"Nos tempos antigos da arte
Os construtores com todo cuidado trabalhavam
Cada minúscula e invisível parte
Pois os deuses em todo lugar se encontravam"
Henry W. Longfellow
A Lei 11.343/06 vem ao cenário jurídico brasileiro com a pretensão de propiciar um tratamento mais adequado ao problema do consumo, dependência e tráfico de drogas. Promove uma revolução no modelo anterior, mediante a implantação de um paradigma terapêutico em substituição daquele punitivo anteriormente vigente em relação aos usuários e dependentes. Cria novas condutas criminosas e procura aperfeiçoar as já existentes.
Malgrado as louváveis intenções do legislador, o referido diploma incorre em alguns equívocos, dentre os quais neste trabalho pretende-se analisar a causa de aumento de pena prevista no artigo 40, VII. Nesse dispositivo é previsto um aumento de pena da ordem de um sexto a dois terços se "o agente financiar ou custear a prática do crime".
Nenhuma crítica poderia ser acatada quanto à exacerbação punitiva contra o agente que financia ou custeia a atividade criminosa, pois que normalmente aquele que dá suporte econômico – financeiro a qualquer atividade exerce função primordial para sua viabilidade. Trata-se de uma reação penal absolutamente proporcional e racional na medida em que enseja um tratamento diferenciado entre o pequeno criminoso e aqueles que fomentam e dirigem com poderio financeiro as organizações ou grupos delinqüentes.
Acontece que o artigo 36 da lei sob comento prevê a seguinte conduta típica:
"Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos artigos 33, "caput" e § 1º., e 34 desta lei".
Face a isso, torna-se inócua e inaplicável a causa de aumento de pena do artigo 40, VII, do mesmo diploma legal. Senão vejamos:
O artigo 40, "caput" estabelece o aumento para "as penas previstas nos artigos 33 a 37". Ora, se o agente incidir no artigo 36 por óbvio inaplicável será o aumento do artigo 40, VII, vez que a circunstância do financiamento ou custeio dos crimes já configura a conduta típica.
Mesmo nos casos em que o autor cometa outros ilícitos previstos na lei, também inviabilizada estará a aplicação da causa de exasperação em destaque. É cristalino que tal atividade de custeio ou financiamento somente se coadunaria aos ilícitos previstos nos artigos 33, "caput" e § 1º., bem como 34 da Lei de Tóxicos. Em assim sendo, ocorreria concurso de crimes, responsabilizando-se o autor pelo ilícito respectivo e pelo artigo 36 da Lei 11.343/06, afastando-se novamente a imposição do aumento previsto no artigo 40, VII.
É pacífica a lição da doutrina e da jurisprudência, inclusive abrigada expressamente na redação do artigo 61, "caput", do Código Penal [01] quanto à impossibilidade de dupla apenação por um mesmo fato. [02]
Não bastasse ser a vedação do "bis in idem" um princípio basilar do Direito Penal, há também disposição expressa determinando sua incidência no caso enfocado. Trata-se do já citado artigo 61, "caput", do Código Penal, o qual, como regra geral do ordenamento jurídico – penal, complementa indubitavelmente o artigo 40, "caput", da Lei 11.343/06.
Nota-se neste ponto o quão ilusória é a máxima de hermenêutica que afirma não existirem na lei palavras vãs. A Lei 11.343/06 dá mostras dessa ilusão ao inserir todo um inciso inútil e inaplicável em seu texto (artigo 40, VII).
Remetendo finalmente o raciocínio ao epígrafe escolhido para este trabalho, observa-se que Longfellow refere-se ao esmero com que se pautavam os antigos artífices. Na pouco ponderada linguagem de Frankfurt: [03]
"O significado dessas linhas é claro. Antigamente, os profissionais não se poupavam trabalho. Labutavam com atenção e tinham cuidado com os menores aspectos de sua lida. Todas as partes do produto eram consideradas, e cada uma delas projetada e feita para ser tal como deveria. Esses profissionais não relaxavam em sua zelosa autodisciplina, mesmo em relação àqueles detalhes de sua ocupação que não eram comumente visíveis. Embora ninguém fosse reparar se eles estivessem precisamente corretos, os artífices seriam incomodados por suas consciências. Dessa forma, não se varria nada para baixo do tapete. Ou, pode-se também dizer, não se fazia merda" (sic). [04]
Certamente, a mesma dedicação e cuidado não é atributo freqüente nas obras do legislador brasileiro. Neste caso em particular, bem melhor andaria se houvesse sido guiado pelo sábio conselho do Abade Dinouart, lembrando-se de que só se deve falar (ou redigir) se aquilo que vai ser dito (ou escrito) valer mais do que o silêncio. [05]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DINOUART, Abade. A arte de calar. Trad. Luís Filipe Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
FRANCO, Alberto Silva "et al." Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5ª. ed. São Paulo: RT, 1995.
FRANKFURT, Harry G. Sobre falar merda. Trad. Ricardo Gomes Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2005.
NOTAS
01
Eis a redação: "São circunstância que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime".02
Ver por todos: FRANCO, Alberto Silva "et al." Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5ª. ed. São Paulo: RT, 1995, p. 752.03
Referência a Harry G. Frankfurt, renomado e polêmico filósofo moral, professor emérito de filosofia da "Princeton University".04
FRANKFURT, Harry G. Sobre falar merda. Trad. Ricardo Gomes Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2005, p. 26 – 27.05
A arte de calar. Trad. Luís Filipe Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 12.