um dos interesses públicos primários mais caros a ser preservado é que somente se exija dos administrados estritamente o pagamento dos tributos no montante que, nem mais, nem menos, eles devam, excetuadas, apenas, as hipóteses de arbitramento (art. 148 do CTN, c/c §3º do art. 33 da Lei n.º 8.212/1991) e de fato gerador presumido (art. 150, §7º, CF). Tão-somente exigências desse naipe é que se encontram dentro da moldura do princípio da legalidade (art. 5°, II, CF).

            De tal arte, desvendando-se a ocorrência de fato desconhecido (art. 149, VIII, CTN), como, por exemplo, a desconsideração, pelo AFPS notificante, de alguns recolhimentos concretizados pelo notificado, é dever de quem quer que descubra esse fato – Agente Administrativo, Chefe de Equipe Fiscal, AFPS julgador administrativo, ou AFPS notificante –, mesmo quando o sujeito passivo não impugnar esse ponto, promover a retificação do crédito. Caso contrário, a Administração Pública estaria cobrando do contribuinte mais do que ele efetivamente devia, o que, ressalvadas as exceções acima anotadas, configuraria indevida invasão no direito de propriedade do contribuinte e resultaria em enriquecimento ilícito do Poder Público.

            Portanto, diante do que esposado, conclui-se que, muito ao contrário de ser atividade ilegal, a revisão de ofício sem impugnação específica do sujeito passivo, é medida imposta pelo nosso Direito.

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Sobre o autor
Ricardo Araujo Cozer

procurador do Trabalho, com lotação na Procuradoria Regional do Trabalho da 7ª Região, Ofício de Sobral (CE), bacharel em Direito pela UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COZER, Ricardo Araujo. Revisão de ofício do lançamento fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1162, 6 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8875. Acesso em: 22 dez. 2024.

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