No horizonte administrativo-fiscal-previdenciário, os processos decorrentes de lançamentos impugnados pelos sujeitos passivos são julgados, em 1ª instância, pelos Serviços de Contencioso Administrativo, na esteira do inciso I do art. 78 do Regimento Interno da Secretaria da Receita Previdenciária, aprovado pela Portaria MPS n.º 1344, de 18/07/2005:
"Art. 78. Aos Serviços e Seções de Contencioso Administrativo compete:
I - julgar defesa contra Notificação Fiscal de Lançamento de Débito e Auto de Infração;
II - julgar defesa contra Informação Fiscal sobre cancelamento de isenção;"
A autoridade a quem compete essa tarefa é o Auditor-Fiscal da Previdência Social (AFPS) julgador administrativo.
Por vezes, ocorre, no exame desses processos, de o julgador administrativo detectar, nos lançamentos, omissões ou contradições que não tenham sido impugnadas pelos sujeitos passivos. Nesses casos, é usual solicitar aos AFPSs notificantes/autuantes que, em sendo cabíveis, se promovam os devidos saneamentos. Na hipótese de as omissões ou contradições cuidarem de vícios insanáveis, é comum já se julgar pela nulidade dos lançamentos.
Freqüentemente, essas situações causam desconforto aos AFPSs autores dos lançamentos fiscais. Estes argumentam que, deixando a empresa de impugnar determinada matéria, teria ocorrido a confissão ficta nesse particular. Na tentativa de corroborar esta tese, muitas vezes invoca-se o §6º do art. 9º da Portaria MPS n.º 520/2004, que regula o contencioso administrativo-fiscal-previdenciário:
"Art. 9º A impugnação mencionará:
..........................................................................
§ 6º Considerar-se-á não impugnada a matéria que não tenha sido expressamente contestada."
No entanto, o estudioso do Direito deve sempre lembrar que não há texto sem contexto ou, nos dizeres do jurisconsulto romano Celso, que: "É contra o Direito julgar ou responder sem examinar o texto em conjunto, apenas considerando uma parte qualquer do mesmo" (Digesto, liv. 1, tít. 3°, frag. 24).
Fazendo uma analogia para melhor fixar essa idéia, consideremos: i) o ordenamento jurídico de certo Estado como um arquipélago; ii) os preceitos jurídicos como as ilhas; e iii) as viagens a nado, de barco e de avião e as comunicações telefônicas, por internet, telegráficas e postais realizadas entre as ilhas como as interações entre os preceitos jurídicos. Suprimamos desse quadro as viagens e as comunicações entre as ilhas e teremos um exemplo de aplicação do Direito em que se pinça um preceito jurídico apenas, esquecendo que mais preceitos existem no ordenamento e que o alcance de muitos preceitos é ampliado ou comprimido pela influência exercida por outros preceitos. Bem se vê que essa aplicação superficial é insuficiente para entendermos "o que diz o Direito" sobre qualquer situação.
Desse modo, no tocante à Portaria MPAS n.º 520/2004, é oportuno indicar que seu art. 11 permite ao julgador administrativo solicitar, de ofício, a realização das diligências que entender necessárias:
"Art. 11. A autoridade julgadora determinará de ofício ou a requerimento do interessado, a realização de diligência ou perícia, quando as entender necessárias, indeferindo, mediante despacho fundamentado ou na respectiva Decisão-Notificação, aquelas que considerar prescindíveis ou impraticáveis."
Ora, a possibilidade de serem requeridas, pelo julgador administrativo, diligências de ofício já salienta que este, no exame do processo, não está adstrito ao conteúdo da impugnação. Caso vislumbre, sponte propria, estar o lançamento maculado por erro e/ou omissão (ambos sanáveis) que, dificultando a compreensão de seu substrato pelo sujeito passivo, tenham impedido o pleno exercício do direito de defesa, deverá instar o AFPS autuante/notificante a prestar os esclarecimentos necessários para sanear o lançamento, reabrindo, em seqüência, o prazo para o sujeito passivo defender-se.
De notar-se que a Administração Pública tem de obedecer ao princípio da eficiência (art. 37, caput, CF). A aplicação desse princípio, na seara do julgamento administrativo, não se restringe a julgar o processo o mais rápido possível. Mais importante do que isso é efetuar o controle de legalidade sobre o lançamento fiscal, esquadrinhando se este se harmoniza com os dispositivos legais e sublegais, tanto de cunho material quanto procedimental, aplicáveis ao caso.
Não consigo, portanto, ver justificativa para, a despeito de silêncio do sujeito passivo em sua impugnação, encerrar rapidamente a apreciação administrativa do lançamento, julgando-o procedente, quando, por exemplo, não tiverem sido minuciosamente apontados os documentos donde se colheram os montantes dos salários-de-contribuição; bases de cálculo tiverem sido erigidas em duplicidade; não tiverem sido abatidos todos os recolhimentos de contribuições realizados pelos sujeitos passivos; na hipótese da caracterização de trabalhadores autônomos como segurados empregados, não se tiver demonstrado a contento o requisito da subordinação, etc.
Penso não ser recomendável fazer recair sobre os Procuradores Federais a incumbência de cobrar um crédito fraturado em brechas que podem resultar na improcedência da execução fiscal e, pior, na obrigação de pagar honorários advocatícios. Sendo amplo o direito à defesa (art. 5°, LV, CF), nada impede que, em Juízo, o sujeito passivo insurja-se contra vícios que não foram impugnados na esfera administrativa.
Continuando, convém não esquecer que, no caso de descoberta de fato desconhecido ou omissão de ato essencial, a Administração Pública tem o dever de revisar de ofício o lançamento, consoante o disposto no inciso IX do art. 149 do CTN:
"Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: (...)
VIII- quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior;
IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade essencial."
Na esfera judicial, se a petição inicial não preencher os requisitos legais ou contiver defeitos que dificultem o julgamento meritório, o juiz deve abrir prazo para ela seja emendada, de acordo com o art. 284, caput, do CPC:
"Art. 284. Verificando o juiz que a petição inicial não preenche os requisitos exigidos nos arts. 282 e 283, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor a emende, ou a complete, no prazo de 10 (dez) dias."
Considerando que essa regra entra em ressonância com a constante no art. 149, inciso IX, do CTN, e considerando que o relatório fiscal é a petição inicial do lançamento, quando lhe faltar o requisito da clareza na descrição do fato gerador, nada mais razoável do que o julgador administrativo solicitar aos AFPSs notificantes/autuantes a elaboração de relatórios fiscais complementares.
Ainda fazendo um paralelo com o CPC, o pressuposto processual da imparcialidade do juiz implica que a este se confere a livre formação do convencimento, tendo em conta a partitura do art. 131:
"Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento."
Esse preceito, acentue-se, ecoou, com bastante semelhança, no art. 14 da Portaria MPAS n.º 520/2004:
"Art. 14. Na apreciação da prova, diligência ou perícia a autoridade julgadora formará livremente sua convicção."
Descortina-se, pois, que até – melhor seria dizer principalmente, pois o processo administrativo pauta-se pelos princípios da verdade material e da informalidade – no processo administrativo-fiscal-previdenciário é inerente ao julgamento o livre esquadrinhar do lançamento, fundamentando-se as conclusões, evidentemente, na decisão. O fato de o julgador administrativo ser um AFPS de forma alguma o franqueia a passar ao largo de questões que, embora não suscitadas pelo sujeito passivo, fragilizem ou lancem por terra o lançamento. Se nessa linha o fizesse, estaria patente a parcialidade do julgador, o que não se admite sequer no processo administrativo.
Deve-se ter em mente, ainda, que a Administração Pública deve sempre dar prevalência ao interesse público primário (de toda a sociedade) ante o interesse público secundário (da própria Administração). E um dos interesses públicos primários mais caros a ser preservado é que somente se exija dos administrados estritamente o pagamento dos tributos no montante que, nem mais, nem menos, eles devam, excetuadas, apenas, as hipóteses de arbitramento (art. 148 do CTN, c/c §3º do art. 33 da Lei n.º 8.212/1991) e de fato gerador presumido (art. 150, §7º, CF). Tão-somente exigências desse naipe é que se encontram dentro da moldura do princípio da legalidade (art. 5°, II, CF).
De tal arte, desvendando-se a ocorrência de fato desconhecido (art. 149, VIII, CTN), como, por exemplo, a desconsideração, pelo AFPS notificante, de alguns recolhimentos concretizados pelo notificado, é dever de quem quer que descubra esse fato – Agente Administrativo, Chefe de Equipe Fiscal, AFPS julgador administrativo, ou AFPS notificante –, mesmo quando o sujeito passivo não impugnar esse ponto, promover a retificação do crédito. Caso contrário, a Administração Pública estaria cobrando do contribuinte mais do que ele efetivamente devia, o que, ressalvadas as exceções acima anotadas, configuraria indevida invasão no direito de propriedade do contribuinte e resultaria em enriquecimento ilícito do Poder Público.
Portanto, diante do que esposado, conclui-se que, muito ao contrário de ser atividade ilegal, a revisão de ofício sem impugnação específica do sujeito passivo, é medida imposta pelo nosso Direito.