5. Do prejuízo ao erário como forma de improbidade nas licitações e contratos administrativos
O art. 10, da Lei nº 8.429/92 trata dos atos de improbidade administrativa que causam lesões ao erário. Em verdade, o referido diploma legal não poderia deixar de fora a administração desastrosa do agente público, normalmente envolto na visão de que a coisa pública é coisa de ninguém.
O caput do artigo se refere a "lesão ao erário", surgindo daí a primeira indagação. Por que a lei utiliza neste artigo a expressão "erário" e não "patrimônio público" como nos demais?
Marino Pazzaglini Filho, Márcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Júnior [34] consideram necessário que se faça a distinção entre as duas expressões. Assim, a referência ao erário diz respeito ao aspecto econômico e financeiro, ou seja, aos bens e direitos de conteúdo econômico pertencentes ao Poder Público. O patrimônio público, por sua vez, é noção mais abrangente, incluindo não somente os valores econômicos, como também o estético, artístico, histórico e turístico.
Wallace Paiva Martins Júnior [35] não faz essa diferença. Para esse autor a lei quis se referir ao prejuízo causado ao patrimônio público, considerado este na forma do art. 1°, III da Lei n° 7.347/85, ou seja, na sua forma mais abrangente, incluindo o patrimônio artístico, estético, histórico, turístico, etc.
Pensamos que a lei não pretendeu diferenciar erário de patrimônio público, tanto que os arts. 5°, 7° e 8º utilizam a expressão mais abrangente, qual seja, "prejuízo ao patrimônio público", quando se referem ao ressarcimento de dano, a cautelar de indisponibilidade de bens e a responsabilidade do sucessor do agente ímprobo. Ademais, o inciso X, do art. 10 menciona o prejuízo causado pela conduta negligente no que diz respeito à conservação do patrimônio público, ou seja, deteriorização do patrimônio público como forma de prejuízo ao erário.
O prejuízo ao patrimônio público previsto no art. 10 poderá ser decorrente da ação ou omissão do agente público. Observe-se que a omissão dentro da Administração Pública, diferentemente da esfera privada, pode não significar apenas um não-fazer, mas um comportamento em desacordo com a exigência legal de agir [36].
Nesse dispositivo, o legislador infraconstitucional, provavelmente em atenção ao princípio da eficiência que norteia a Administração Pública, considerado como dever jurídico de realizar a atividade administrativa visando à extração do maior número de efeitos positivos para o administrado e administração, pune a lesão ao erário decorrente da ação ou omissão dolosa ou culposa [37].
Dolo e culpa são espécies de vínculo de aspecto psicológico que liga o autor ao fato por ele praticado [38]. Tal vínculo psicológico é analisado tomando-se em conta o cidadão comum dentro do meio social. Age com dolo quem atua visando que seu ato contrarie o direito ou quer contrariar o direito e atua para isso [39]. Além do dolus directus, caracterizado pela prática da ação ou omissão consciente e buscando voluntariamente um resultado, há o dolus eventualis que se verifica quando o agente sabe que o ato que vai praticar é suscetível de produzir outra contrariedade a direito, além daquela que ele deseja, porém prefere que aquela se produza a ter que renunciar ao seu desejo [40]. Transportando esta noção para o direito administrativo, age com dolo o agente que voluntariamente realiza determinada conduta proibida pela ordem jurídica.
Por outro lado, age culposamente aquele que, deixando de empregar a atenção ou diligência de que era capaz em decorrência das circunstâncias, não previu o caráter ilícito da sua conduta ou do resultado desta, ou prevendo-o, achou que o mesmo não ocorreria [41]. Trata-se da potencial consciência da ilicitude, que, com maior razão, é considerada no campo do Direito Administrativo, onde o agente somente pode atuar com base em lei [42]. Neste trabalho, interessa-nos a culpa na modalidade de imprudência e negligência, que, inegavelmente, agride o princípio constitucional da eficiência.
Desta forma, tanto incidirá na hipótese do art. 10 o agente público que causou, conscientemente, prejuízo ao erário em razão de sua conduta, como aquele outro que, mesmo não tendo previsto o dano ao erário, agiu de forma imprudente ou negligente. A distinção entre a conduta dolosa e culposa aproveita, apenas, para fins de aplicação das sanções [43], incidindo para o segundo caso sanções menos severas, dentre as arroladas no art. 12, II, observando, também, o seu parágrafo único.
Pela análise dos incisos do art. 10, depreende-se que, diferentemente do art. 9º, existe aqui, normalmente, concessão indevida de vantagem a terceiro, alheio ao quadro administrativo, em detrimento da Administração Pública. Porém, nada impede que ocorra prejuízo ao erário sem conseqüente enriquecimento de quem quer que seja.
Da mesma forma, muitas das condutas elencadas no art. 9º além do enriquecimento ilícito do agente, acarretam prejuízo ao erário. Ocorre que, como as sanções do art. 9º são mais severas, este absorve o art. 10.
O prejuízo ao erário, característico deste artigo, se revela pela perda, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação. Perda é o extravio de uma coisa que se possuía. O desvio é o destino ou aplicação errada. A apropriação caracteriza-se pelo apoderamento, inversão de posse, permitindo que outrem transforme em seu, bem que não lhe pertence. Malbaratamento, por sua vez, seria o emprego ou aplicação indevida, ou seja, o gasto de forma inconveniente, com prejuízo. Por fim, a dilapidação é reconhecida como o esbanjamento, desperdício.
Pensamos que para incidência das hipóteses constantes do art. 10 necessário se faz a comprovação do efetivo prejuízo ao erário, embora existam na doutrina posições que vislumbram a existência de lesividade presumida na hipótese [44]. Assim, no nosso entendimento, o que o legislador infraconstitucional pretendeu ao tipificar as condutas do artigo 10 foi punir os atos de improbidade que, efetivamente, causassem perda patrimonial. Da leitura dos incisos, observa-se que dificilmente ocorrerá uma daquelas situações sem o conseqüente prejuízo ao erário, porém a indicação de tal prejuízo se faz necessária. Caso a prática de uma das condutas descritas no referido artigo não cause dano real ao patrimônio público, não se poderá falar em improbidade por prejuízo ao erário, podendo subsistir a improbidade na modalidade do art.11. Cumpre acrescentar que a necessidade de demonstração cabal do dano ao patrimônio público não significa provar o quantum, que pode ser remetido à liquidação da sentença.
A improbidade decorrente de prejuízo ao erário vinculada ao tema licitações e contratos nos faz pensar, em princípio, apenas na efetivação de contratos superfaturados. Porém é perfeitamente viável que tal prejuízo venha a ocorrer durante a tramitação de processo licitatório, ou melhor, até no início desse processo.
O art. 10, inciso VIII determina que constitui ato de improbidade que causa lesão ao erário "frustrar a licitude do processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente". Conforme já observado, para incidência do referido dispositivo não basta apenas que seja frustrada a licitude de processo licitatório ou haja a dispensa indevida, é preciso também que se demonstre o prejuízo efetivo que pode ocorrer mesmo antes de firmado o vínculo contratual.
Assim, a primeira hipótese constante do art. 10, VIII aborda a frustração da licitude de processo licitatório. Frustrar significa iludir, enganar a expectativa. Como exemplos enquadrados nessa hipótese teríamos a requisição de documentos incompatíveis com os art. 27 a 31 da Lei 8.6666/93, a comprovação de aptidão com limitação de tempo ou de época ou ainda em locais especiais que inibam a participação na licitação ou também a utilização de modalidade de licitação em desconformidade com o valor do objeto licitado. Nesse diapasão, não se pode esquecer das verdadeiras encenações teatrais que acontecem em certos processos liticatórios, nos quais todos, de antemão, já conhecem o vencedor. Ora, essas fraudes ao processo licitatório podem gerar prejuízo ao erário. Com efeito, caso um processo licitatório venha a ser invalidado pela ocorrência de um dos vícios antes referidos, poder-se-á estar diante do efetivo prejuízo ao erário, bastando para isso lembrar quanto custa a publicação de resumo do edital em jornal de grande circulação. A anulação do processo licitatório com a conseqüente republicação do edital gera um prejuízo passível de cálculo. Logo, o prejuízo ao erário decorrente de processo licitatório não se restringe a estipulação de contratos superfaturado. Em verdade o prejuízo pode ocorrer antes mesmo de firmado o vínculo contratual. O mesmo se diga das revogações de processos licitatórios sem o preenchimento dos requisitos previstos no art. 49, da Lei n° 8.666/93, quais sejam: interesse público superveniente e motivação. Obviamente que se a revogação teve em vista beneficiar empresa que não foi capaz de atender aos requisitos constantes do edital, além da violação de princípios haverá uma série de prejuízos econômicos decorrentes do ato revogatório.
O inciso VIII também fala da improbidade por prejuízo ao erário decorrente da dispensa indevida de processo licitatório. Dispensa nesse dispositivo legal está no sentido amplo, ou seja, engloba todos os casos legais de contratação direta, sem observância do processo licitatório. Assim, tem-se a hipótese de licitação dispensada, referente à alienação de bens da Administração Pública, prevista no art. 17, a licitação dispensável [45], que está no art. 24 e a licitação inexigível, presente no art. 25 [46], todos da Lei n° 8.666/93. Nesta segunda hipótese do inciso VIII, pensamos que o prejuízo ao erário somente ocorrerá se houver o superfaturamento do contrato decorrente da contratação direta, uma vez que não aceitamos a tese do prejuízo presumido, conforme já abordado, e não há procedimento anterior à contratação capaz de gerar maiores gastos à Administração. Assim, caso não seja detectado o efetivo prejuízo decorrente da dispensa indevida de licitação, pode-se estar diante de ato de improbidade administrativa por violação de princípios, que veremos a seguir.
6. A improbidade administrativa por violação de princípios nas licitações e contratos administrativos.
Dentre as modalidades de improbidade administrativa, o art. 11 é a grande novidade, pois possibilita a imposição de sanções ao agente público que viola os princípios que regem a Administração Pública, independentemente do enriquecimento ilícito ou do prejuízo ao erário.
Agustín Gordillo leciona que os princípios são a base de uma sociedade livre e republicana, sendo os elementos fundamentais e necessários da sociedade e de todos os atos de seus componentes [47].
Sabe-se que os princípios não são meras declarações de sentimentos ou intenções ou, ainda, meros postulados de um discurso moral. Em verdade, são normas dotadas de positividade que têm o condão de determinar condutas ou impedir comportamento com eles incompatíveis [48].
Neste ponto, merece transcrição a reflexão de Jorge Miranda, segundo a qual
o Direito não é mero somatório de regras avulsas, produto de acto de vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre si. O Direito é ordenamento ou conjunto significativo e não conjunção resultante de vigência simultânea; implica coerência ou, talvez mais rigorosamente, consistência; projecta-se em sistema; é unidade de sentido, é valor incorporado em regra. E esse ordenamento, esse conjunto, essa unidade, esse valor projecta-se ou traduz-se em princípios, logicamente anteriores aos preceitos. [49]
O art. 37, caput, da Constituição Federal determina expressamente a obediência aos princípios administrativos. Assim, o agente público, na qualidade de gestor dos interesses públicos, deverá adotar postura exemplar à sociedade, agindo dentro dos padrões éticos dominantes [50].
Ocorre que, não adianta determinação constitucional de obediência aos princípios administrativos sem que haja um meio eficaz de punir sua violação. Segundo Von Ihering "o direito não é mero pensamento, mas sim força viva. Por isso a Justiça segura, numa das mãos, a balança, com a qual pesa o direito, e na outra a espada, com a qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a fraqueza do direito" [51].
Assim, veio a Lei n° 8.429/92 e determinou sanções de natureza pessoal ao agente público que viola princípios administrativos. A Lei de Improbidade seria então, diante da abordagem de Von Ihering, a espada voltada a garantir a observância dos princípios administrativos, que estariam na balança.
O art. 11, caput, da lei de Improbidade se refere à ação ou omissão que atenta contra os princípios administrativos, violando os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. Esses deveres são arrolados exemplificativamente, a eles se podem acrescentar a boa-fé, a impessoalidade, igualdade, proporcionalidade, dentre outros contidos nos princípios que norteiam a atividade administrativa.
Alguns autores são incisivos em afirmar que para incidência do art. 11 é necessário que o elemento subjetivo que as motiva seja o dolo, quer dizer, necessário se faz a consciência da ilicitude e a vontade de praticar o ato antijurídico [52], uma vez que a Lei de Improbidade somente admitiu ato de improbidade decorrente de conduta culposa na hipótese do art. 10.
Entendemos que alguns esclarecimentos devem ser feitos quanto à matéria.
A atuação do administrador público é sempre voltada ao atendimento de um interesse público. Para a sua relação com a coisa pública, pressupõe-se que aquele possui certa especialidade dentro da sua área de atuação, conhecendo com profundidade todas as atribuições que lhe são conferidas, mesmo aquelas delegadas o exercício a outros agentes públicos de hierarquia inferior.
Sendo assim, não se pode comparar o dolo e culpa que rondam o agir do cidadão comum com aqueles elementos subjetivos no âmbito da Administração Pública.
Em conseqüência, podemos afirmar que, quando se exige a presença do dolo como elemento subjetivo necessário à incidência do art. 11 da Lei de Improbidade, é suficiente a presença do dolo eventual, ou seja, basta que o agente tolere o resultado, consinta em sua provocação ou tenha se conformado com o risco da realização do tipo [53].
Desta forma, discordamos daqueles que pensam que para a incidência do art. 11 se faz necessária a efetiva vontade do administrador público de violar princípios administrativos. Para nós, basta que tolere a violação. Assim, no caso em que o administrador público formaliza um contrato direto com uma empresa, sem observância das regras pertinentes ao certame licitatório, mesmo que o faça em atendimento a um parecer da assessoria jurídica, por ele escolhida, responderá pela improbidade administrativa, com fundamento no art. 11, caput, diante da violação dos princípios da legalidade e impessoalidade, desde que não tenha havido prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito. Se assim não fosse, com toda certeza, tornar-se-ia inaplicável o art. 11, uma vez que dificilmente se conseguiria provar a efetiva vontade do administrador de violar os princípios administrativos.
Por outro lado, conforme assevera Pontes de Miranda, "não exclui o dolo o motivo do ato, nem o fim que teve em vista o agente, nem o interesse maior, moral, política ou economicamente, que levou ao ato" [54]. Assim, quando a escolha do licitante vencedor do certame licitatório recai sobre empresa que ofereceu vantagem contratual que não constava do ato convacatório, estar-se-á diante de ato de improbidade administrativa previsto no artigo 11, caput, da Lei de Improbidade, considerando a violação do princípio da legalidade e isonomia.
O caput do art. 11 considera ato de improbidade administrativa a violação do dever de legalidade. Dificilmente haverá a violação autônoma do princípio da legalidade, ou seja, normalmente a violação da lei está vinculada à transgressão de outros princípios. Nesse sentido afirma Juarez Freitas que "os princípios sempre irradiam efeitos, embora em intensidades diversas, uns sobre os outros" [55]. Assim, a colocação de cláusula no edital que favoreça determinada empresa, não viola somente o princípio da legalidade, mas também o da impessoalidade e o da moralidade. O mesmo pode-se dizer quanto as dispensas indevidas ou o fracionamento impróprio de objeto licitado, condutas que violam além do princípio da legalidade, o princípio da moralidade.
Ocorre que, podem existir situações nas quais somente se vislumbre a violação do princípio da legalidade. Este ponto muito nos interessa na abordagem do tema "licitações e contratos", se levarmos em consideração o elevado número de mandados de segurança que são interpostos contra vícios de legalidade perpetrados em processos licitatórios. Pense, então, na hipótese de inabilitação indevida de um licitante por ter apresentado documento obtido via Internet, quando a legislação admite tal forma de apresentação. Neste caso, estaremos diante de ato de improbidade?
Ora, se interpretarmos a lei literalmente teríamos que toda ilegalidade efetivamente constitui uma improbidade, porque é isso que consta do art. 11. Aliás, este é o entendimento de alguns doutrinadores [56].
Há, no entanto, quem entenda que para caracterização do ato de improbidade por violação de princípios, necessário se faz a associação à imoralidade da conduta [57]. Então, no exemplo citado, além da necessidade de se demonstrar a ilegalidade, deverá estar provado que o ato foi fruto da desonestidade, má-fé ou intolerável incompetência da comissão de licitação, reveladora do descaso no trato da coisa pública. Em conseqüência, para quem sustenta tal posicionamento, a violação aos princípios administrativos deverá sempre contar com um plus que seria a má-fé, essência da moralidade.
Outros se reportam ainda à teoria das nulidades dos atos administrativos para abordar a matéria. Assim, quando a ilegalidade gera um ato anulável passível de convalidação, não se estaria diante de ato de improbidade [58]. Por outro lado, caso a ilegalidade leve à nulidade absoluta do ato administrativo se poderá estar frente a uma conduta ímproba. Segundo Fábio Medina Osório "a relação entre a teoria geral das nulidades e improbidade apenas fornece o caminho, ou melhor dizendo, o "cheiro" da improbidade administrativa" [59].
Entendemos que, caso a violação autônoma do princípio da legalidade fosse considerada, via de regra, ato de improbidade administrativa seria instalado um caos, uma vez que todo mandado de segurança interposto contra a Administração Pública, julgado procedente, geraria, em tese, uma ação judicial por ato de improbidade administrativa, com fundamento na Lei n° 8.429/92. Tal interpretação levaria, com certeza, a efetiva banalização do instituto. Mas não é só isso. Pensamos que a violação do princípio da legalidade mesmo ocorrendo no âmbito da Administração, muitas vezes viola precipuamente interesse particular, como no exemplo dado. No nosso entender não há, em regra, prejuízo ao interesse público a inabilitação indevida de um licitante no processo licitatório, salvo se além do princípio da legalidade se verificar a violação de outros princípios, como por exemplo, o princípio da impessoalidade ou mesmo da moralidade. Em conseqüência, a violação única do princípio da legalidade somente caracterizará ato de improbidade se tal violação gerar um risco de dano para o interesse público.
Tratando da improbidade fundamentada no art. 11 da Lei, não podemos deixar de abordar a dispensa indevida da licitação, fundamentada no art. 24, IV, da Lei n° 8.666/93 [60], que muitas vezes leva a violação de princípios administrativos. Referido dispositivo trata da dispensa por situação de emergência ou calamidade pública.
Segundo Jessé Torres Pereira Júnior "os abusos na dispensa de licitação por suposta emergência multiplicam-se, sendo possível afirmar que o volume das aquisições sem licitação suplanta o daquele decorrente da competição pública, graças, em parte, à aplicação descriteriosa do permissivo da emergência" [61]. Por situação de emergência se entende a situação de risco que somente poderá ser afastada através da contratação imediata. Marçal se reporta à "existência de situação fática onde há potencial de dano caso sejam aplicadas as regras-padrão" [62].
Ocorre que, na prática, muitas vezes a situação de emergência decorre da proposital inércia da autoridade competente, voltada a beneficiar terceiros. Pense no caso do gestor público que sabe da proximidade do termo final do contrato de prestação de serviço de informática em determinado órgão público, sem possibilidade legal de prorrogação, e não adota qualquer providência para realização de processo licitatório destinado à contratação de empresa para a prestação do referido serviço ou então decide instaurá-lo faltando apenas 15 (quinze) dias para o termo final do contrato. Ora, findo o contrato obviamente que o serviço por envolver prestações homogêneas, de cunho continuado, não poderá ser interrompido. Observe que a lei não distingue a fonte causadora da situação emergencial, basta o risco de dano para se autorizar a contratação direta. Assim, poderá o referido gestor proceder à contratação direta com fundamento no art. 24, IV, da Lei n° 8.429/92. No entanto, apesar da possibilidade de realizar a contratação com base nesse dispositivo, deverá ser apurado o possível ato de improbidade administrativa perpetrado pela autoridade responsável, decorrente da violação dos princípios da impessoalidade e moralidade administrativa, enquadrado no art. 11, caso não se verifique o enriquecimento ilícito ou o prejuízo ao erário.
Outro ponto que merece nossa atenção é a contratação de advogados pela Administração Pública e a possível violação de princípios administrativos.
É inegável que a evolução do Estado retirando-lhe a posição de senhor absoluto, realizador de atividades indiscutíveis, tornou possível o questionamento das realizações estatais, sujeitando-o a diversas formas de controle. Ora, tal processo evolutivo gerou a necessidade da presença constante de advogados qualificados nos quadros da Administração Pública, contratados através de concurso.
Ocorre que, por diversas vezes a Administração Pública recorre à contratação de profissionais estranhos a seus quadros, utilizando para tal fim o disposto no art. 25, II, da Lei n° 8.666/93.
É inegável que a profissão de advogado é dotada de uma certa posição institucional de "nobreza e nobilização", conforme afirmou Pinto Ferreira [63], exigindo do profissional conhecimento técnico-científico. Assim, incluem-se os serviços profissionais de advocacia entre aqueles arrolados no art. 13 da Lei n° 8.666/93, ou seja, serviços técnicos especializados.
No entanto, para a contratação de advogados por inexigibilidade de licitação, com fulcro no inciso II do art. 25, necessária se faz a observância de dois requisitos: notória especialização e singularidade do serviço.
No que concerne à "notória especialização" a doutrina já esclareceu, à exaustão, tratar-se da forma consagradora do profissional no campo de sua especialidade ou da reconhecida capacidade do profissional ou firma na pertinente matéria [64]. Tal reconhecimento deve partir da comunidade e não exclusivamente do âmbito interno da Administração. Ademais, o próprio § 1° do art. 25, da Lei de Licitações, tratou de classificar a notória especialização, não causando perplexidade maior o entendimento de tal expressão. Com efeito, não preenche o requisito de notória especialização a contratação de um consagrado advogado criminalista para defesa do Município em determinada causa de natureza tributária.
O entrave maior, que vem causando desvios na aplicação da norma legal em comento, situa-se no segundo requisito, qual seja, a singularidade do serviço. De imediato, deve-se afirmar que a natureza singular não significa ausência de pluralidade de sujeitos em condições de desempenhar o objeto. Segundo Marçal Justen Filho "a natureza singular se caracteriza como uma situação anômala, incomum, impossível de ser enfrentada satisfatoriamente por todo e qualquer profissional especializado" [65]. Assim, o simples fato da atividade estar enquadrada no inciso V do art. 13 da Lei não a torna uma atividade singular, é preciso ainda que sejam preenchidos requisitos variáveis, tais como, a especialidade da matéria, a complexidade da questão, o grau de jurisdição, dentre outros. Ou seja, diversos fatores podem contribuir para a caracterização da natureza singular do serviço advocatício. Nesse diapasão, não se pode falar em singularidade do serviço quando se está diante de ações trabalhistas propostas por celetistas contratados pela Administração Pública ou frente a mandados de segurança interpostos contra decisões proferidas em processos licitatórios.
Com efeito, caso ocorra a contratação direta com fundamento no dispositivo em comento sem que sejam preenchidos os requisitos legais – notória especialização do advogado e natureza singular da causa – poder-se-á estar diante de ato de improbidade por violação dos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade.