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A nulidade parcial da sentença penal como artifício para a manutenção do decreto condenatório:

"error in judicando"

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22/09/2006 às 00:00
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7.Do sistema de nulidades processuais

Na sistemática das nulidades do processo penal, encontra-se a negação ao excesso de formalismo, tal como se observa na Exposição de Motivos (itens II e XVII), estabelecendo a prevalência dos impedimentos de declaração, ou de argüição das nulidades, tal qual estampa o artigo 563, do CPP:

"Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resulta prejuízo para a acusação ou para a defesa".

É o princípio pás nullitè sans grief, pelo qual não existe nulidade, desde que da preterição da forma legal não haja resultado prejuízo para as partes, o qual deve ser provado pelo interessado, nas nulidades relativas, e presumido, nas absolutas.

Por outro lado, se não houver a possibilidade de sanar a irregularidade formal, o ato deve ser novamente praticado, à luz do artigo 573 do CPP:

"Os atos cuja nulidade não tiver sido sanada, na forma dos artigos superiores, serão renovados ou retificados".

A correção pode ser efetuada por renovação, onde é realizado novamente, ou retificado, em que é alterado ou completado de acordo com as disposições legais. Corrige-se o ato viciado, por razão de economia processual, decorrente do princípio utile per inutile non vitiatur.

A não contaminação do que é válido pelo que é viciado é chamado de princípio da conservação do ato processual.

Portanto, o decreto das nulidades deve ser aplicado em conformidade com os parâmetros constitucionais: princípios e regras. Assim, marca-se como ponto de partida o Princípio do Devido Processo Legal (art. 5º, LIV, CF/88) para interpretar em que sentido os atos processuais podem ser considerados nulos.

Nesse sentido, o devido processo legal pode ser procedimental (formal) e substancial (material), entendido como a indispensável observância dos requisitos formais estabelecidos em lei.

Assim é que o procedimento deve fiel observância ao princípio da legalidade; logo, uma vez realizado o ato processual, em desacordo com a lei, deve ser sancionado com o decreto de nulidade.

Por outro lado, o devido processo legal substancial assegura que o ato processual somente deve ser anulado, se não alcançar a finalidade, pois não seria razoável e proporcional anular um ato que de qualquer forma atingiu o fim colimado pela lei.

Consagrou-se, portanto, o princípio da instrumentalidade das formas (procedural due processes of law) e o princípio da finalidade do ato processual (substantial due processes of law).

Portanto, o vício do ato consiste na falta de um dos requisitos exigidos pela lei para a sua validade e decorre da desobediência ao modelo legal.

Não sendo praticado o ato na forma expressa na lei, o ato será viciado. A finalidade do ato processual é o resultado prático a ser alcançado com a sua realização. O critério para identificar a nulidade de um ato é o da falta de sua idoneidade para alcançar o fim ao qual se destina, por ausência dos requisitos essenciais.

Se o ato não apresentar os requisitos indispensáveis para alcançar o objetivo deverá ser considerado nulo; contrariamente, se alcançar a finalidade, então, considerar-se-á válido. Ademais, o aproveitamento do ato processual não pode resultar em prejuízo, nem para a acusação e nem para a defesa.

A esta altura, circunscrito no âmbito das nulidades, é de se indagar se a sentença condenatória, desprovida de sanção (pena), pode alcançar a sua finalidade, isto é, se está apta a dar a resposta penal ao infrator da norma que tutela juridicamente um bem ?

Afigura-se razoável afirmar-se negativamente, pois a tutela jurisdicional, no momento, é apenas parcial, não havendo a correlação da sentença com a denúncia. O fim da sanção penal é o de reprovação da conduta delituosa.

De se notar, ainda, que a nulidade atinge o ato que não alcança a sua finalidade. A sentença toda (relatório – fundamentação – dispositivo – autenticidade) é um ato processual único, embora somente no decisum se formulem preceitos imperativos, destinados a produzir efeitos sobre a vida do réu, somente atingirá a sua finalidade, sendo procedente a pretensão, se condenar o réu e aplicar-lhe a sanção correspondente, como último ato do processo.

A nulidade parcial do dispositivo da sentença – no que se refere a aplicação da pena – para que outra seja realizada – implicará na cisão do ato jurídico único e último do processo. Assim, como será possível praticar outro ato processual se o processo já está extinto?

Na hipótese da sentença, é inaplicável o princípio da conservação dos atos processuais - a não contaminação do que é válido pelo que é viciado – porquanto se trata de ato processual único, não passível de renovação parcial. Entretanto, assim sendo admitido, fica caracterizado o error in judicando, pelo equívoco na aplicação dos efeitos da norma processual (artigo 564,inc.IV,c.c. 573, CPP), pois não é possível a co-existência de duas sentenças relativas à mesma pretensão.


8.Nulidade parcial da sentença por ausência ou deficiência de motivação.

Para a fixação da pena, em decorrência da condenação, existe um método, que está definido no artigo 68 e 59 do Código Penal (modelo legal). Assim, a pena deve ser fixada em três fases distintas, dito sistema trifásico, pois, por primeiro, fixa-se a pena-base, após, levam-se em conta as circunstâncias agravantes e atenuantes e, finalmente, as causas de aumento e de diminuição.

A pena-base é fixada com observância de oito circunstâncias legais, de acordo com a pena prevista no tipo legal violado, seguindo-se a definição do regime prisional, a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito.

Portanto, o método é a parte formal da aplicação da pena. O desvio do itinerário configura vício de atividade do juiz, isto é, error in procedendo, que leva a nulidade do ato, sem dúvida.

Ademais, é necessário esclarecer o fundamento que dá suporte ao quantum de pena estabelecido na sentença, da mesma forma o porque da definição do regime penitenciário, ou mesmo da substituição das penas. Isto é, dizer às partes das razões do convencimento do juiz; justificar a posição adotada com dados concretos extraídos das provas produzidas nos autos, cumprindo assim o dever de motivação.

Por outro lado, além do itinerário (método) a ser seguido na individualização da pena, cada fase, que defina a pena a ser aplicada, deve ser motivada. Pode, destarte, ocorrer no caminho percorrido erro de procedimento, viciando o ato.

Já, no que se refere à dosagem da pena, examina-se a culpabilidade, que é o pressuposto da pena. A sanção, ou pena, somente será imposta, quando for positivo, ou possível o juízo de reprovabilidade, sobre o comportamento passado.

Aqui, o juízo é de mérito (aplicação do direito material motivado). Na fixação da pena base, cada circunstância deve ser valorada com amparo em dados concretos, subtraídos do acervo probatório, produzido na instrução. Podem ser constatados erros in procedendo ou in judicando; in procedendo, por ausência ou deficiência de motivação; in judicando, por qualificação equivocada do fato em relação à circunstância, ou ainda por pena exacerbada (injusta).

A importância na definição da espécie de erro está na conseqüência de seus efeitos. Se for erro essencial de atividade, leva-o a sanção de nulidade; por sua vez, se for erro essencial de julgamento, o ato pode ser revisto, reformado, não se lhe aplicando a sanção de nulidade.

Assim, somente os vícios de atividade podem levar a nulidade integral da sentença, mister por falta de motivação. Se for erro de quantificação da pena, o ato poderá ser revisto pelo juízo ad quem.

Destaca-se,a propósito, a posição adotada por Antônio Magalhães Gomes Filho: [14]

"... tanto a falta de apresentação de qualquer justificação como a fundamentação incompleta, não dialética, contraditória, incongruente ou sem correspondência com o que consta dos autos, em relação à aplicação da pena, devem levar ao reconhecimento da nulidade da própria sentença condenatória, pois na verdade é a motivação desta que estará incompleta, na medida em que um dos pontos sobre o qual deveria versar não ficou devidamente fundamentado.( destaquei)

Sobre o tema, pode-se afirmar que a jurisprudência dos tribunais brasileiros tem sido bastante criteriosa e exigente, estabelecendo como princípio a nulidade da sentença condenatória sempre que não seja observado o critério trifásico, ou não devidamente justificada a imposição de pena acima do mínimo legal, bem como a fixação de regime inicial mais grave, quando existir outro mais favorável ao condenado.

Também, segundo uma consagrada tendência jurisprudencial, a nulidade não é reconhecida quando se tratar de pena aplicada no mínimo legal ou então, diante de um vício de motivação, o tribunal simplesmente reduz a sanção àquele mínimo, sem decretar a invalidade da sentença".

Contudo, o renomado doutrinador, destaca em nota de rodapé:

"Não merece ser compartilhada, portanto, a posição consagrada em alguns julgados do STF em que se anulou tão-somente a parte da sentença em que constando o vício, determinando-se a prolação de nova decisão sobre a aplicação da pena(HC 68.865-9-RJ, DJU 15.05.1992; HC 69.101-3-SP, DJU 29.05.1991, RTJ 140:593)"(destaquei).


9.Das conseqüências processuais do decreto da nulidade parcial da sentença condenatória.

Prolatada a sentença condenatória com a aplicação da sanção penal pelo juiz a quo , posteriormente, submetida à instância superior, através de recurso de apelação, ou pela via do habeas-corpus, e uma vez constatado vício na aplicação da pena, em face da inobservância do método, ou pela ausência de motivação, tem sido decretada a nulidade parcial da sentença pelos tribunais, subsistindo o ato processual até o dispositivo, no que se refere à parte condenatória.

Tanto a ausência de motivação da pena, como a inobservância do método trifásico, caracteriza vício processual, decorrente de error in procedendo, isto é, erro de atividade judicante.

O reconhecimento pelo tribunal ad quem da nulidade da pena aplicada, com subsistência apenas da parte condenatória, enseja a necessidade da complementação da sentença, com a aplicação de (novo/outro) apenamento pelo juiz a quo, após o trânsito em julgado do acórdão, o qual faz coisa julgada do decreto de condenação.

Nessa hipótese, ocorre a substituição da sentença pelo acórdão, em face do efeito substitutivo da apelação, de acordo com o artigo 512 do CPC:

"O julgamento feito pelo tribunal substituirá a sentença ou a decisão recorrida no que tiver sido objeto de recurso".

Segundo lição abalizada de Nélson Nery Júnior [15], de acordo com o artigo 512, do CPC, "a decisão a respeito do mérito do recurso substitui integralmente a decisão recorrida. Assim, somente se poderá cogitar de efeito substitutivo do recurso, quando este for conhecido e julgado pelo mérito, pois do contrário não terá havido pronunciamento da instância recursal sobre o acerto ou desacerto da decisão recorrida."

E segue, "ainda que a decisão recursal negue provimento ao recurso, ou, na linguagem inexata mas corrente, ‘confirme’ a decisão recorrida, existe o efeito substitutivo, de sorte que o que passa a valer e ter eficácia é a decisão substitutiva e não a decisão ‘confirmada".

Portanto, a parte da sentença confirmada deixa de existir no plano jurídico, passando a valer e ter eficácia somente a decisão substitutiva contida no acórdão. Vale dizer, sem a sanção penal, que foi anulada, não opera sobre esta parte da sentença o efeito substitutivo da apelação, posto que sobre a pena o acórdão nada examinou e nada decidiu.

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Em decorrência do retorno dos autos ao juízo de origem, a pena deverá ser aplicada; isto é, nova atividade do juiz será necessária, traduzida em ato processual independente e isolado da sentença original. No entanto, sobre uma pretensão só pode existir uma sentença, que é una e incindível.

Agora, tem-se, no plano concreto, (a) o acórdão contendo a eficácia da decisão condenatória, realizado por um colegiado, e (b) um outro ato processual, posterior, realizado pelo juiz singular, onde foi aplicada uma sanção, sem forma de sentença!, em instância diferente, em nível hierárquico inferior.

Não há suporte jurídico para dar sustentação a tese de que um ato processual praticado pelo juiz a quo possa complementar o ato processual de natureza colegiada, juiz ad quem, em razão da competência e do procedimento.

Outra questão processual que surge é a vedação da prática de atos pelo juiz, após a publicação da sentença (art. 463, do CPC).

Na hipótese do decreto da nulidade parcial da sentença pelo tribunal ad quem, após o trânsito em julgado do acórdão, os autos retornarão ao juiz a quo para a aplicação da pena. No entanto, ao juiz é vedada a prática de novos atos processuais, objetivando modificar a sentença, exceto nas hipóteses do artigo 463, do CPC: embargos de declaração e correção de erro material.

E qual é a natureza do ato processual da fixação da pena, isoladamente, para fins recursais, considerando que não tem forma de sentença definitiva, eis que não é condenatório e nem absolutório (a imputação da pena tem como pressuposto a culpabilidade, enquanto que a condenação exige fato típico e antijurídico)? Ademais, caberia, oportunamente, ação revisional no que tange à aplicação da pena, se o artigo 621 do CPP refere-se á sentença condenatória?

Como visto, ainda que tenha efeitos práticos a conservação da sentença, na parte não viciada, com vistas a evitar a repetição do ato, certo é que há necessidade de os tribunais atentarem para os princípios que revelam o Direito uma Ciência, nas palavras do Ministro Marco Aurélio: [16]

"Evidentemente, não se levou em conta o que preceituado no artigo 59 do Código Penal. O fato atrai para o decreto condenatório a pecha de nulo. Por outro lado, descabe ao Judiciário construir visando a afastar a possibilidade de ter-se como configurada a prescrição. O provimento judicial, conforme enaltecido por uníssona doutrina, revela, em se tratando de uma mesma ação, um grande todo. Impossível é falar-se em condenação sem pena. A lógica conduz, por isso mesmo, à insubsistência da tese de que é possível caminhar-se para a declaração de nulidade parcial. Atente-se para a circunstância de que somente a declaração condenatória recorrível, é fator interruptivo da prescrição. Ora, o acórdão, tal como resultará da concessão parcial deste hábeas, não se mostrará recorrível, porque incompleto, faltando-lhe o que revela materialmente, no campo das conseqüências, a condenação, ou seja, a própria pena que a caracteriza".

Por tais motivos, ressaltando a necessidade de o Supremo Tribunal Federal atentar para os princípios que revelam o Direito como Ciência, concedo a ordem, fulminando o acórdão condenatório proferido, a fim de vir a. .. proferir outro, observando, em tudo, o que se contém em nossa ordem jurídica...".

Sendo, pois, o Direito uma Ciência, que traduz sempre um conjunto de proposições que recebem o qualitativo de "verdadeiras", valendo, ainda, dizer que também poderiam ser "falsas". No entanto, a verdade ou a falsidade de uma proposição se estabelece pela verificação, através da experimentação, ou da observação, esta própria para o Direito. Assim, a ciência do direito se preocupa em determinar o alcance dos juízos de valor jurídicos, razão pela qual é possível assim qualificá-la.

Portanto, ao interpretar a lei dessa ou daquela forma, a ciência jurídica busca determinar o seu alcance, sem contradição, fornecendo ao Juiz um sistema de proposições, que depois de aplicadas tornam previsíveis as suas decisões e, via de conseqüência, reduz a margem de arbitrariedade, proporcionando segurança jurídica, ainda que esta não dependa exclusivamente da previsibilidade das decisões.

Por fim, afigura-se razoável afirmar que a Ciência Jurídica projeta a jurisprudência, a qual, possuindo alto conteúdo pedagógico, não deve subverter o valor contido nas proposições, já observadas cientificamente. Assim, a jurisprudência, antes de procurar mascarar as deficiências do aparelho estatal, deve preservar as proposições científicas.

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Sobre o autor
Mário Helton Jorge

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mestre em Direito (PUC/PR). Professor da Escola de Magistratura do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JORGE, Mário Helton. A nulidade parcial da sentença penal como artifício para a manutenção do decreto condenatório:: "error in judicando". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1178, 22 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8935. Acesso em: 17 abr. 2024.

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