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A moderna hermenêutica constitucional I:

resenhando a "Concretização da Constituição" de Friedrich Muller

23/09/2006 às 00:00
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Resenha crítica sobre o texto "Concretização da Constituição", in: Muller, Friedrich. Methodik, Theorie, Linguistick des Rechts: Neue Aufsatze. Berlim, Duncker & Humblot, 1997, pp. 20-35. Tradução para o português publicada como anexo ao seu "Métodos de Trabalho do Direito Constitucional", 3ª ed., pp. 121-163. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.


            A presente resenha [01] tem como objeto uma versão mais extensa da conferência proferida em 22 de agosto de 1996, por Friedrich Muller – Professor Emérito da Faculdade de Direito de Heidelberg, Alemanha - na abertura do "Congresso Internacional de Direito Constitucional, Tributário e Administrativo" no Centro de Convenções da UFPe, em Recife, e que foi publicada como anexo à tradução para o português da sua obra apresentação dos Métodos de Trabalho do Direito Constitucional [02].

            Consoante assevera o Professor Paulo Bonavides [03], as investigações críticas deste renomado Jurista alemão "abrangem todo o campo filosófico do Direito, mas recaem com mais intensidade no domínio da Metodologia, da Teoria do Direito e da Constituição. Não é Muller um expositor, mas um pensador. Pertence ao quadro dos juristas Alemãs de nosso tempo que intentam fundamentar uma teoria material do Direito, afastando-se assim por inteiro das correntes formalistas, nomeadamente do normativismo kelseniano."

            "Seu método é o concretista. Tem sua base medular ou inspiração maior na tópica, a que ele faz alguns reparos, modificando-a em diversos pontos para poder chegar aos resultados da metodologia proposta." [04]

            Muller, em sua teoria dos métodos de trabalho e concretização da Constituição, desenvolvida ao longo de diversas obras, parte da premissa segundo a qual a normatividade é o resultado do programa normativo somado ao que ele denomina de âmbito (ou domínio) da norma.

            Questiona, o Emérito Professor, a separação clássica entre ser – composto, entre outros elementos, pela realidade, grupos de pessoas, fatos, conjuntos sociais - e dever ser - a norma, prescrição. Isto porque, sustenta que a norma sofre influência, no momento de sua criação, da realidade, ao mesmo tempo em que, após sua edição, exerce também uma influência sobre esta.

            Assim, lecionava que o texto normativo é apenas o início da interpretação e o seu limite final. Contudo, com o passar dos anos seu pensamento mostrou uma nítida evolução, já perceptível neste seu trabalho objeto da presente resenha crítica, no qual o elemento caso concreto ganha evidência, pois que, somente através deste é que a norma se destaca e toma importância. Isto já é o bastante para demonstrar a fragilidade do sentido textual da norma e a necessidade de um progresso na interpretação clássica para um método, dotado de maior rigor cientifico e especial forma, onde o objeto deve ser a concretização da Constituição.

            Neste sentido, em seu "Concretização da Constituição", discorre que, quanto ao texto legal, "nem o "teor literal" nem os termos "reconhecível" e "compreensível" são dados dos quais se poderia partir e com cuja ajuda se poderia traçar um limite. Como "sentido literal possível", o limite esta localizado erroneamente. Nenhum texto de norma ‘enquanto tal’ pode arcar com tamanho ônus de fundamentação, nenhuma semântica da palavra pode fornecer razões suficiente para tal" [05] (grifos do Autor)

            Daí, resta forçoso concluir que, quanto à tese do Autor trazido à baila, "a originalidade de sua contribuição consiste em estruturar a cientificamente a realidade jurídica, com abrangência tanto dos conteúdos da norma, como das propriedades formais do direito, por via de uma interconexidade surpreendente, que leva em conta todos os aspectos relevantes omitidos com a dissociação da forma e da substância." [06]

            É nesta linha que segue o núcleo basilar de sua "Concretização da Constituição".

            Mas, apesar de alguns conceitos e teses terem sido revistos pelo autor, a essência de sua teoria Metodológica Constitucional, de natureza materialista, é mantida.

            De sorte que, nesta obra insiste, ainda, em conceitos como os de âmbito da norma (que é composto pelas diferentes funções concretizadoras da norma, tais quais a instituição da norma, a sociedade, governo, administração pública, jurisprudência e a própria ciência) e programa normativo (obtido pela interpretação integral e racionalmente recapitulável de todos os elementos, primacialmente lingüísticos, da concretização da constitucição), os quais integram, ao lado dos elementos metodológicos strictu sensu – como ele classifica os métodos clássicos de interpretação do memorável mestre Von Savigny -, dogmáticos, de teoria, de técnica e solução e, por fim, de política de direito constitucional, serão responsáveis pela concretização da Constituição.

            A concretização vem para estabelecer uma nova terminologia e método, com o intuito de diferenciá-la e de superar a interpretação, então dita tradicional. Poder-se-ia, destarte, afirmar com segurança que para este doutrinador a concretização da norma, seria o que se poderia denominar de um método "interpretação contemporânea".

            Exprime, neste passo, a idéia de realidade, sendo nítida a sua preocupação central no pressuposto fático contido na norma. Não vislumbra a existência de uma distinção radical entre fato e norma, tão propugnada pelos positivistas. Isto poruqe sustenta que quer fazer crer ao longo de sua belíssima exposição que há um inter-relacionamento entre a norma e a realidade, sendo a recíproca verdadeira. Portanto, estes dois âmbitos formariam um "sistema" indissociável, estando em simbiose.

            Isto se faz necessário uma vez que Muller defende não ser a norma jurídica constitucional um "juízo hipotético" isolável diante de seu âmbito de regulamentação, tão pouco se trata de uma forma colocada com autoridade por cima de uma realidade, mas sim uma inferência classificadora e ordenadora a partir da estrutura material do próprio âmbito social regulamentado.

            Na sua palestra em análise, enaltece e, reiteradamente, destaca a importância da linguagem e dos significados para a compreensão e concretização da Constituição. Explicita que "conhecer o sentido do signo lingüístico "constituição" significa, por conseguinte, saber quais regras vigem para o seu uso e saber como se pode agir com esse signo." Seqüencialmente, ensina-nos que a "a "constituição" não é introduzida como definição nem como significado efetivamente usado (pois nesse caso teríamos mais de dez definições e significados ao mesmo tempo), mas como elemento de trabalho, como mera explicitação". Então conclui: "É esse enfoque indutivo que, entre outros elementos, interliga a Teoria Estruturante do Direito e uma vertente da Lingüística contemporânea, denominada Semântica Prática". [07] (grifos do original)

            Portanto, "ao operar indutivamente e não dedutivamente, a Teoria Estruturante do Direito opta pela teoria da ação. O sujeito da decisão jurídica não é "a lei". "a norma", mas o jurista efetivamente atuante." [08]

            Em outras palavras, diz o multimencionado Professor Alemão, que o trabalho jurídico transcende a compreensão e a interpretação, sendo trabalho com textos nas instituições estatais ou com vistas a elas.

            Neste diapasão, vislumbra-se nitidamente que para esta escola pós-positivista do direito a norma jurídica não está contida no código legal, que contém apenas formas preliminares, os textos da norma, que não se confundem com a norma jurídica. Esta deve ser, nas palavras do autor, "trazida para fora", ou seja, "primeiramente produzida em cada processo individual de decisão jurídica." Desta forma, temos uma atividade eminentemente construtiva com fins de concretização, composto por diversos elementos e fases, sendo "um processo efetivo, temporalmente estendido."

            Cumpre mencionar, ainda, que, por esta razão, fixa na sua teoria Metodológica que trabalho jurídico não há ponto fixo, mas processos. E que os textos das normas não são promulgados para serem compreendidos, mas para serem utilizados, trabalhados pelos juristas. [09]

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            Significa que concretizar é "produzir, diante da provocação pelo caso do conflito social, que exige uma solução jurídica, a norma jurídica defensável para esse caso no quadro de uma Democracia e de um Estado de Direito." [10]

            Insta, destarte, ressaltar que "a estrutura material do Direito não é concebida por Muller unicamente em bases estáticas, mas segundo um modelo dinâmico de concretização."

            Merece também destaque especial no texto, a preocupação e atenção do festejado filósofo e constitucionalista Alemão em demonstrar a aplicabilidade de sua teoria ao nosso país, o que pode ser claramente comprovado pela utilização de exemplos fundamentados nos dispositivos da nossa Carta Magna.

            Neste passo podemos arriscar, da leitura da obra em debate, ao lado de uma análise conjunta dos demais trabalhos deste renomado jurista Alemão, que sua tese não se trata de um abandono ao positivismo em direção ao realismo, como se pode inferir de uma leitura menos atenciosa do texto.

            Em verdade, o que visa o Professor de Heidelberg é organizar o processo de interpretação, o qual é por ele visto como algo complexo, formado por diversos elementos, razão pela qual não há um ponto final, mas sim uma caminhada em que não há uma única ou uma última palavra, auxiliando, destarte, o operador, aquele que trabalha com a constituição, um método seguro, cientifico e rigoroso que permite o alcance do verdadeiro direito, que não se confunde com o texto da norma, o qual em momento nenhum é menosprezado ou abandonado pelo autor.

            Como assinala Bonavides, "a exaustiva perquirição de Muller busca evitar o hiato, a separação, a antinomia das duas Constituições – a formal e a material – bem como aquele conhecido confronto da realidade com a norma jurídica. É nesse dualismo que a metodologia concretista, ao tornar fática a norma, se empenha com mais afinco por evitar." [11]

            Diante de tudo quanto exposto e do dinamismo da leitura, proporcionado pela escrita didática e direta da qual se vale o autor, "Concretização da norma", a despeito de deixar em aberto questões tais quais como deve se dar esta interação entre realidade e norma e o seu efetivo controle e limites, merece, ou melhor, deve ser lido por todos os constitucionalistas e demais operadores do Direito por ser destaque evolução científica que se pode denominar de nova hermenêutica Constitucional, cujo destaque é a sua atenção e estreita ligação aos fatos sociais e à própria sociedade.


Notas

            01

De fundamental importância para a elaboração deste trabalho foram os debates e discussões realizados nas aulas das disciplinas Teoria Geral do Direito e Direito Constitucional II, ministradas neste ano, pelo Professor Dr. André Ramos Tavares, durante o Curso de Mestrado em Direito do Estado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

            02

Muller, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional, 3ª ed.,. Rio de Janeiro: Renovar, 2005

            03

Ob. Cit., apresentação.

            04

Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18ª ed, p. 499. São Paulo: Malheiros, 2006.

            05

Ob. Cit, p. 141.

            06

Ob. Cit. Ainda na apresentação.

            07

Ob. Cit., p. 126.

            08

Idem.

            09

Ob. Cit, pag.145-146.

            10

Ob. Cit., p. 131.

            11

Curso..., p.500.
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Sobre o autor
Georges Louis Hage Humbert

Advogado e professor. Pós-doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em direito do Estado pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de São Paulo. www.humbert.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HUMBERT, Georges Louis Hage. A moderna hermenêutica constitucional I:: resenhando a "Concretização da Constituição" de Friedrich Muller. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1179, 23 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8943. Acesso em: 24 abr. 2024.

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