A atividade investigativa criminal no Brasil, regulamentada pelo código de processo penal e outras leis esparsas, é exercida, conforme a Constituição Federal (Brasil, 1988), principalmente pelas polícias judiciárias, sendo estas a polícia federal (nos crimes que violem interesses, bens e serviços da união, bem como crimes de natureza internacional e interestadual) e das polícias civis (que exercem atribuições residuais, ou seja, toda aquela que não seria de competência da polícia federal ou dos crimes de natureza militar).
O exercício da atividade investigativa visa à colheita de elementos de informação para que o órgão acusador, o Ministério Público, tenha um lastro probatório mínimo para o inicio da ação penal, garantindo uma das condições da ação penal, que seria a justa causa para a instauração de um processo de natureza penal.
É assim que o artigo 6º do Código de Processo Penal prevê uma serie de condutas que devem ser tomadas pela Autoridade Policial no momento em que a mesma toma conhecimento da prática de um delito, tendo a autoridade a liberdade de conduzir a investigação da maneira que esta acredite seja a mais eficiente para a coleta de elementos de informação para cada delito que esta vise apurar.
Dessa forma, ao tomar conhecimento da prática delitiva, a autoridade deve se dirigir até o local do crime, garantindo a preservação do local para a realização da perícia criminal; apreender bens que tenham ligação com o delito e possam ser importantes para a elucidação do caso, após estes terem sido liberados pelo perito criminal; solicitação de perícias diversas; proceder ao depoimento dos envolvidos, vítimas, testemunhas, informantes e acusados; proceder no reconhecimento de pessoas e coisas; solicitar a realização de reconstituição simulada dos fatos; e a averiguação da vida pregressa do investigado (Lima, 2016, p. p. 133 a 138), dentre outros meios que sejam necessários para o cabal esclarecimento dos fatos (na atualidade o uso de agentes infiltrados, captação de sons e imagens, e a quebra de sigilo bancário e de informações são meios modernos de investigação previstos em leis extravagantes).
A investigação criminal no contexto brasileiro sempre teve natureza inquisitiva, baseada no sigilo das investigações, na forma escrita de todos os atos de investigação e elementos de informação colhidos, bem como na visão do suspeito como objeto de investigação, e não como sujeito de direitos (Mendroni, 2013 p. p. 25 e 26).
O sigilo das investigações nesse sistema tem dupla função. Primeiramente, garantir uma paridade de armas entre a polícia e o autor da infração, tendo em vista que, como este pratica o delito com enorme vantagem temporal em relação à polícia, que passa a desenvolver seus atos investigativos posteriormente ao fato, e apenas após o mesmo ter sido noticiado, o órgão investigativo acaba tendo desvantagem na apuração do delito, onde o sigilo torna-se importante para que o investigado não tenha ciência acerca dos elementos de convicção já colhidos pelos investigadores ou prestes a serem colhidos, posto que a publicidade do que estivesse sendo apurado poderia ser usado pelo investigado para destruir vestígios do crime deixados pelo mesmo.
Outra razão para o sigilo das investigações é o fato de preservar a pessoa do investigado, posto que se a investigação comprovar que o mesmo não é o autor do crime, ou mesmo que o crime não ocorreu, o investigado poderá voltar à sua vida sem ser estigmatizado em decorrência do fato de o mesmo ter sido alvo de uma investigação policial.
Esse sigilo visa, outrossim, a garantir a intimidade de pessoas envolvidas na investigação, como parentes dos envolvidos ou as pessoas vitimadas pela conduta criminosa.
No que concerne à forma escrita do procedimento, esse ato garantiria maior segurança nos elementos coletados, pois a forma escrita garantiria a prova de todos os atos coletados, evitando que se percam informações essenciais coletadas durante as investigações.
Por fim, observar o suspeito como objeto de investigação garante que o mesmo não teria, nessa fase de pré-processual, qualquer direito, posto que a autoridade que dirige a investigação, no nosso caso o delegado de polícia, investiga fatos de maneira objetiva e com vistas a buscar a verdade real, não cabendo, no bojo de uma investigação, o exercício por parte do investigado, de direitos comuns em processos judiciais, tais como o contraditório e a ampla defesa.
Não obstante a visão tradicional das características inquisitivas que permeiam as investigações criminais em nosso país, em face da atual Constituição Federal de 1988, que prevê um sistema acusatório, onde se garanta direitos à pessoa investigada (Brasil, 1988), em razão do investigado se encontrar em uma situação de subordinação e hipossuficiência em face do estado, que possui toda uma estrutura organizacional para comprovar a culpa do mesmo, os paradigmas de natureza inquisitiva que informam a investigação criminal acabaram evoluindo e se modificando na atualidade.
Assim, o sigilo das investigações, por exemplo, ainda é importantíssimo para preservação da intimidade dos envolvidos na investigação criminosa, sejam eles vítimas, familiares dos envolvidos, ou mesmo o suspeito, bem como para garantir a eficiência das atividades investigativas. Contudo, o sigilo não pode ser levantado em face do investigado, posto que o mesmo deve ter o direito de conhecer as evidências existentes contra ele, podendo este, inclusive, solicitar a realização de diligências a serem realizadas pela autoridade policial, para comprovar ponto que o investigado acredita ser relevante, conforme prevê o artigo 14 do Código de Processo Penal (Brasil, 1941), dando a oportunidade a ele, ainda na fase de investigação (pré-processual), de contribuir para a elucidação do crime e com a obtenção da verdade real dos fatos (Moraes e Junior, 2018, p.p. 171 a 183).
Não sem razão, o Supremo Tribunal Federal editou a sumula nº 14, que previu: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”, deixando claro que o sigilo das investigações não se destina a evitar o direito de defesa do investigado. Em tal entendimento sumular, foram excepcionadas as diligências em andamento que ainda não foram documentadas, pois, nesse caso, o conhecimento da diligência por parte da defesa poderia prejudicar a investigação, como, por exemplo, no caso de interceptação telefônica, pois se o suspeito souber da existência de tal diligência, ele mesmo poderia parar de usar o telefone para se comunicar e frustraria o citado método de investigação.
A forma escrita, comum em uma investigação criminal de natureza inquisitiva, tem se mostrado também um obstáculo a um maior dinamismo e eficiência das investigações criminais, posto que, se de um lado a forma escrita garante uma maior segurança na guarda das informações coletadas, ela também se mostra extremamente burocrática, o que acaba retardando as investigações.
Se, no passado, a forma escrita era a única que garantia a manutenção das informações coletadas, na atualidade, outros métodos mostram-se também adequados para formalizar as informações obtidas, inclusive com maior fidedignidade das mesmas.
Ora, nos depoimentos colhidos em investigações policiais é comum que os relatos sejam feitos em terceira pessoa, com uso de palavras que o depoente sequer conhece, e, por vezes, acaba distorcendo o real sentido expresso pela pessoa que presta o depoimento.
Assim, a colheita de depoimentos por meio de gravação de imagens e sons mostra-se superior, primeiro por proporcionar uma dinâmica maior nos depoimentos e uma coleta de detalhes infinitamente superior aos depoimentos escritos, posto que depoimentos gravados em áudio e imagens garantem uma representação fiel de cada palavra informada pelas depoentes, bem como permite a análise de informações que não foram ditas, mas que estão presentes nas gravações, como expressões corporais das testemunhas, expressões faciais, e o tom de voz empregado pelas mesmas quando elas fizeram suas afirmações, garantindo análises posteriores desses depoimentos, até por profissionais qualificados em análises comportamentais, sendo que a revisão das colheitas de depoimentos poderia contribuir para o aprimoramento das técnicas de entrevistas e interrogatório por parte dos policiais.
A facilidade das tecnologias atuais permitiria aos investigadores tomarem depoimentos fazendo uso de seus smartphones até fora do ambiente da delegacia, muito embora um ambiente adequado para a tomada de depoimentos sempre será importante para a obtenção de informações adequadas. Mas, efetivamente em casos simples, essa facilidade poderia imprimir uma maior dinâmica nas atividades de investigação.
Até no contexto da realização de perícias seria interessante, pois imaginemos uma gravação de vídeo da perícia realizada pelo perito, com a vantagem de esse vídeo ser compartilhado com a equipe de investigação com maior rapidez, posto que os laudos escritos demoram a ser elaborados, o que agilizaria as investigações.
Outra grande mudança de paradigma na investigação criminal brasileira é a de que, mesmo nessa fase pré-processual, o investigado não pode ser visto como um mero objeto de investigação, mas como sujeito de direitos e garantias, entre eles o direito à dignidade da pessoa humana, não devendo ser alvo de tratamentos desumanos ou degradantes, como ameaças ou torturas por parte dos investigadores, bem como o direito ao contraditório e à ampla defesa. Embora tais princípios sofram uma mitigação durante as investigações, eles devem ser minimamente garantidos.
Não sem razão, o artigo 7º, Inc. XXI do Estatuto da OAB prevê, entre os direitos do advogado, o de:
XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração, apresentar razões e quesitos; (Brasil, 1994).
Assim, os investigados têm direito a assistência técnica de advogado, devendo ser designado um para representá-lo, seja defensor público ou dativo, e é lícito a esse defensor participar de todos os atos investigativos subsequentes, como acompanhando depoimentos, sugerindo perguntas, solicitando diligencias, nomeando assistente técnico para acompanhar ou revisar pericias realizadas, garantindo o direito de contradizer as provas levantadas e se defender amplamente, ainda na fase de investigação, das provas levantadas em seu desfavor, deixando de lado a impossibilidade, antes levantada, desse tipo de atuação durante a investigação criminal, tendo em vista a natureza inquisitiva da investigação criminal.
É bom que se deixe claro que o intuito das atividades investigativas jamais será a busca de um culpado, não importa qual o preço. A investigação criminal deve ser conduzida de forma cientifica em todas as suas fases, sempre em busca da verdade real. Assim, com base nessa visão de cientificidade da investigação criminal, são colhidos pelos investigadores informações acerca do fato, sendo essas informações analisadas, e, com base nos resultados dessa análise, é que são criadas hipóteses que poderão ser confirmadas ou rejeitadas, devendo a investigação seguir essa lógica de análise objetiva dos fatos até a completa elucidação do crime, explicando adequadamente a dinâmica, motivação e autoria delitiva (Blanchet, 2017 p. 11).
Esse método objetivo de investigação garante, acima de tudo, uma maior justiça na atividade investigativa, pois o intuito aqui é buscar a verdade real dos fatos, atribuindo uma conduta criminal a quem verdadeiramente a praticou, sendo, na grande maioria dos casos, a investigação criminal (formalizada por meio do inquérito policial ou outro procedimento policial) a base para o convencimento do promotor de justiça (o dominus litis da ação penal), para que o mesmo venha a apresentar denúncia, peça inaugural do processo penal, sendo, portanto, a investigação criminal essencial para o desenvolvimento e desfecho justo do processo penal brasileiro.
REFERÊNCIAS:
1. BLANCHET, L. R. Manual prático de investigação de homicídios. Curitiba: Ithala, 2017.
2. BRASIL. Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Lei 8.906, de 04 de julho de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8906.htm. Acesso em: 16 mar 2021.
3. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 17 mar 2021.
4. BRASIL. Código de Processo Penal. decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em: 16 mar 2021.
5. LIMA, R. B. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2016.
6. MENDRONI, M. B. Curso de investigação criminal. São Paulo: Atlas, 2013.
7. MORAES, R. F. M.; e JUNIOR, J. P. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. Salvador: Juspodivm, 2018.