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A criminologia crítica e a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no HC nº 81.611-8

19/09/2006 às 00:00
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1.INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa fazer uma breve análise, com auxílio das idéias defendidas pela criminologia crítica contemporânea, da posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do habeas corpus nº 81.611-8, publicado no Diário da Justiça em 13.05.2005.

A Casa, por maioria, entendeu que, embora não esteja a denúncia condicionada à representação da autoridade fiscal, falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da Lei 8.137/90 enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, uma vez que se trata de crime de resultado e que o crédito tributário só existe a partir do lançamento definitivo.


2.O JULGAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO HABEAS CORPUS Nº 81.611-8

– O objeto do habeas corpus

O writ constitucional em comento foi impetrado em favor do empresário Luiz Alberto Chemin, sócio majoritário e gerente da Cohapro Consultoria de Imóveis S/C Ltda. e diretor vice-presidente da Chemin Construtora S.A., com o objetivo de trancar ação penal contra ele movida pelo Ministério Público Federal, cuja denúncia relatava a ocorrência de crime previsto no art. 1º, incisos I e II da Lei 8.137/90 combinados com o art. 71 do Código Penal.

Argumentou o impetrante que a existência do débito tributário estava sendo discutida na esfera administrativa e que o crime constante no art. 1º da Lei 8.137/90 é crime de resultado, motivo pelo qual não haveria justa causa para a ação penal enquanto não houvesse decisão administrativa definitiva determinando se houve de fato redução ou supressão do tributo.

– Os argumentos levantados pelos Ministros do STF

O julgamento teve início com o voto do relator Min. Sepúlveda Pertence que, de início, reconheceu ser o delito tipificado no art. 1º da Lei 8.137/90 crime de resultado. Em razão disso, entendeu ser indispensável para a propositura da ação penal o término do procedimento administrativo fiscal, onde se estaria discutindo a existência, ou não, do débito tributário. Defendeu, ainda, a titularidade do Ministério Público para instaurar a ação penal nos crimes desta natureza, sendo a ação penal pública incondicionada, embora dependa da implementação do que chamou de "condição objetiva de punibilidade", ou seja, a certeza da supressão ou redução do tributo. Por fim, concedeu a ordem para trancar a ação penal. Foi acompanhado pelo Ministro Gilmar Mendes.

A Ministra Ellen Gracie, após pedir vista dos autos para análise, apresentou uma análise crítica do caso em debate. Ressaltou aos colegas que o paciente se valeu de todos os direitos que lhe assegura a legislação, tendo adiado por todas as formas as definições que permitiriam dar andamento à ação penal. Enfim, fez uso de todos os recursos possíveis até chegar à Suprema Corte com o pedido de habeas corpus.

Discordando do voto proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence, a Ministra afirmou não se filiar à corrente que entende ser o delito do art. 1º da Lei 8.137/90 crime de resultado, defendendo a tese de que não há necessidade de se apurar resultado certo ou líquido para que o Ministério Público tenha justa causa para a instauração da ação penal. Asseverou que não seria razoável imaginar que o legislador que ampliou a penalidade para o delito em questão tenha, no mesmo ato, inviabilizado a persecução criminal, condicionando a ação penal ao término do processo administrativo fiscal. Negou a ordem pleiteada pelo impetrante.

Seguindo o entendimento do voto do relator, o Ministro Nelson Jobim ressaltou a existência do direito de defesa constitucional e, de outro lado, a não-dependência do Ministério Público da requisição, da denúncia ou da representação feita pelo Fisco, além da extinção da punibilidade com o pagamento antes do recebimento da denúncia. Defendeu a conciliação na aplicação das três regras, assegurando a prevalência à norma constitucional da ampla defesa. Concedeu a ordem.

O Ministro Joaquim Barbosa, após pedir vista dos autos, teceu alguns comentários acerca dos votos proferidos pelo Min. Sepúlveda Pertence e Min. Ellen Gracie. Afirmou ser do entendimento que o delito imputado ao paciente se trata de crime material, não concordando, no entanto, com o Min. Pertence, quando este atribui ao lançamento definitivo a natureza jurídica de condição objetiva de punibilidade.

Defendeu o argumento de que a decisão da autoridade administrativa acerca da impugnação do contribuinte poderá ter duas naturezas distintas: se indeferir a impugnação e confirmar a existência do débito, constituirá um elemento adicional de comprovação da materialidade do crime; se julgar procedente a impugnação, excluirá a tipicidade. A solução está prevista no art. 93 do CPP, consistindo em questão prejudicial heterogênea. Dessa forma, o Ministério Público poderá oferecer a denúncia e o juiz, diante da questão prejudicial, determinar a suspensão do processo e do prazo prescricional até que se resolva a questão na esfera administrativa. Acrescentou que o pagamento ou a decisão administrativa que nega a existência ou exigibilidade do tributo, a qualquer momento da ação penal, extingue a punibilidade nos crimes tributários, por força do §2º do art. 9º da Lei 10.684/2003, em nada prejudicando o impetrante. Nessa linha de raciocínio, negou a ordem.

O Min. Carlos Ayres Britto, seguindo os votos proferidos pela Min. Ellen Gracie e Joaquim Barbosa, negou a ordem. Todos os demais a concederam, resultando no trancamento da ação penal instaurada pelo Ministério Público Federal. O acórdão restou assim ementado:

"Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo.

1.Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L 8137/90 – que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo do tipo.

2.Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia pra questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal.

3.No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo".


3.A CRIMINOLOGIA CRÍTICA E A POSIÇÃO DO STF NO HC 81.611-8 – DIREITO PENAL DESIGUAL

Embora a matéria tratada seja objeto de muita polêmica – de um lado a doutrina tributarista e os interesses político-econômicos dos "senhores do momento" [01], e de outro os defensores da titularidade exclusiva do Ministério Público para propor a ação penal nos crimes contra a ordem tributária – entendo que a posição tomada pelo Supremo no julgamento do HC 81.611-8, longe de traduzir aspectos jurídico-filosóficos da teoria do direito penal, reforçou a tese defendida pela criminologia crítica de que o sistema punitivo está organizado com o objetivo de defender a classe dominante.

A Suprema Corte conseguiu, adotando "inédita ginástica hermenêutica em prol dos sonegadores e em detrimento da coletividade" [02], criar empecilhos à atuação do Ministério Público em relação aos chamados "crimes do colarinho branco". Condicionou o oferecimento da denúncia ao término do processo administrativo fiscal – ao chamado "lançamento definitivo" – sem definir ao certo se este consiste em condição objetiva de punibilidade ou elemento normativo do tipo.

Embora tenha reconhecido que os crimes previstos na Lei 8.137/90 são de ação penal pública incondicionada (conforme julgamento na ADIn MC 1571), a Corte reconheceu a ausência de justa causa para a ação penal enquanto não tiver sido encerrado o processo administrativo fiscal, vinculando a atuação do Ministério Público, titular da ação penal, à atuação nem sempre eficiente dos Órgãos Fazendários.

Ao frear a atuação do Ministério Público, e ainda que tenha se posicionado pela suspensão do prazo prescricional, a decisão da Corte Suprema concretizou, através do acórdão citado, as idéias defendidas pela criminologia crítica, deixando explícito que o sistema penal não é igual para todos.

Nessa linha, Roberto da Silva Passos [03] sintetizou, com brilhantismo, os princípios norteadores do pensamento da criminologia crítica ao afirmar que:

"A Nova Criminologia parte da idéia de sociedade de classes, entendendo que o sistema punitivo está organizado ideologicamente, ou seja, com o objetivo de proteger os conceitos de interesses que são próprios da classe dominante. (...). O sistema destina-se a conservar a estrutura vertical de dominação e poder, que existe na sociedade, a um tempo desigual e provocadora de desigualdade. Isso se demonstra pelo caráter fragmentário do Direito Penal, que pune intensamente condutas que são típicas dos grupos marginalizados e deixa livre de pena comportamentos gravíssimos e socialmente onerosos, como, por exemplo, a criminalidade econômica, só porque seus autores pertencem a classe hegemônica e por isso devem ficar imunes ao processo de criminalização.", grifei.

Alessandro Baratta, um dos mais brilhantes criminólogos da atualidade, nos traz os fatores que explicam a escassa medida em que a criminalidade do colarinho branco é perseguida [04]:

"Trata-se, como se sabe, de fatores que são ou de natureza social (o prestígio dos autores das infrações, o escasso efeito estigmatizante das sanções aplicadas, a ausência de um estereótipo que oriente as agências oficiais na perseguição das infrações, como existe, ao contrário, para as infrações típicas dos extratos mais desfavorecidos), ou de natureza jurídico-formal (a competência de comissões especiais, ao lado da competência de órgãos ordinários, para certas formas de infrações, em certas sociedades), ou, ainda, de natureza econômica (a possibilidade de recorrer a advogados de renomado prestígio, ou de exercer pressões sobre os denunciantes, etc.)."

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O autor apresenta algumas proposições, ao fazer uma crítica ao direito penal, que constituem a negação radical do mito do direito penal como direito igual, concluindo que [05]:

"a) o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;

"b) a lei penal não é igual para todos, o ´status´ de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos;

"c) o grau efetivo de tutela e a distribuição do ´status´ de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade.

"A crítica se dirige, portanto, ao mito do direito penal como o direito igual por excelência. Ela mostra que o direito penal não é menos desigual do que os outros ramos do direito burguês, e que, contrariamente a toda aparência, é o direito desigual por excelência."

Tem razão o autor quando afirma que o status de criminoso independe da proporção do dano causado e da gravidade das infrações. Infelizmente, a sociedade se sensibiliza muito mais diante de um caso de assassinato, e cultiva um ódio muito maior pela Susane von Richthofen, do que por uma notícia de crime de sonegação fiscal, onde um empresário deixa de recolher, de forma fraudulenta, milhões de reais, o que, por via transversa, acaba matando milhares de pessoas através da falta de assistência social não prestada pelo Estado em razão da baixa arrecadação.

A decisão da Corte Suprema no HC 81.611-8, ao postergar a ação do Ministério Público para momento muito posterior à ocorrência do crime, deixou evidente que a norma penal não mais se presta como meio de prevenção geral e especial. Um lapso temporal, que pode chegar a mais de dez anos entre a conduta do agente e a denúncia, torna a reprimenda inútil, retirando o caráter também punitivo da pena.

O entendimento dos Ministros, salvo algumas lúcidas cabeças, demonstra que a Corte Suprema, apesar de, estruturalmente, fazer parte do Poder Judiciário, está se afastando das teorias do direito, utilizando-se, nas suas decisões, de critérios político-econômicos, que acabam por contribuir, cada vez mais, com a impunidade que assola o país.


4.CONCLUSÃO

A partir desta brevíssima análise crítica da posição do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 81.611-8, a conclusão a que se chega é de que o país está sendo dominado por uma parcela ínfima da população que detém o poder econômico e, por isso, não "pode" ser tachada de criminosa. A simples existência do texto da Lei nº 8.137/90 não é suficiente para deter os sonegadores se a operacionalização da norma encontra entraves na própria jurisprudência do Supremo.

O Ministério Público, titular da ação penal, vem demonstrando ser um órgão extremamente comprometido com a busca da verdade real e muito eficiente nas investigações que lhe competem. Tolher o exercício da ação penal, condicionando o mesmo à boa vontade da Administração Pública, com todo o interesse político que a permeia, é inviabilizar a aplicação da lei penal àqueles que cometem os crimes de maior gravidade no país.


5. BIBLIOGRAFIA

AREND, Márcia Aguiar; LONGO, Analú Librelato. O Supremo Tribunal Federal e os Novos Cenários de Mitigação do Poder Jurisdicional no Brasil: o Direito Penal Tributário Aplicado pela Administração Tributária. Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, n. 5, jan/abr. 2005, p. 63.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2ª ed., Freitas Bastos, 1999, p. 102.

PASSOS, Roberto da Silva. Elementos de Criminologia e Política Criminal. São Paulo, Edipro, 1994.

PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade. São Paulo, RT, 1983, p. 41.


NOTAS

01 PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade. São Paulo, RT, 1983, p. 41.

02 AREND, Márcia Aguiar; LONGO, Analú Librelato. O Supremo Tribunal Federal e os Novos Cenários de Mitigação do Poder Jurisdicional no Brasil: o Direito Penal Tributário Aplicado pela Administração Tributária. Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, n. 5, jan/abr. 2005, p. 63.

03In Elementos de Criminologia e Política Criminal. São Paulo, Edipro, 1994.

04In Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2ª ed., Freitas Bastos, 1999, p. 102.

05 Ob. Cit., p. 162.

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Sobre a autora
Manuella Mazzocco

advogada em Concórdia (SC), pós-graduanda em Direito Tributário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAZZOCCO, Manuella. A criminologia crítica e a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no HC nº 81.611-8. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1175, 19 set. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8952. Acesso em: 23 nov. 2024.

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