UMA PROVIDÊNCIA ABSURDA TOMADA PELA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA NO COMBATE À COVID-19
Rogério Tadeu Romano
Observo do que é dito do site do Estadão, em 19 de março do corrente ano:
“Em uma nova ofensiva contra governadores, o presidente Jair Bolsonaro acionou na noite desta quinta, 17, o Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar os decretos estaduais da Bahia, do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul, que determinaram ‘toques de recolher’ para conter o avanço da pandemia da covid-19. O presidente considera que as medidas são ‘uma decisão política desproporcional’. Bolsonaro entrou com a ação no STF no momento em que o País passa pelo pior momento da pandemia do novo coronavírus, com recordes sucessivos no número de óbitos diários.
Na avaliação de Bolsonaro, os decretos afrontam as garantias estabelecidas na Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica e ‘subtraíram parcela importante do direito fundamental das pessoas à locomoção, mesmo sem que houvessem sido exauridas outras alternativas menos gravosas de controle sanitário’.
O presidente também quer que o STF estabeleça que medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem a aprovação de leis locais, por parte do Poder Legislativo, não podendo ser determinadas unilateralmente por decretos de governadores.
“Tendo em vista o caráter geral e incondicionado dessas restrições à locomoção nos espaços públicos, elas podem ser enquadradas no conceito de “toque de recolher”, geralmente associado à proibição de que pessoas permaneçam na rua em um determinado horário. Trata-se de medida que não conhece respaldo legal no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro”, registra a ação assinada pelo próprio presidente.”
Entendo que a providência adotada pelo presidente da República em sede de controle abstrato da constitucionalidade peca por vários erros.
A uma, com relação ao direito à saúde.
Em 1988, o Brasil rumou para um caminho democrático ao ver promulgada a sua Constituição-cidadã.
Alinha-se a Constituição de 1988, no Brasil, a um moderno Estado Democrático de Direito que reclama uma Democracia Participativa aberta, dentro de uma Constituição aberta a todas as instâncias de participação permanente. Fácil e ver que os esquemas político-institucionais baseados em estruturas antigas, do tipo liberal-individualista, não se adaptam às novas exigências da ordem coletiva.
O Estado tem o dever de zelar pela saúde, a educação, a A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperem.
As ações e serviços de saúde são de relevância pública, por isso ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público, nos termos da lei, a que cabe executá-los diretamente ou por terceiros, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.
Na lição de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 696), se a Constituição atribui ao Poder Público o controle das ações e serviços de saúde, significa que sobre tais ações e serviços tem ele integral poder de dominação que é o sentido do termo controle, mormente quando aparece ao lado da palavra fiscalização.
A atuação no campo da saúde diz respeito ao sistema único de saúde, integrado por uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever de relação jurídica que tem no polo ativo qualquer pessoa e a comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é ainda um direito coletivo. O sistema único de saúde implica ações e serviços federais, estaduais, distritais (DF) e municípios, regendo-se pelos princípios da descentralização, com direção única em cada esfera de governo, de atendimento integral, com prioridades para atuações preventivas e da participação da comunidade, o que confirma seu caráter de direito social pessoal, de um lado, e de direito social, coletivo, de outro.
Responsável pelas ações e serviços de saúde é o Poder Público, na medida em que a Constituição fala em ações e serviços públicos de saúde, para distinguir a assistência à saúde pela iniciativa privada, que ela também admite.
Pois bem.
É impositiva a ação estatal, em todas as esferas federativas, quando o assunto é a saúde pública.
O Princípio da obrigatoriedade da ação estatal ensina que o Estado deve prevenir, por todos os meios possíveis, as ameaças à saúde pública.
No passado presente, é sempre indispensável dizer, vivemos a maior crise sanitária de nossa geração. Suas repercussões são terríveis na ordem econômica, social, da educação.
Os entes federativos têm vivido sérios problemas quanto à adequação das medidas que devem ser tomadas, no exercício do poder de polícia, em face da Lei nº 13.979/2020.
Sabe-se que a Constituição disciplinou a competência dos entes federativos como concorrente.
Mas, recentemente, em sede de Suspensões de Liminares, onde o mérito não foi objeto de cogitação, mas a adoção de medidas determinadas em face de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, em março deste ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, restabeleceu a plena eficácia do Decreto estadual 65.545/2021 de São Paulo que determinava a classificação do Município de São José dos Campos na fase vermelha do Plano São Paulo de combate à pandemia da Covid-19. A decisão cautelar foi proferida em dois pedidos de Suspensão de Liminar (SL 1428 e SL 1429) contra decisão do Tribunal de Justiça estadual (TJ-SP) que havia autorizado a migração do município para a fase laranja, menos rígida.
Então o que fazer com relação a matéria, envolvendo fechamento do comércio e dos serviços não essenciais, até mesmo um lockdown, tomados na devida proporcionalidade, quando União, Estados, Municípios, têm decisões conflitantes, de caráter prescritivos, com functores deônticos?
Penso que o assunto, por envolver uma pandemia, tem que ser tratado como direito à saúde.
Se entendido como tal a competência seria concorrente, como julgado pelo Supremo na ADi 6341. Por compreender ser aplicado ao caso o princípio da precaução/prevenção, há de prevalecer a norma do ente federativo concorrente que, sendo mais restritiva, tenha o maior condão profilático na matéria. Sobre a matéria há interesse estudo de Gabriel Vedy (O princípio constitucional da precaução como instrumento do meio ambiente e da saúde pública", Ed. Forum, 3ª ed., 2020).
Essa vertente diz respeito à aplicação dos princípios da prevenção e da precaução o que exigiria maior atenção das autoridades sanitárias e o implemento de medidas mais severas.
Em sendo assim, sob essa ótica, na controvérsia entre as medidas legais tomadas pelo município ou pelo Estado Membro, adotar-se-ia a mais grave e a mais incisiva para o caso.
O objetivo do Princípio da Prevenção é o de impedir que ocorram danos à saúde, concretizando-se, portanto, pela adoção de cautelas, antes da efetiva execução de atividades potencialmente produtoras de danos.
O Princípio da Precaução, por seu turno, possui âmbito de aplicação diverso, embora o objetivo seja idêntico ao do Princípio da Prevenção, qual seja, antecipar-se à ocorrência das agressões à saúde.
Enquanto o Princípio da Prevenção impõe medidas acautelatórias para aquelas atividades cujos riscos são conhecidos e previsíveis, o Princípio da Precaução encontra terreno fértil nas hipóteses em que os riscos são desconhecidos e imprevisíveis, impondo à Administração Pública um comportamento muito mais restritivo quanto às atribuições de fiscalização e de licenciamento das atividades potencialmente danosas à saúde.
Com isso proteger-se-ia o direito à saúde, que tem natureza difusa na sociedade.
Para tanto, é preciso reconhecer que, tendo em mente a equivalência valorativa entre os princípios da precaução e da prevenção, viabilizar-se-ia a sua consideração em duas dimensões, duas faces de uma mesma moeda: a) havendo ameaça de lesão, cujos reflexos são previsíveis ou conhecidos (situação tradicionalmente associada ao princípio da prevenção); e b) havendo ameaça de lesão, cujos reflexos não são previsíveis ou não são conhecidos (situação comumente associada ao próprio princípio da precaução).
Essa necessidade de atuação do Poder Público é respaldada na existência de outro princípio: o princípio da obrigatoriedade da ação estatal.
Sendo assim, repito, há de prevalecer a norma do ente federativo concorrente que, sendo mais restritiva, tenha o maior condão profilático na matéria, dentro de um necessário pacto pela vida.
A duas, a atuação dos Estados Membros, do Distrito Federal e dos Municípios, é respaldada por ser medida tomada com base no exercício do poder de polícia.
Por ser assim tais medidas são tipicamente executivas tomadas pela Administração, que se diferenciam de uma medida de estado de sítio, que pode ser tomada pelo executivo federal. O exercício do poder de polícia por parte dos entes federativos, como Estados Membros, Distrito Federal e Município, independe de atuação do Legislativos locais. Isso já disse em outro momento quando estudei a natureza dessas providências. Elas independem da chancela do Legislativo para sua efetividade.
Para tanto, cabe à Administração o manejo de instrumentos jurídicos no sentido de atender o interesse geral da sociedade.
O direito fundamental de ir e vir está sendo mitigado.
Estamos diante de um exercício de poder de polícia.
Atende-se aos casos de relevância e urgência na aplicação do modelo legislativo no que concerne ao exercício da autoexecutoriedade do ato administrativo para que se possa ter o poder de polícia.
Trata-se de executoriedade dos atos administrativos unilaterais. Através dele a Administração pode modificar, por sua única vontade, situações jurídicas, sem o consentimento dos atingidos pelo ato.
É a chamada execução forçada na via administrativa, que consiste em uma via jurídica especial, própria do ato administrativo, fazendo a Administração prescindir da declaratio iuris do Poder Judiciário.
A executoriedade, pois, por sua importância, é a manifestação do poder de autotutela da Administração Pública, pelo qual esta tem a possibilidade de realizar, de forma coativa, o provimento no caso de oposição do sujeito passivo.
Pois a executoriedade dos atos administrativos tem fundamental importância no exercício do poder de polícia administrativo, na faculdade que tem a Administração Pública de disciplinar e limitar, em prol de interesse público adequado, os direitos e liberdades individuais, como já ensinou Caio Tácito (O poder de polícia seus limites. in Rev. De Dir. Adm., volume 27, páginas 1 e seguintes).
Nessa linha de pensar, as decisões administrativas de polícia são, por sua natureza, executórias. A Administração tem a faculdade de recorrer a meios coercitivos para compelir ao cumprimento de suas determinações. Mas entenda-se que essa coação administrativa, desde que exercida, de forma moderada, e dentro de quadros legais, é permite, nos limites da proporcionalidade.
A providência legislativa adotada precisa ser enquadra em parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade.
A razoabilidade é vista na seguinte tipologia:
a) razoabilidade como equidade: exige-se a harmonização da norma geral com o caso individual;
b) razoabilidade como congruência: exige-se a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação;
c) a razoabilidade por equivalência: exige-se uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.
Há, ainda, o que se chama de proporcionalidade em sentido estrito, onde se cuida de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Pesam-se as desvantagens dos meios em relação ás vantagens do fim.
Em resumo, a providência deve atender aos seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.
O artigo 78, da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 cita que:
"Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder."
Perguntou Marcelo Caetano (Princípios fundamentais do direito administrativo, 1989, pág. 336): Sendo um sistema de restrições à liberdade, a Polícia será odiosa? A polícia será inimiga da liberdade?
Disse Marcelo Caetano: “A polícia não é inimiga da liberdade: é uma garantia das liberdades individuais.
Então, Marcelo Caetano concluiu: “A polícia de um modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir.
A polícia como atuação da autoridade é um modo de atividade administrativa.
O poder de polícia tem como fim atingir a segurança, a higiene, a ordem, os costumes, a disciplina da produção e do mercado, o exercício das atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, a tranquilidade pública, o respeito à propriedade e aos direitos individuais.
Como tal, ela deve ser realizada nos limites da lei. Em sendo assim essas providências são absolutamente razoáveis diante do tamanho perigo trazido a toda à sociedade.
Por sua vez, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez (Curso de Direito Administrativo, tradução Arnaldo Setti, pág. 689) a execução forçada de um ato administrativo implica levar à sua aplicação prática, no terreno dos fatos, a declaração que no mesmo se contém, não obstante a resistência passiva ou ativa, a pessoa obrigada ao seu cumprimento.
Na Espanha, o RPA, artigo 102 formula um princípio geral de autotutela coativa com fins de execução forçada, nestes termos: “A Administração pública, através de seus órgãos competentes em cada caso, poderá proceder, prévia advertência, à execução forçada dos atos administrativos, salvo quando por lei se exija a intervenção dos tribunais”.
Mas repito que essa execução coativa deve ser feita por autorização da lei, dentro dos limites da proporcionalidade e da razoabilidade.
Essa legalidade há de habilitar a ação administrativa, definir uma potestade de obrar mais ou menos ampla, mas nunca ilimitada. Pois então essa coação administrativa, no exercício do poder de polícia é produto de uma competência legal, mais ou menos intensa, porém limitada e não um princípio formal e absoluto.
Por fim, dir-se-á que a providência apresentada pelo Executivo Federal junto ao Supremo Tribunal Federal em grau de controle concentrado da constitucionalidade, revela-se de tamanha absurdidade diante do número de mortes e do desenvolvimento de novas cepas dessa terrível doença que é a covid-19.