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A garantia da imparcialidade do órgão jurisdicional e as hipóteses de aparente parcialidade

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17/09/2006 às 00:00
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3. Dos Pedidos Implícitos

Se, por um lado, existe o ônus de o autor da demanda formular pedido certo e determinado (art. 286, do CPC), contraditoriamente a regra de interpretação estrita do pedido, prevista no artigo 293 do CPC, ampliou o conhecimento do objeto litigioso posto em juízo, ao considerar compreendido "no principal os juros legais", denominado de "pedido implícito", a contrario sensu das ampliações já autorizadas pelos artigos 289 e 290 do CPC.

Milton Paulo de Carvalho [23] define pedidos implícitos como sendo "os que, embora por sua natureza pudessem constituir pedidos autônomos, a lei considera-os compreendidos no pedido simples ou qualificado,

ou presume neles compreendidos como decorrência objetiva da sucumbência processual", destacando nessa ordem o reembolso das despesas (custas, indenização de viagem, diárias de testemunhas, remuneração do assistente técnico) ao vencedor, o pagamento de honorários de advogado (art. 20, CPC), as prestações vincendas à época da propositura da demanda (art. 290, CPC), os juros legais, e por construção pretoriana, a correção monetária e os alimentos em dissolução de sociedade conjugal.

No mesmo sentido, posiciona-se Dinamarco [24], considerando que "a regra de interpretação estrita do pedido recebe ressalvas legais e sistemáticas relativas aos chamados pedidos implícitos". Identifica como pedidos implícitos os juros legais, as prestações periódicas, a correção monetária, as despesas do processo e com advogado e "a tutela jurisdicional relacionada com as obrigações de fazer ou de não fazer (art. 461, caput, e §§)".

Em que pese o amplo entendimento doutrinário e jurisprudencial de que os juros legais, prestações de trato sucessivo, a correção monetária, as despesas processuais com a demanda e os honorários advocatícios são pedidos implícitos, há necessidade de uma reflexão mais detida sobre o tema (se realmente se tratam de "pedidos implícitos").

Os juros legais, que podem ser de mora e compensatórios, de acordo com os artigos 406 do CC, 670, 869, 833,1762, do CC, respectivamente, não estando aí contemplados os juros remuneratórios e nem os de mora convencionais, são verdadeiros acessórios da obrigação principal. Portanto, poderiam ser objeto de pedidos autônomos, através de ações acessórias (de alimentos, de guarda de filhos etc), nos termos do artigo 108 do CPC. Decorrem de relação jurídica substancial.

Quanto às prestações periódicas, ou de trato sucessivo, originam-se da mesma causa de pedir, sendo passíveis de pedidos autônomos, também através de ações próprias. É o caso de cobrança de alugueres, de taxas de condomínio etc. Decorrem também de relações jurídicas de direito substancial.

A correção monetária nada mais é do que a recomposição do poder aquisitivo da moeda corroída pela inflação. Portanto, no valor da obrigação principal insere-se o quantum de correção monetária. A correção monetária é representativa da obrigação principal. Não se trata de acessório, que poderia ser objeto de ação acessória, nos moldes do artigo 108 do CPC, embora possa ser objeto de pedido autônomo. Decorre também de relação jurídica de direito substancial. Mas, tendo em vista que são vários os índices praticados de correção monetária, no País, aqui deve prevalecer o índice legal, previsto no Decreto nº 1544/95, que adotou o INPC-IGP-DI. A correção monetária defluente de índices convencionais não deve ser conhecida "ex officio".

As despesas de processo, as de honorários de advogado e as matérias relativas à efetividade das obrigações de fazer, não fazer e entrega de coisa são decorrentes de relação jurídico-processual, nos termos dos artigos 20 e 461, caput, e §§, e 461-A e §§, do CPC.

Como já visto, o pedido é decorrente de relação de direito substancial, requerendo a correspondente causa de pedir, onde ficam evidenciadas as condições da ação. Assim, os juros legais, a correção monetária oficial e as prestações periódicas seriam passíveis de pedidos de prestação jurisdicional. Entretanto, as despesas do processo e as de honorários advocatícios não são tecnicamente pedidos, porque não têm relação com o direito substantivo, razão pela qual não fazem parte da pretensão formulada; são decorrentes dela, quer em face da sucumbência, quer em face da necessidade de o Estado coagir indiretamente o demandado para dar efetividade à tutela concedida na sentença, nas hipóteses das matérias previstas no artigo 461, do CPC

Portanto, é equivocado qualificar esses fatos processuais como "pedidos implícitos", que de implícitos nada têm, pois não estão subentendidos em outro de natureza substancial, os quais têm realmente núcleo próprio. O que não discrepa é que esses "pedidos implícitos" são passíveis de conhecimento, tão-só porque existe previsão legal para que o juiz possa pronunciá-los, independente de pedido explícito do demandante.

E se o juiz pode praticar a atividade "ex-officio" é porque a norma é de ordem pública, cogente, obrigatória, sob pena de a omissão caracterizar error in procedendo, capaz de viciar a prestação jurisdicional.

Portanto, é imprópria a qualificação de "pedidos implícitos", quando a norma processual, de ordem pública, dispensa a formulação do pedido pelo demandante. Aliás, com propriedade Dinamarco [25] registra esse entendimento.

Conceitualmente, não há lugar para a existência de pedidos implícitos. Simplesmente, a lei e o sistema dispensam o pedido em algumas hipóteses, investindo o juiz do poder de pronunciar-se sobre juros, correção monetária, astreintes etc., ainda quando não hajam sido pedidos pelo demandante. Mais que exceções à regra da interpretação estrita, são ressalvas à proibição de conceder tutela extrapolante ao pedido feito (arts. 128 e 460). Todas elas contam com bom apoio legitimador da tendência universal a deformalizar o processo e da consciência da necessidade de promover a efetividade da tutela jurisdicional e do acesso à justiça (particularmente as exceções relacionadas com as obrigações de fazer ou não-fazer); mas falar em pedido implícito é valer-se arbitrariamente de uma desnecessária ficção legal, porque basta reconhecer que todos esses são casos em que o pedido é dispensável, não havendo por que fingir que ele haja sido deduzido.

Mas seria possível "interpretar" o pedido da demanda e daí entender que o autor pediu mais do que realmente ali consta, à luz do artigo 293, do CPC?

O artigo 293 do CPC estabelece que os pedidos serão interpretados restritivamente, o que significa que o juiz não pode alargar a sua abrangência, através de qualquer regra de interpretação.

O pedido reflete a manifestação da vontade do demandante [26], através da petição inicial (art. 282, incisos III e IV, CPC), que também delimita a atividade jurisdicional, para a entrega da prestação do serviço. Portanto, o juiz tem de ater-se ao limite estabelecido pelo autor, quando da formulação da demanda, não sendo legítimo, por ocasião do julgamento, expandi-lo, sob pena de descumprir as molduras legais, previstas nos artigos 128 e 460 do CPC.

Como bem definido por Araken de Assis [27]: "Não cabe ao juiz, atrelado à demanda, reescrever aquilo que o autor efetivamente pediu, ou extrair das entrelinhas o que, na verdade, o autor não pediu, embora pudesse tê-lo feito".

A vontade do autor está materializada no pedido expresso. Não há espaço para a interpretação do pedido, no sentido da compreensão de que além do pedido certo e determinado existam outros pedidos, sob pena de surpreender o demandado, por ocasião do julgamento.

Milton Paulo de Carvalho [28] ainda destaca que a interpretação do pedido não é de interesse apenas do juiz, mas "o é também do réu, que é o outro sujeito do contraditório", levando-se em conta que o réu também deverá interpretar o pedido para apresentar sua resposta. O réu não pode ser surpreendido pelo provimento de pedido não constante da demanda, tanto que, a entrega de prestação jurisdicional abrangendo "pedidos implícitos", está fundamentada em normas de ordem pública, razão pela qual não causa surpresa aos jurisdicionados, pelo simples fato de serem as normas de domínio público.

Isso não obstante, sem que haja ampliação do pedido formulado na petição inicial, existe a possibilidade de serem providos pedidos verdadeiramente implícitos [29], isto é, (a) aqueles decorrentes de efeitos jurídicos que são conseqüentes do pedido formulado, (b) os que integrem virtualmente o objeto litigioso do processo e, ainda, (c) os que sejam pressupostos para a apreciação do pedido expresso. [30]

Exemplo clássico de pedido implícito está na formulação do pedido de despejo, por infração de cláusula contratual, dentre as hipóteses identificadas na Lei n. 8245, de 18.10.1991. A locação de imóvel nada mais é do que a cessão do uso e do gozo do bem (posse) ao locatário pelo locador, por prazo determinado ou indeterminado, mediante o pagamento de uma remuneração periódica, denominado aluguel. O locatário passa a ser o legítimo possuidor direto do bem e o locador o possuidor indireto, por força de acordo de vontades (contrato). Em face de inadimplemento no pagamento dos alugueres, pode o locador requerer o despejo do locatário para reaver o seu imóvel, de acordo com o artigo 9º, inciso III c.c. 59 da L.I.

O pedido de despejo tem por objetivo a restituição da posse do imóvel. Ocorre que, existindo uma relação contratual, escrita ou verbal, entre o locador e o locatário, ela deve ser previamente resolvida, antes do decreto do despejo (=reintegração da posse), justamente para retirar a legitimidade da posse por parte do locatário.

Assim, embora o autor formule, na petição inicial, apenas o pedido de despejo, com fundamento em inadimplemento do pagamento dos alugueres, por ocasião da entrega da prestação jurisdicional, o juiz decretará a resolução do contrato de locação e o respectivo despejo. A resolução do contrato é resposta ao pedido implícito, eis que integra o objeto litigioso do processo (o artigo 62-I, da Lei nº 8.245/91, estabelece que nas ações de despejo fundadas em falta de pagamento de aluguel e dos acessórios da locação, o pedido de rescisão contratual poderá ser cumulado com o de cobrança dos alugueres). Na mesma seara, poderá ocorrer o pedido de resolução do contrato de aluguel, sem o pedido de despejo. Uma vez provida a resolução, poderá ser decretado o despejo (= reintegração da posse do imóvel ao locador), que seria o pedido implícito.

Situação análoga pode ocorrer com pedido de reintegração de posse, em decorrência de contrato de comodato, por infração de cláusula contratual. O pedido de reintegração de posse, com fundamento em esbulho por parte do comodatário, que, uma vez notificado, não restituiu o bem ao seu titular, pressupõe, antes, a rescisão do contrato de comodato.

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Destaca-se, ainda, outra hipótese de pedido implícito, quando ocorrer saque de duplicata simulada levada a protesto, por falta de pagamento. O autor pode pedir a nulidade do título, por ausência de causa debendi. Se for provido o pedido de nulidade do título, a sentença poderá contemplar o pedido implícito de cancelamento do protesto, que nada mais é do que o efeito do decreto de nulidade.

Pode-se ainda identificar pedidos implícitos nas seguintes situações: a) pedido de nulidade de escritura de compra e venda de imóvel. Se provido o pedido, poderá ser contemplado o pedido implícito de cancelamento do registro imobiliário; b) pedido de investigação de paternidade. Se provido, poderá ser contemplado o pedido implícito do registro civil de nascimento (inclusão do nome do pai); c) pedido de resolução de compromisso de compra e venda de imóvel. Se provido, poderá ser contemplado com o pedido implícito da reintegração de posse etc.

Por se caracterizar exceção ao princípio da congruência, a prestação jurisdicional de pedidos implícitos não desatende o princípio da imparcialidade.


4. Conclusões.

Os princípios da imparcialidade e do dispositivo não limitam a atividade "ex officio" do órgão jurisdicional, nas matérias de ordem pública e nos pedidos implícitos;

À vista dos artigos 128 (princípio da adstrição) e 460 (princípio da correspondência) do Código de Processo Civil, as atividades "ex officio" revestem-se de aparente parcialidade, porque representam os limites formais à atuação do órgão jurisdicional;

Em que pese a rigidez do sistema processual, ficaram demonstradas as exceções aos princípios da demanda, da adstrição e da correspondência, pela possibilidade do pronunciamento judicial sobre os pedidos implícitos e as matérias de ordem pública.


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Sobre o autor
Mário Helton Jorge

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mestre em Direito (PUC/PR). Professor da Escola de Magistratura do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JORGE, Mário Helton. A garantia da imparcialidade do órgão jurisdicional e as hipóteses de aparente parcialidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1173, 17 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8934. Acesso em: 26 abr. 2024.

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