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O princípio da não-discriminação e sua aplicação às relações de trabalho

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ESTADO DE SAÚDE

            O estado de saúde do trabalhador também pode ser fundamento para práticas discriminatórias pelo empregador. Casos de empregados portadores de patologias ligadas diretamente e indiretamente ao trabalho, como LER e AIDS, são a causa da não contratação ou da rescisão de contratos de trabalho.

            Já na contratação, através de processos de seleção nem sempre muito claros, a discriminação pode ocorrer através da análise da codificação genética do candidato a fim de averiguar se este apresenta propensão ao desenvolvimento de vícios como alcoolismo, uso de drogas e outros problemas de saúde. Da mesma forma, a utilização de exames de sangue pode ter por finalidade a investigação sobre eventuais patologias que possam acometer o trabalhador [33].

            Os casos de trabalhadores demitidos por conta de terem contraído AIDS são emblemáticos. Geralmente, no âmbito judicial, discute-se a ausência de dispositivo legal que garanta estabilidade quando constatada a patologia. Ao que parece, tal diretriz é equivocada, pois, ainda que inexistente a previsão legal de estabilidade ao trabalhador, a despedida discriminatória é vedada pelo ordenamento jurídico pátrio.

            Como visto, quando a Constituição eleva a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho ao status de princípios fundamentais da República Federativa do Brasil (CF, 1°, III); bem como quanto objetiva promover o bem de todos, independentemente de origem, raça, cor, idade e toda e qualquer forma de discriminação (CF, 3°, IV), acaba por tutelar a liberdade e a igualdade entre todos (CF, 5°, caput). Da mesma forma, ao positivar os princípios da igualdade e da não-discriminação, responsabiliza o Poder Público pelo combate de toda e qualquer prática discriminatória, inclusive aquelas ocorridas na relação de trabalho.

            A jurisprudência apresenta entendimento progressista a respeito:

            REINTEGRAÇÃO. EMPREGADOR PORTADOR DO VÍRUS DA AIDS. CARACTERIZAÇÃO DE DESPEDIDA ARBITRÁRIA. Muito embora não haja preceito legal que garanta a estabilidade ao emprego portador da síndrome da imunosuficiência adquirida, ao magistrado incumbe a tarefa de valer-se dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes para solucionar os conflitos ou lides a ele submetidas. A simples e mera alegação que o ordenamento jurídico nacional não assegura ao aidético o direito de permanecer no emprego não é suficiente a amparar uma atitude altamente discriminatória e arbitrária que, sem sobra de dúvida, lesiona de maneira frontal o princípio da isonomia esculpido na Constituição da República Federativa do Brasil. Revista conhecida e provida. (TST – 2ª T – Proc. RR 217791/95.3, julg. Em 10.09.2003, Rel. Juiz conv. André Luís Moraes de Oliveira, in Revista LTr, São Paulo: 67-10/1249).

            Ao mesmo tempo, o aplicador do direito pode-se utilizar, analogicamente, dos dispositivos contidos na Constituição, art. 7°, XXX, e na Lei 9.029/95, cujas hipóteses de discriminação não podem ser consideradas como exaustivas, podendo-se falar em um tipo aberto, ou ainda suscitar lacuna no texto legal capaz de ser suprida através de processo interpretativo [34].


PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA

            A tutela das pessoas portadoras de deficiências, físicas ou mentais é matéria de destaque nas declarações de direito e convenções internacionais. A Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiências, aprovada pela Assembléia Geral das Organizações Unidas, de 1975, prevê o direito da pessoa portadora de deficiência à segurança econômica e social, além de um nível de vida decente. Na mesma linha, a Convenção Internacional para Eliminação de todas as formas de discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, celebrada no âmbito da OEA, ratificada pelo Brasil em 14/09/00 e promulgada pelo Decreto n° 3.956/01 [35].

            Já a Convenção nº. 159 da OIT, de 1985 [36], trata da reabilitação profissional e emprego de portadoras de deficiências, conceituadas como todas as pessoas cujas possibilidades de obter e conservar um emprego adequado, bem como de progredir no mesmo, fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada (art. 1°).

            No âmbito da Constituição de 88, a tutela do trabalhador portador de deficiência se apresenta através do art. 7°, XXXI, que proíbe qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão; e pela reserva de vagas em relação aos cargos públicos (CF, 37, VIII) [37].

            Passível de menção, ainda, a Lei 7.853/89 que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social, estabelecendo normas gerais que assegurem o pleno exercício dos direitos individuais e sociais daquelas, considerados, entre outros valores básicos, o da igualdade de tratamento e oportunidades.

            O art. 93 da Lei 8213/91 determina à empresa com mais de cem empregados o preenchimento de dois a cinco por cento dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, sendo a dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 dias e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, condicionada à contratação de substituto que apresente condição semelhante. Esta reserva de vagas também deve ser observada por empresas de trabalho temporário.

            Quando da aplicação do referido percentual legal resultar número fracionário, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente, além da obrigação de observância do número total de empregados da empresa, não sendo possível, como forma de cálculo, a utilização de critério que exclua, de forma genérica, qualquer função ou atividade. Por certo, determinadas funções não são passíveis de serem executadas por trabalhadores portadores de deficiência. Contudo, por cautela, esta exclusão deve ser procedida em cada caso e de forma fundamentada [38].

            Garantindo a reintegração de trabalhador portador de deficiência, cita-se julgado do TST, tendo atuado como Relator o Ministro Milton de Moura França:

            REINTEGRAÇÃO. DEFICIENTE FÍSICO. ART. 93, § 1°, DA LEI 8.213/91. O art. 93, caput, da Lei n° 8.213/91 estabelece a obrigatoriedade de a empresa preencher um determinado percentual dos seus cargos, conforme o número total de empregados, com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas. O § 1° do mesmo diploma, por sua vez, determina que: A dispensa de trabalhador ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante. O dispositivo não confere, diretamente, garantia de emprego, mas, ao condicionar a dispensa imotivada à contratação de substituto de condição semelhante, resguarda o direito de o empregado permanecer no emprego, até que seja satisfeita essa exigência. O e. Regional consigna que os reclamados não se desincumbiram do ônus de comprovar a admissão de outro empregado em condições semelhantes (deficiente físico), razão pela qual o contrato de trabalho não poderia ter sido rescindido. O direito à reintegração decorre, portanto, do descumprimento, pelo empregador, de condição imposta em lei. Recurso de revista não provido. (Ac. - unânime – TST 4ª T – RR 05287-2001-008-09-00, Rel. Min. Milton de Moura França, julgado em 17/11/04 [39])

            As medidas adotadas em face dos trabalhadores portadores de deficiência (discriminação positiva) respondem a um imperativo de justiça e se inspiram no princípio de igualdade concebido como concretização da idéia de justiça social, utilizando-se dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade [40].


LISTA DISCRIMINATÓRIA

            Prática adotada em diversos municípios do país, deste os menores, localizados no interior dos Estados, até nas grandes metrópoles, a "lista negra", em sua essência, representa a conduta discriminatória de empregadores em face de trabalhadores que ingressaram com reclamações trabalhistas, que apresentam certa restrição de crédito ou que figuram como réu em demais processos de natureza civil e criminal.

            A discriminação e o abuso de direito são evidentes, pois nenhuma dessas informações poderá revelar a qualificação do trabalhador para exercer determinada função. Demonstra-se ofensa aos artigos 3º, IV, 5º, caput, e 7º, XXX, da Constituição Federal, e ao artigo 1º da Lei 9.029/95. Como explica MÁRCIO TULIO VIANA [41]:

            Se a lei dá ao empregador a faculdade de escolher entre João e Pedro, é em atenção ao princípio da propriedade privada, mas também em razão de seu fim social, tantas vezes declarado e tão poucas vezes cumprido. Se o empregador se vale daquela faculdade para dar vazão aos seus preconceitos, está não apenas traindo o destino daquela norma, mas ferindo a literalidade de outra norma, exatamente a que impede, em todos os níveis, a discriminação. Daí a necessidade (ou até, sob certo aspecto, a desnecessidade) do artigo em questão, que surge como uma terceira norma, fazendo uma espécie de silogismo: se todos são iguais perante a lei e se a liberdade de contratação tem o fim de atender às necessidades da empresa, quem escolheu A ou B com propósitos discriminatórios age ilicitamente.

            O trabalho, enquanto elemento essencial à dignidade humana, atua como instrumento de realização dos direitos fundamentais e elemento que caracteriza o Estado Democrático de Direito. Logo, não pode, em nome do poder diretivo ou disciplinar, pretender o empregador ou ex-empregador perseguir seus ex-empregados, obstando-lhes o acesso e permanência em outros empregos. Da mesma forma, é vedada a discriminação contra candidatos a emprego por terem exercido o direito de ação, que é assegurado constitucionalmente (art. 5º, inciso XXXV), bem como a dispensa de trabalhadores pelo exercício deste direito em face de terceiros, ou, ainda, por terem testemunhado em Juízo em favor de ex-colegas de trabalho. Trata-se de prática discriminatória, configurada também como abuso de direito.

            Quanto à solicitação pelo empregador, quando da contratação, ou periodicamente, de certidões negativas de processos cíveis e criminais, bem como de instituições como SERASA, SPC e DETRAN, há o entendimento de que, em certos casos, adotando-se o critério da razoabilidade/proporcionalidade, seria lícita tal verificação. É caso, por exemplo, de empresas de transporte de cargas.

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            Não obstante, salvo a presença de interesse público, tal conduta será discriminatória e atentatória à dignidade do trabalhador, ao passo que não tem relação direta com o desempenho da atividade para que é contratado.


DESPEDIDA DISCRIMINATÓRIA

            A despedida discriminatória pode ser decorrente de parte das hipóteses acima mencionadas, tais como gênero, raça, idade, estado de saúde e outros. O combate a tal prática parte da análise de que o direito potestativo do empregador em rescindir o contrato de trabalho unilateralmente, sem justa causa, não é absoluto, devendo observar o princípio da dignidade humana.

            As rescisões unilaterais fundadas em critérios discriminatórios representam abuso de direito, vedado nos termos do art. 187, do Código Civil. Ao mesmo tempo, como visto, a igualdade e a não-discriminação são princípios tutelados pela Constituição e pela legislação infraconstitucional.

            Na jurisprudência, cita-se acórdão que trata da discriminação praticada sobre o trabalhador em decorrência da participação em movimento grevista, onde se verifica tratamento desigual sem justificação ou critério de razoabilidade, acrescido de abuso de direito por parte do empregador:

            ATO DISCRIMINATÓRIO. EMBARGOS. RECURSO DE REVISTA. JUSTA CAUSA, DISPENSA. PARTICIPAÇÃO EM MOVIMENTO PAREDISTA. RECONHECIMENTO DE JUSTA CAUSA PELA INSTÂNCIA TRABALHISTAS. ATO DISCRIMINATÓRIO. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. Se ficou configurada a justa causa, pelo fato de o Reclamante ter se recusado a retornar ao trabalho, não obstante a decretação da abusividade do movimento paredista, o empregador deveria dispensar todos os empregados que persistiram na greve, já que todos incorreram em causa justa para a resolução do contrato, e não apenas alguns, sob pena de tratamento discriminatório. Se o ato, apesar de pessoal, é único, mas a empresa dispensou apenas alguns, forçoso concluir, na esteira do entendimento do Acórdão do Regional, que a empresa se aproveitou de uma situação de momento, de um deslize praticado por seus empregados, para se desfazer, sem qualquer ônus, daqueles que lhe fossem mais convenientes, por critérios absolutamente desvinculados da justa causa, em ação discriminatória. Incabível, todavia, a reintegração por não haver previsão legal, normativa ou contratual. Se o ato é ilícito, impõe-se a reparação do dano. Embargos conhecidos e providos parcialmente. (Ac. TST SBDI 1 – E-RR 378487/97 – Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula, julgado 08/09/03 [42]).

            A despedida discriminatória, além da devida indenização por danos morais, também pode resultar em reparação nos termos do art. 4º, da Lei 9.029/95, que prevê a readmissão, sem prejuízo dos salários referentes ao período de afastamento, ou, a critério do trabalhador, a condenação em indenização, cujo valor deve corresponder ao dobro da remuneração do período em que o trabalhador ficou afastado.

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Sobre o autor
Alberto Emiliano de Oliveira Neto

Procurador do Trabalho da Procuradoria Regional do Trabalho da 9ª Região. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA NETO, Alberto Emiliano. O princípio da não-discriminação e sua aplicação às relações de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1176, 20 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8950. Acesso em: 19 abr. 2024.

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