4. COLABORAÇÃO PREMIADA: CONFLITO ENTRE ÉTICA VERSUS JUSTIÇA NA BUSCA DA VERDADE REAL
No âmbito do processo penal, estão em discussão a liberdade de locomoção do acusado, direito indisponível, o magistrado seria dotado de amplos poderes instrutórios, podendo determinar a produção de provas ex offício, sempre na busca da verdade material. Dizia-se então que, no processo penal vigorava o princípio da verdade material, também conhecido como princípio da verdade substancial ou real. 42
A descoberta da verdade, obtida a qualquer preço, era a premissa indispensável para a realização da pretensão punitiva do Estado. Essa busca da verdade material era, assim, utilizada como justificativa para a prática de arbitrariedades e violações de direitos, transformando-se, assim, num valor mais precioso do que a própria proteção da liberdade individual.43
Ainda segundo Lima, “a crença de que a verdade podia ser alcançada pelo Estado tornou a perseguição o fim precípuo do processo criminal”. Diante disso, em nome da verdade, tudo era válido, restando justificados abusos e arbitrariedades por parte das autoridades responsáveis pela persecução penal, bem como a ampla iniciativa probatória concedida ao juiz, o que acabava por comprometer a sua imparcialidade.44
Atualmente, essa dicotomia entre a verdade formal e material deixou de existir. Já não há mais espaço para a dicotomia entre verdade formal, típica do processo civil, e verdade material, própria do processo penal.45
Nesse diapasão, no processo penal, hodiernamente, admite-se que é impossível que se atinja a verdade absoluta. O que vai haver a é uma aproximação, maior ou menor, da certeza dos fatos. Enfim, a verdade absoluta, coincidente com os fatos ocorridos, é um ideal, inatingível.46 Como bem coloca Cândido Rangel Dinamarco
A verdade e a certeza são dois conceitos absolutos, e, por isto, jamais se tema segurança de atingir a primeira e jamais se consegue a segunda, em qualquer processo (a segurança jurídica, como resultado do processo, não se confunde com a suposta certeza, ou segurança, com base na qual o juiz proferiria os seus julgamentos). O máximo que se pode obter é um grau muito elevado de probabilidade, seja quanto ao conteúdo das normas, seja quanto aos fatos, seja quanto á subsunção desses nas categorias adequadas.47
O princípio da verdade real, no sistema acusatório, foi substituído por o princípio da busca da verdade real, devendo a prova ser produzida em fiel observância ao contraditório e à ampla defesa.
Nesse contexto, a colaboração premiada constitui, hoje, um instituto processual importante para a apuração da busca verdade real quanto a crença geral da total ineficiência da jurisdição penal para o enfrentamento da criminalidade organizada (certeza da impunidade) começa a ser arranhada com a coordenação das instituições de repressão e o consequente aumento de prisões, investigações e condenações. Letícia Gimenez revela que
Enquanto a legislação brasileira ainda engatinha no uso da delação premiada, países como Itália e Espanha usam a ferramenta jurídica com instrumento na investigação de crimes relacionados ao terrorismo, tráfico de drogas e também para desvendar organizações mafiosas. Juristas da Espanha, Itália e Portugal explicam que o depoimento de arrependidos é usado como forma de se iniciar uma investigação, mas nunca como prova para um julgamento. 48
Nesse contexto, o instituto da colaboração premiada tem gerado reiteradas discussões, em decorrência de seu frequente uso e das consequências que tem gerado na política e na economia do país, engendrando diversos posicionamentos contrários e favoráveis. Questiona-se acerca de sua eficiência e o reflexo que o instituto tem proporcionado na credibilidade da justiça brasileira, suscitando questionamentos antes somente doutrinários.
Entretanto, para um melhor entendimento sobre este conflito veremos abaixo as distinções e principais observações sobre ética e Justiça.
4.1 Ética e justiça no direito brasileiro
Para que possamos adentrar aos embates suscitados quanto à eficiência da colaboração premiada contra ao crime organizado, precisamos inicialmente especificar os conceitos de Direito, Moral, Ética e Justiça, como veremos.
a) Direito e Moral
Existe a pretensão de se sustentar uma certa simbiose entre o Direito e a Moral, de modo que há um anseio comum para que aquele (o Direito) seja conforme a moral e que, por conseguinte, a moral esteja estampada nas regras jurídicas. Não obstante, não é demais anotar que é possível vislumbrarmos um Direito que não seja moral, assim como é possível pensarmos em um sistema jurídico que não seja Justo.49
Convém ressaltar, portanto, que o Direito e a Moral, embora possam até ter elementos comuns, não se confundem, visto que embora ambos estejam relacionados com a conduta humana, é possível um subsistir sem o outro. 50
Por outro lado, Mário Sérgio Cortella, aduz, em ensaio sobre ética conveniente, que o relativismo ético é muito perigoso.
[...] a conveniência é aquilo que eu faço que é bom para mim. A ética, quando é marcada pela conveniência, entram num terreno extremamente perigoso, que o relativismo ético. Em outras palavras, tudo vale em relação àquilo que eu estou desejando, àquilo que estou precisando, àquilo que é o meu interesse imediato. Uma ética da conveniência é aquela do ‘eu faço porque este é o único meio de eu fazer. O que eu posso fazer?’ E não necessariamente é assim.51
Segundo o autor mencionado, “essa ética da conveniência nos induz a um pensamento negativo, que é a ausência de princípios éticos sólidos, que não sejam voláteis, que não sejam volúveis, que não desapareçam ao primeiro movimento fora daquilo que deveria ser feito da maneira correta”.52
b) Ética e Moral
Primeiramente, cabe ressalvar que existem diversas compreensões entre a moral e a ética. Segundo Ivan de Oliveira Silva,
Firme-se, pois, que a moral é a regulação dos valores/comportamentos agregados em um contexto próprio e entendidos como adequados a um determinado seguimento social. Dessa forma, podemos falar que há “morais” aceitáveis em um grupo, sendo certo que para outros, o mesmo comportamento poderá ser considerado imoral e, por conseguinte inaceitável.53
Por outro lado, Ivan de Oliveira Silva ensina que “Ética é uma ciência,54 com princípios próprios, que tem por objeto o estudo da moral. Vale dizer, a ética como um ramo do saber científico humano, se ocupa com o estudo sistematizado da moral e os seus diversos desdobramentos.”55
Sobre esse tema, André Marcelo M. Soares, com respaldo em G. E. Moore, preleciona que:
A ética é um conhecimento racional que, a partir da análise de comportamentos concretos, se caracteriza pela preocupação em definir o bem, enquanto a moral preocupa-se com a escolha da ação que, em determinada situação, deve ser empreendida. Às duas não se excluem e não estão separadas, embora os problemas teóricos e práticos se diferenciem. Assim, podemos dizer que decidir e agir concretamente é um problema prático e, portanto, moral. Investigar essa decisão e essa ação, a responsabilidade que a elas subjaz, e o grau de liberdade e de determinismo ai envolvidos é um problema teórico e, portanto, ético.56
No mesmo sentido, ainda quanto a relação da ética com a moral, cabe considerar que “entre a moral e a ética há uma tensão permanente: a ação moral busca uma compreensão e uma justificação crítica universal, e a ética, por sua vez, exerce uma permanente vigilância crítica sobre a moral, para reforça-la ou transformá-la.”57
Segundo Adolfo Sánchez Vázquez, “Ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade.58 É uma ciência, pois tem objeto próprio, leis próprias e método próprio. O objeto da Ética é a moral. A moral é um dos aspectos do comportamento humano. A expressão deriva da palavra romana mores, com o sentido de costumes, conjunto de normas adquiridas pelo hábito reiterado de sua prática.59
Em suma, a moral é tida como o objeto de estudo e reflexão da ética. Portanto, ética e moral não se confundem.
Nalini ressalta que, na modernidade, especial importância assume a distinção entre direito e moral. “Todo Estado autoritário tende a afirmar-se como Estado ético e a fundar sobre a necessidade de uma direção e de um controle das consciências o seu ilimitado direito a invadir as esferas privadas. Diante dessa tendência, cumpre ao jurista precisar a distinção entre o elemento jurídico e o elemento ético, de forma a reduzir a autoridade estatal a formas jurídicas e objetivamente disponíveis. Essa tarefa poderá contribuir para a nitidez da linha de limites posta ao exercício da autoridade e representará fundamental garantia da autonomia individual.60
c) Ética e Direito
Entende-se por ética o comportamento inerente e pessoal, baseado em costumes. Neste sentido, BITTAR, Eduardo C. B61 complementa que a ética corresponde ao exercício social de reciprocidade, respeito e responsabilidade. Para que se reste caracterizado o comportamento ético é necessário que haja uma ação livre e independente do agente; que esta ação seja motivada por sua própria consciência; e que este ato não seja punível, sendo baseado somente em valores e costumes de uma sociedade.
Ao analisar a Ética conjuntamente com o Direito, pode-se dizer que “dentre todas as formas de comportamento humano, a jurídica é a que guarda maior intimidade com a moral. É com base na profunda vinculação moral/direito que se pode estabelecer o relacionamento ética/direito. Pois ética não é senão a ciência do comportamento moral do homem na sociedade.”62
Igino Petrone assinala as diferenças entre Direito e Moral a partir da constatação de que, no fundo, a lei moral significa: quem quer conseguir o bem, deve agir desse modo. A justiça é uma lei ética.63
Mas há três diferenças entre moralidade e justiça. A primeira dela é que a Justiça não só impõe deveres, como estabelece um direito respectivo:
A justiça não só impõe deveres, mas estabelece um direito correspectivo. A obrigação de um é correlata à faculdade do outro. Na verdade não são dois termos, mas dois aspectos, analíticos da mesma coisa: aspectos que se reciprocam. A lei moral, em vez, não se comporta bilateralmente e correlativamente, mas é um processo unilateral. “Prescreve a alguém um dado dever diante de outrem, mas este dever não tem por termo correspectivo o direito ou a pretensão ativa do outro. O imperativo – ama a teu próximo com a ti mesmo – se dirige unilateralmente a mim e me intima um dever que, adimplido, deriva em vantagem para meu próximo; mas não é dado ao meu próximo pretender de mim este amor no sentido de que tal expectativa tenha ingressado em seu patrimônio e se traduza em direito seu”. [64
A segunda diferença é a de que o direito, como norma de pacífica cooperação externa, não entra em função senão depois que a atividade cooperante seja exteriorizada, ou depois que as volições se traduzam objetivadas em ações.
A lei moral, inversamente, governa também as determinações interiores. O assunto máximo da moral se consuma entre o domínio interno da vontade humana e a lei. Basta um desejo meu, em direção a algo que não é bom, para que eu viole a lei moral. “A função e o valor da moralidade está na intencionalidade do agente, antes de estar no efeito ou no resultado útil da ação moral”. A moral pretende que se respeite a lei e que ainda se respeite por amor à lei mesma, não por qualquer outro motivo.65
Por fim, como terceira e última diferença, os preceitos morais não podem ser coercitivos, ou seja, não se pode pretender seu adimplemento por via de coação judicial. Já os preceitos jurídicos são coercíveis, munidos de coação. Atual juridicamente é exigível, enquanto atuar moralmente reside na espontaneidade.66
d) Ética e Direito Processual
Segundo Nalini, “a opção por desistir de realizar justiça de mão própria e entregar ao Estado a missão de compor a lide já é uma alternativa ética.”67 A postura ética é pressuposta a todos os protagonistas da cena judiciária: partes, operadores jurídicos e representante do Estado-Juiz. Na verdade, é difícil reclamar-se comportamento tal a alguém chamado a juízo exatamente por haver falhado no cumprimento dos seus deveres. Mas, no momento em que a controvérsia é entregue à apreciação do Judiciário, conduzir-se eticamente é norma cogente, que pode acarretar sanções de várias ordens ao seu infrator.68
e) Ética e Justiça
A ética em Aristóteles é voltada para a razão prático-teleológica, no sentido da busca de todas as coisas por um bem, e sendo esta, a busca das ações humanas, este deve ser o melhor dos bens, cuja finalidade encontra-se em si mesmo. Este bem para o ser humano é a felicidade, que é atingida por meio da prática reiterada de virtudes. A justiça nesse contexto é considerada como virtude, porém, a virtude por excelência, visto que se manifesta diante do outro.
Aristóteles trata da dikayosyne (justiça) e da aidikía (injustiça), dizendo que nas pessoas, a primeira é a “disposição da alma que graças à qual elas dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idêntica, diz-se que a injustiça é a disposição da alma de graças à qual elas agem injustamente e desejam o que é injusto”.69
A justiça, conforme dito alhures, é considerada como a maior das virtudes, pois esta visa o “bem do outro”, relacionando-se com o próximo. Aristóteles, citando as Elegias de Têognis, diz que “nem a estrela vespertina nem a matutina é tão maravilhosa (...); na justiça se resume toda excelência”70
E continua, patrocinando que “a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente a sim mesmas como também em relação ao próximo.”71
A ação justa se é reconhecida pelo seu contrário, ou seja, pela ação injusta, pois, “muita das vezes se reconhece uma disposição da alma graças a outra contrária, e muitas vezes as disposições são idênticas por via das pessoas nas quais elas se manifestam”72
Nesse sentido, pode-se asseverar que justiça é a qualidade de uma ação humana com relação ao outro, quando há um conflito entre o fato e a norma, gerando uma obrigação. Ou seja, a justiça é a apreciação da conduta social do ser humano quando correspondente a uma norma estabelecida. Esclarece melhor sobre o assunto Dimitri Dimoulis73, quando define justiça como a determinação dos direitos e deveres que devem reger as relações entre os membros de uma comunidade, gerando a presunção do que é justo.
Diante disto, ao discernir a questão de ética e justiça, estudaremos o porquê deste conflito e as divergências positivas e negativas do uso do instituto na lei nº 12.850/2013.
4.2 Discussão sobre o aspecto (anti)ético da colaboração premiada
Parte considerável da doutrina se mostra contrária à concessão de prêmios ao colaborador processual penal. Enxergam nessa circunstância uma indevida e ilegítima intromissão de instrumentos oriundos de uma legislação de emergência no ordenamento jurídico que rege à vida em sociedade dentro de um Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto, trataremos a seguir, dos argumentos contrários e favoráveis.
4.3 Argumentos desfavoráveis ao uso do instituto da colaboração premiada
Parte considerável da doutrina se mostra contrária à concessão de prêmios ao réu colaborador processual, “enxergando nessa circunstância uma indevida e ilegítima intromissão de instrumentos oriundos de uma legislação de emergência no sistema normativo que rege a vida em sociedade nos coevos do Estado Democrático de Direito.”74
Com essa visão desfavorável coloca-se o jurista italiano Luigi Ferrajoli.
[...] a prática da negociação e do escambo entre confissão e delação de um lado e impunidade ou redução de pena de outro sempre foi uma tentação recorrente na história do direito penal, seja na legislação e mais ainda na jurisdição, pela tendência dos juízes, sobretudo dos inquisidores, de fazer uso de algum modo de seu poder de disposição para obter a colaboração dos imputados contra eles mesmos. A única maneira de erradica-la seria a absoluta vedação legal [...]. O legislador italiano, sugestionado pelos aspectos decadentes da experiência americana seguiu, ao invés, a estrada oposta, legitimando a transação primeiro com as leis de emergência sobre os “arrependidos” e depois, de maneira ainda mais extensa, com a recente reforma do Código de Processo Penal. O resultado [...] é inevitavelmente a corrupção da jurisdição, a contaminação policialesca dos procedimentos e dos estilos de investigação e de juízo, e a consequente perda de legitimação política ou externa do Poder Judiciário.75
Na mesma trilha, o argentino Eugênio Raúl Zaffaroni invoca a imoralidade e a antieticidade da medida.
A impunidade de agentes encobertos e dos chamados “arrependidos” constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do Estado de Direito: [...] o Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço de uma impunidade para “fazer justiça”, o que o Direito Penal Liberal repugna desde os tempos de Beccaria.76
Já Winfried Hassemer teme que o acordo de colaboração premiada arruíne o processo penal:
A longo prazo, deve-se temer que o acordo arruíne o processo e com isso também aqueles princípios e regras que garantem a proteção dos participantes: a publicidade da audiência principal, quando após a audiência de acordo (vergleischsverhandlungen) bem-sucedida simula-se o desfecho do processo iniciado. A presunção de inocência é convertida em uma defraudação da culpabilidade [...]. O princípio “na dúvida do réu” torna-se sem sentido, porque não se trata da formação da convicção do juiz, mas da concessão mútua. É preciso se preocupar como o tratamento igualitário, em todo caso com vista àquele acusado que não está disposto a uma cooperação ou não é capaz. O princípio da legalidade é colado junto à matéria porque não se trata mais do esclarecimento de uma suspeita punível, mas de uma concessão mútua [...]. O futuro do acordo no processo penal está aberto. Deve-se esperar que os tradicionais princípios do Direito Processual Penal possam fazer valer novamente de modo vigoroso na práxis o seu poder de convicção em face dos interesses na economia e eficiência.77
Muitos outros doutrinadores mantêm posicionamentos desfavoráveis à aplicação do instituto da colaboração premiada, apesar de a sua legitima aplicabilidade em nosso ordenamento, atribuindo-lhe efeitos negativos e alegando sua ineficácia.
Nucci, em boa síntese, traz os argumentos contrários à colaboração premiada in verbis:
Oficializa-se, por lei, a traição, forma antiética de comportamento social;
Pode ferir a proporcionalidade na aplicação da pena, pois o delator recebe pena menor que os delatados, autores de condutas tão graves quanto a dele – ou até mais brandas;
A traição, como regra, serve para agravar ou qualificar a prática de crimes, motivo pelo qual não deveria ser útil para reduzir a pena;
Não se pode trabalhar com a ideia de que os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos;
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A existente delação premiada não serviu até o momento para incentivar a criminalidade organizada a quebrar a lei do silêncio, regra a falar mais alto no universo do delito;
O Estado não pode aquiescer em barganhar com a criminalidade;
Há um estímulo a delações falsas e um incremento a vinganças pessoais. 78
Assim, ao analisarmos estes questionamentos vemos alguns pontos relevantes que geram estas hesitações, ocasionando para alguns na desaprovação do uso da colaboração premiada nas nossas disposições legais, por ser antiética desproporcional e produzir de certa forma a impressão de impunidade. Conquanto, apesar destes aspectos negativos, o instituto também possui aspectos positivos, conforme discorreremos à frente.
4.4 Argumentos favoráveis ao uso do instituto da colaboração premiada
Apesar de parte considerável da doutrina se mostrar contrária ao uso do instituto da colaboração premiada, temos diversos doutrinadores que defendem o seu uso, como João Paulo Baltazar Júnior, Rogério Sanches Cunha & Ronaldo Batista Pinto,79 Renato Brasileiro, Márcio Barra Lima,80 Pierpaolo Cruz Bottini e Luciano Feldens, entre tantos outros.81
Rudolf Von Ihering anotava que:
Um dia, os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitando-o com regras precisas, nem tanto no interesse aspirante do prêmio, mas, sobretudo, no interesse superior da coletividade.82
João Paulo Baltazar Júnior argumenta, em embargo, que os ganhos que podem advir da colaboração premiada superam largamente os inconvenientes apontados pela doutrina.
[...] a colaboração premiada é indispensável no âmbito da criminalidade organizada, e os ganhos que podem daí advir superam largamente, os inconvenientes apontados pela doutrina. O instituto vem, em verdade, na mesma linha da confissão, do arrependimento eficaz e da reparação do dano, nada havendo aí de imoral [...], residindo a sua racionalidade no fato de que o agente deixa de cometer crimes e passa a colaborar com o Estado para minorar seus efeitos, evitar sua perpetuação e facilitar a persecução.83
Luciano Feldens, assevera que é
Evidente que a delação premiada – por si – não é suficiente para uma acusação formal contra alguém, e que sua instituição, não transforma as autoridades policiais em meros expectadores de denúncias alheias. Trazidas as informações, por meio de pessoa identificada, o Estado tem o dever de averiguar sua credibilidade, seus fundamentos, para evitar que rixas e inimizades pessoais ou comerciais se transformem em persecuções sem fundamento, como danos irreparáveis à imagem dos envolvidos. Mas, isso não desmerece o instituto, cujo êxito é percebido a cada crime desbaratado pelo arrependimento – real ou estratégico – de um dos integrantes da empreitada criminosa.84
Diversos doutrinadores deslumbram os aspectos benéficos desse instituto para o aperfeiçoamento do nosso ordenamento jurídico, alegando sua utilidade e eficiência para o auxílio no combate ao crime organizado.
Nucci traz como argumentos favoráveis ao uso da colaboração premiada:
No universo criminoso, não se pode falar em ética ou em valores moralmente elevados, dada a própria natureza da prática de condutas que rompem as normas vigentes, ferindo bens jurídicos protegidos pelo Estado;
Não há lesão à proporcionalidade na aplicação da pena, pois está é regida basicamente, pela culpabilidade (juízo de reprovação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem receber penas mais severas. O delator, ao colaborar com o Estado, demonstra menor culpabilidade, portanto, pode receber sanção menos grave;
O crime praticado por traição é grave, justamente porque o objetivo almejado é a lesão a um bem jurídico protegido; a delação seria a traição com bons propósitos, agindo contra o delito e em favor do Estado Democrático de Direito;
Os fins podem ser justificados pelos meios, quando estes foram legalizados e inseridos, portando, no universo jurídico;
A ineficiência atual da delação premiada condiz com o elevado índice de impunidade reinante no mundo do crime, bem com ocorre em face da falta de agilidade do Estado em dar efetiva proteção ao réu colaborador;
O Estado está barganhando como autor de infração penal, como se pode constatar pela transação, prevista na Lei nº 9.099/95. A delação premiada é, apenas, outro nível de transação;
O benefício instituído por lei para que um criminoso delete o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração interior, um dos fundamentos da própria aplicação da pena;
A falsa delação, embora possa existir, deve ser severamente punida;
A ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser empecilho para a delação premiada, cujo fim é combater, em primeiro plano, a criminalidade organizada.85
Com o advento da Lei nº 12.850/13, o legislador derivado modificou a nomenclatura do instituto – que sempre foi chamado de “delação premiada” –, muitas vezes sendo citado de forma pejorativa para reforçar o caráter de traição e deslealdade, para retomá-lo de colaboração premiada.
Essa mudança de nomenclatura teve como escopo ressaltar o fato positivo de que o réu, neste caso, se arrependeu e decidiu ajudar as autoridades, não importando que motivos o levaram a tanto, se reaproximando, assim, do Estado e da sociedade, com ela colaborando para a preservação da lei.86
Para Walter Nunes da Silva Júnior:
Ao preferir a expressão colaboração, o legislador expressa preocupação ética, pois dá destaque aos benefícios que o agente traz para a sociedade com a sua ajuda na persecução criminal, não à traição aos companheiros da empresa ilícita. Em outras palavras, incentiva, por meio da premiação, a consciência da pessoa quanto a sua responsabilidade pela preservação da segurança pública, nos termos do art. 144, caput, da Constituição.87
O novo nomen iuris, portanto, consiste na resposta do legislador à parcela da doutrina que critica a colaboração premiada do ponto de vista ético.
O prêmio a colaboração é assunto de ordem ética que enseja contundente divergência entre os colaboradores. [...] Note-se que a palavra delação, no seu sentido técnico, refere-se às afirmações feitas por um dos envolvidos no crime, com a propriedade de identificar a participação de outras pessoas, fornecendo detalhes sobre o ilícito, de modo que, na arena das relações pessoais, a delação pode ser vista como uma traição, o que, em rigor, seria reprovável, mesmo quando a companheiros da empresa criminosa.88
Essa discussão já bem antiga. Desde o século XVIII, Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, em sua obra Dos delitos e das Penas, já discutia o aspecto ético da colaboração premiada, conforme se verifica abaixo:
Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de grave delito que delatasse companheiros. Tal expediente tem inconvenientes e vantagens. Os inconvenientes são que a nação estaria autorizado a delação, detestável mesmo entre criminosos, porque são menos fatais a uma nação os delitos de coragem que os de vilania: porque o primeiro não é frequente, já que só espera uma força benéfica e motriz que o faça conspirar contra o bem público, enquanto que a segunda é mais comum e contagiosa, e sempre se concentra mais em si mesma. Além disso, o tribunal mostra a própria incerteza, a fraqueza da lei, que implora ajuda a quem a infringe.89
Com acertadamente afirmou Sérgio Fernando Moro, sobre a colaboração premiada:
Não se está traindo a pátria ou alguma espécie de resistência francesa. Um criminoso que confessa um crime e revela a participação de outros, embora movido por interesses próprios, colabora com a Justiça e com a aplicação das leis de um país. Se as leis forem justas e democráticas, não há como condenar moralmente a delação; é condenado nesse caso o silêncio.90
De tudo exposto, nos filiamos aos argumentos daqueles que entendem ser a colaboração premiada um meio especial de obtenção de prova do qual o Estado não pode abrir mão, especialmente quando enfrenta a criminalidade organizada, que é regida por outros valores.
Em princípio, levando em consideração que os crimes praticados por organizações criminosas afetam frontalmente bens jurídicos dos mais importantes tutelados pelo Estado, desestabilizando toda a sociedade, não há o que se falar em ética no mundo do crime. Por outro lado, a delação, mesmo sendo uma traição, possui uma boa finalidade, pois atua na repressão contra o crime e a favor do Estado. De outro modo, este instituto é fundamentado pela culpa do agente. Assim, o ato do réu colaborador alegaria um menor grau de culpabilidade com relação àqueles que não se manifestaram, cabendo a estes, uma pena mais severa. No entanto, a concessão dos benefícios ao delator não fere o princípio da proporcionalidade da pena, sendo a colaboração premiada somente outra espécie de transação penal.
Guilherme de Souza Nucci91·agrega a esses argumentos aduzindo que a delação seria a traição dos bons propósitos, pois age contra o delito e a favor do Estado; e demonstra que os fins podem justificar os meios quando estes forem legais e inseridos no universo jurídico. O autor também retrata a ineficácia do Estado e a impunidade crescente no mundo do crime, o que pode ser amenizado por meio da delação premiada. Outro ponto importante, é que o benefício assegurado ao delator, caso cumpra os requisitos necessários, poderá servir como incentivo ao arrependimento sincero com forte tendência a regeneração interior, o que fundamentaria a aplicação da pena; e finalmente que a questão ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser considerado como um empecilho, cujo principal objetivo é combate à criminalidade organizada.
Desta forma, passamos a ter uma visão mais ampla deste instrumento, e vislumbramos melhor o porquê de tantos questionamentos, bem como de sua imediata efetividade no mundo jurídico atual. Verificando sua credibilidade e utilidade nos meios investigatórios em busca do aprimoramento da verdade real, um dos princípios basilares do processo penal brasileiro.