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Da natureza do prazo de dois anos previsto na CF, art. 7º, XXIX

14/09/2006 às 00:00

Resumo:


  • O tratamento dado ao prazo bienal previsto na CF/88 nega a autonomia do direito processual.

  • A prescrição é a perda da eficácia de uma pretensão por inércia do titular do direito subjetivo.

  • O prazo de dois anos previsto na CF 7º, XXIX não se refere a prescrição, mas ao exercício de direito potestativo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Não se trata de prescrição, mas de decadência. Não há que se falar na aplicação das regras relativas à suspensão ou interrupção dos prazos. Desse modo, equivocada é a Súmula 268 do TST.

            1.O tratamento que doutrina e jurisprudência trabalhistas têm dado ao prazo bienal previsto na CF/88, art. 7º, XXIX, ainda que de modo inconsciente, nega a autonomia do direito processual construída por Oskar Von Bülow, em sua obra já centenária, Die Lehre von den Prozesseinreden und die Prozessvoraussetzungen (Teoria das exceções e dos pressupostos processuais), publicada em 1868, mas que já fora delineada por Windscheid e Muther uma década antes.

            Como veremos mais profundamente abaixo, dar a esse prazo a natureza de prescrição é negar a autonomia, a abstração do direito de ação, já tão desenvolvida pela doutrina universal – valendo destacar as obras de Eduardo J. Couture, Fundamentos do direito processual civil, e de F. C. Pontes de Miranda, Tratado das ações.

            Para expor a nossa tese, iniciaremos por um breve estudo sobre o que é a prescrição, demonstrando por que ela não se aplica ao prazo bienal; passaremos pela definição de direito potestativo e a sua relação com a decadência, concluindo pela natureza jurídica do referido prazo de dois anos previsto no art. 7º, XXIX, da CF/88.

            2.Por prescrição, instituto concebido em favor da estabilidade e segurança jurídicas (tal como a decadência), entende-se a perda da eficácia de determinada pretensão pela inércia do titular do direito subjetivo por prolongado lapso temporal.

            Direito subjetivo, na lição ponteana, é vantagem decorrente de incidência de uma norma jurídica sobre um suporte fático tido como suficiente. Todo direito subjetivo, produto de uma regra de direito objetivo, é uma limitação à esfera de atividade de outro ou de outros possíveis sujeitos de direito. A regra jurídica dirige-se a pessoas, fixando-lhes posições em relação jurídica. Quem está ao lado ativo é sujeito de direito, ao que corresponde o dever do sujeito passivo (Maria Berenice Dias, ‘Observações sobre o conceito de pretensão’, n. 4).

            Assim, "Quando se diz que ‘prescreveu o direito’ emprega-se elipse reprovável, porque em verdade se quis dizer que ‘o direito teve prescrita a pretensão (ou a ação), que dele se irradiava ou teve prescritas todas as pretensões (ou ações) que dele se irradiavam’. Quando se diz ‘dívida prescrita’ elipticamente se exprime ‘dívida com pretensão encobrível (ou já encoberta) por exceção de prescrição’. Muito diferente é o que se passa quando se diz ‘pretensão prescrita’, ou ‘ação prescrita’. A pretensão prescrita é a pretensão encobrível (ou já encoberta) por exceção de prescrição" (Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t. VI, p. 103).

            Portanto, o autor não perde o poder de exigir; e tanto é assim, que a prescrição não pode ser decretada ex officio, apesar de as mudanças legislativas virem invertendo essa regra. Por se tratar de exceção [01] (exceptio temporis), pode ser renunciada, nunca previamente (CC 191), pela parte beneficiada quando se tratar de direito disponível. A regra anterior do CC 194 permitia o reconhecimento de ofício da prescrição que beneficia o capaz ou o relativamente incapaz, somente quando ela tivesse se operado sobre direito indisponível, i.e., irrenunciável, mas em sua nova redação permite o amplo reconhecimento pelo julgador, o que pode trazer alguns problemas práticos, pois seria temerário o juiz reconhecer a prescrição antes da defesa do réu, haja visto a possibilidade deste exercer a renúncia, expressa ou tácita, sobre essa exceção – ainda que seja extremamente raro que isso ocorra na prática.

            A prescrição não aniquila o direito subjetivo – a conduta não deixa de existir, e o agente ainda é responsável –, mas o titular do direito deixa de ter a pretensão condenatória (punitiva, ou sancionatória, em favor do Estado-Administrador no caso das responsabilidades penal e administrativa, e reparatória em favor da vítima lesada, no caso da civil). Assim, na esfera penal, crime ainda há, mas não é mais possível a prolação de sentença condenatória; e como na jurisdição penal não se admite o ajuizamento de ação meramente declaratória, a juridicidade ou não da conduta não mais poderá ser objeto de pronunciamento judicial.

            3.As grandes questões que se põem, e que ainda não foram satisfatoriamente respondidas pela doutrina, são: ¿sobre pretensões de que natureza incide a prescrição?, e, por conseqüência, ¿sobre quais não incide?

            A legislação ainda se encontra muito distante de um tratamento sistemático da matéria – o legislador prefere a técnica da casuística, determinando um tratamento para cada tipo de situação, e estabelecendo uma regra geral de aplicação subsidiária (CC 205); na esfera trabalhista aparentemente não há grandes tormentos, havendo uma única regra geral – cinco anos (CF, 7º, XXI, primeira parte) – visto que em regra se demanda verba referente a descumprimento contratual. [02] Tal tratamento dispensado pelo legislador leva à conclusão de que a prescritibilidade da pretensão é a regra, e a imprescritibilidade é a exceção.

            4.Poucos são os doutrinadores que vão além da simples enumeração das situações previstas em lei de prescrição e decadência, procurando identificar um fio condutor, uma regra geral, por detrás da colcha de retalhos legislativa. Menos ainda são os que obtiveram algum sucesso digno de nota nesta empreitada.

            Agnelo Amorim Fº. (‘Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar ações imprescritíveis’, in: Revista dos tribunais, n. 744. p. 725-750) é talvez quem tenha obtido o maior grau de êxito na sistematização das hipóteses de incidência da prescrição. O autor, partindo da classificação ternária das ações de Chiovenda, definiu que: as ações declaratórias não estão sujeitas a qualquer tipo de restrição temporal – i.e., não prescrevem nem caducam, ressalvando-se o entendimento de que, prescrita a pretensão ou caduco o direito potestativo ao qual é ligado o objeto da ação meramente declaratória, faltaria interesse de agir ao demandante; [03] as ações constitutivas, que estão sempre ligadas ao exercício de um direito potestativo [04], não são sujeitas a restrição temporal, salvo quando prazo decadencial lhe houver sido atribuído [05]; as ações condenatórias (e, seguindo a orientação ponteana, aqui incluímos as executivas e as mandamentais, pois nas três o que se busca é uma prestação do demandado) estão sempre sujeitas à limitação temporal, salvo quando a lei a disser imprescritível, como o faz, p.ex., a CF 37, §5º – no silêncio da lei, aplica-se a regra geral.

            Eventual prazo decadencial para o manejo do instrumento processual (p.ex., CPC 495; LMS 18; CF 7º, XXIX) em nada prejudica esta classificação – a prescrição se refere ao objeto da ação (pretensão de direito material), enquanto a decadência ao direito de ação, rectius, direito à prestação jurisdicional [06] (pretensão, na verdade direito potestativo, à tutela jurisdicional).

            Imprescritíveis são ainda as exceções. Não se inscreve na casa dos direitos imprescritíveis, senão da faculdade de opor uma defesa à pretensão de outrem, faculdade que subsiste enquanto permanece a actio do contendor, uma vez que a utilização da exceptio não está, em regra, na dependência da exclusiva iniciativa do seu titular. Ao contrário, mantém-se na dependência do exercício da ação por parte do adversário, e não seria equânime que se extinguisse a oponibilidade da exceção, que é técnica de defesa, antes de ser formulada a pretensão a que visaria extinguir. [07] Câmara Leal faz a ressalva de que "quando o réu é demandado pelo autor tem contra este um direito que não pode ser pleiteado por via de ação, mas somente oponível por meio de exceção, essa exceção é imprescritível, podendo ser, em qualquer tempo, alegada, desde que a ação seja proposta. Mas, quando o réu tem contra o autor um direito, que poderia ter feito valer por meio de ação, e não o fez, com a prescrição da ação prescreve também a exceção, em virtude da extinção do direito que ela teria por fim fazer conhecer" [08] – é este o sentido do CC 190.

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            Se as ações declaratórias têm por objeto a declaração sobre a existência ou eficácia de relação jurídica material, ou sobre a autenticidade de documento [09], não há que se falar em pretensão. Da mesma forma, os direitos potestativos, não sendo passíveis de violação, não dão ensejo ao surgimento de uma pretensão. Como o campo de incidência da prescrição é exatamente a eficácia da pretensão, se não há pretensão, não há prescrição.

            Tal classificação tem o mérito de poder ser aplicada não só à esfera cível, mas também à penal e à administrativa, embora não tenha sido esta a intenção do autor, que limitou a sua análise ao âmbito do direito privado. Porém, o legislador pátrio, quando da elaboração da Lei 10.406/02, parece ter preferido a proposta de Câmara Leal [10], que não se distancia muito desta, mas com o demérito de depender excessivamente do exame empírico do caso concreto, dificultando uma identificação a priori da situação.

            5.O prazo de dois anos previsto na CF 7º, XXIX, não se refere a uma violação de direito, ao surgimento de uma pretensão, mas sim de prazo para o exercício de direito potestativo, qual seja, o de ajuizar reclamatória trabalhista.

            Essa posição pode ser entrevista na redação do art. 731, da CLT, ao dispor sobre a "perda, pelo prazo de 6 (seis) meses, do direito de reclamar".

            Enquanto suspenso o "direito de reclamar", segue correndo o prazo prescricional relativo às verbas contratuais.

            Temos de forma clara que os prazos previstos no inc. XXIX, do art. 7º, são de natureza diversa, incidindo sobre situações diversas.

            Tanto é assim, que o prazo para reclamar só se diz ter início quando do término da relação contratual, enquanto o prazo qüinqüenal, esse verdadeiramente prescricional, corre mesmo durante a vigência do contrato de trabalho.

            Jurisprudência e doutrina são unânimes ao afirmar em relação a todos os demais prazos para o manejo de instrumento processual (exercício do chamado "direito de ação"), que têm natureza decadencial – assim o é, p. ex., em relação aos prazos para ajuizamento da Ação Rescisória (v. Theotônio Negrão, Código de processo civil, nota 3 ao art. 495, do CPC), e do Mandado de Segurança (v. op. cit., nota 4 ao art. 18, da LMS).

            Falta, agora, que esse truísmo jurídico seja notado e desvelado na Justiça do Trabalho em relação ao prazo para ajuizamento da reclamatória trabalhista.

            6.Assim, não se tratando de prescrição, mas de decadência, não há que se falar na aplicação das regras relativas à suspensão ou interrupção dos prazos prevista no CC 2002, em decorrência de expressa disposição legal – CC 207. Desse modo, evidentemente equivocada é a Súmula 268, do TST, não merecendo ser aplicada.


Notas

            01

Na lição de Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, t. VI): "O exercício da exceção e a prova dos fatos pré-excludentes, modificativos e extintivos são inconfundíveis; por isso, basta, para estes, que o juiz os encontre provados nos autos, ainda que o réu não os tenha articulado. Não assim quanto à exceção: em vez de fato, o que o juiz tem de encontrar é o exercício do direito do réu, o exercício do jus excepcionis" (p. 11). "Por mais cumprida e completamente provada que esteja, nos autos, a exceção, se não foi oposta, isto é, alegada como exercício (= comunicação de conhecimento mais comunicação de vontade), nada pode o juiz no sentido de atender a ela. (...) Do conceito de exceção é ineliminável que dependa do demandado, ou devedor, exercê-la" (p. 11). "Concebida como exceção, como sempre o foi no direito romano, a prescrição aproveita, também, ao devedor, ainda quando ele sabia e sabe que deve. Tal proteção não é ipso jure. A exceção pode deixar de ser oposta, o que dá ao seu titular a faculdade de não na opor, ficando bem, assim, com a sua consciência" (p. 104).

            02

Uma grande questão se põe quanto às verbas de natureza extra-contratuais (p.ex., indenização por danos morais), que começam a ser demandadas na esfera da Justiça do Trabalho. A experiência nos diz que será aplicado indistintamente o prazo qüinqüenal, que na verdade se refere, como já apontamos, a verbas contratuais ("créditos resultantes das relações de trabalho") – entendemos, porém, que a melhor solução seria a aplicação do art. 206, §3º, V, do CC/02.

            03

Mas aí não se fala em restrição em razão do decurso de tempo, mas sim da falta de utilidade/necessidade da prestação jurisdicional.

            04

"La scienza moderna del diritto privatto vede nei diritti potestativi potere, in virtù dei quali il loro titulare può influire su situazioni giuridiche preesistenti mutandole, estinguindole o creando nuove mediante un´atività propria unilaterale (atto reale, negozio giuridico o istanza giudiziale o ricorso amministrativo). (...) ai diritti potestativi non se trova che la semplice soggezione di altre persone, un vincolo cui queste non possono sottrarsi. I doveri corrispondenti ai diritti di signoria sono suscettibili di lesione, perchè nei diritti assoluti l´oggeto può essere sottratto al titolare e nei relativi il debitore può contravvenire alla sua obbligazione. Inveci nei diritti potestativi la lesione non parrebe neppure concepibile, perchè l´esercizio di essi è tuto indipendente dalla volontà di chi deve subirli" (A ciência moderna do direito privado vê nos direitos potestativos poderes, em virtude dos quais seus titulares influem sobre situação jurídicas preexistentes, mudando-nas, extinguindo-nas ou criando novas mediante uma atividade própria unilateral (ato real, negócio jurídico ou ação judicial ou recurso administrativo). (...) aos direitos potestativos se encontra apenas a simples sujeição de outras pessoas, um vínculo do qual esta não pode se liberar. Os deveres correspondentes aos direitos de domínio são suscetíveis de lesões, porque nos direitos absolutos o objeto pode ser subtraído do titular e nos relativos o devedor pode descumprir sua obrigação. Pelo contrário, nos direitos potestativos a lesão não parece nem mesmo concebível, porque o exercício deles é totalmente independente da vontade de quem a ela deve sujeitar-se). Messina, ‘Diritto Potestativo’, in: Novissimo Digesto Italiano Totino, UTET, 1965, p. 737.

            Agnelo Amorim Fº. (loc. cit., p. 728), por seu turno define direitos potestativos como "aqueles poderes que a lei confere a determinadas pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sobre situações jurídicas de outrem, sem o concurso da vontade dessas".

            05

Neste mesmo sentido: Hugo de Brito Machado, ‘Imprescritibilidade da ação declaratória do direito de compensar tributo indevido’, n. 3.

            06

Cf. Ovídio A. Baptista da Silva, ‘Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação’, in: Ajuris, n. 29, passim.

            07

Caio Mário, Instituições, vol. I, n. 121, p. 439.

            08

Câmara Leal, Da prescrição e da decadência, p. 50-60.

            09

Cf. Pontes de Miranda, passim.

            10

"É de decadência o prazo estabelecido pela lei, ou pela vontade unilateral ou bilateral, quando prefixado ao exercício do direito pelo seu titular. E é de prescrição, quando fixado, não para o exercício do direito, mas para o exercício da ação que o protege. Quando, porém, o direito deve ser exercido por meio da ação, originando-se ambos do mesmo fato, de modo que o exercício da ação representa o próprio exercício do direito, o prazo estabelecido para a ação deve ser tido como prefixado ao exercício do direito, sendo, portanto, de decadência, embora aparentemente se afigure de prescrição" Câmara Leal, Da prescrição e da decadência, p. 133-134.
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Sobre o autor
Marcelo Azevedo Chamone

Advogado, Especialista e Mestre em Direito, professor em cursos de pós-graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAMONE, Marcelo Azevedo. Da natureza do prazo de dois anos previsto na CF, art. 7º, XXIX. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1170, 14 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8923. Acesso em: 18 dez. 2024.

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