Artigo Destaque dos editores

Aspectos de validade e constitucionalidade da emenda constitucional

Exibindo página 2 de 3
07/10/2006 às 00:00
Leia nesta página:

3. ASPECTOS DE CONSTITUCIONALIDADE

Konrad Hesse ensina que, idealmente, a Constituição não deve se assentar numa estrutura unilateral, a fim de preservar sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social. Assim, todo preceito constitucional deve ser contrabalançado por seu oposto, sob pena de ver a realidade por termo à sua normatividade. [41] No entanto, mais do que regras que meramente limitam outras regras, comumente encontramo-nos face aparentes contradições entre normas do mesmo escalão hierárquico.

Ao aplicar a norma constitucional ao fato, o intérprete deve ter sempre em mente o princípio da unidade da Constituição, que, nos dizeres de Canotilho, como ponto de orientação, guia de discussão e fator hermenêutico de decisão, obriga o intérprete a considerar a Constituição em sua globalidade e procurar harmonizar os espaços existentes entre as normas constitucionais a concretizar. [42] Logo, a unidade da Constituição não admite antinomias entre suas normas; pois todas as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal maneira que se evitem contradições com seus pares.

Isto posto, sempre que falarmos em inconstitucionalidade, não podemos nos referir à norma constitucional, antes, devemos nos referir ao PEC objeto do ato de promulgação, ao seu texto, ou ainda à própria promulgação, seja por desrespeito à forma ou à matéria tratada no texto. Havendo inconstitucionalidade no projeto promulgado, seus efeitos são anuláveis ex tunc, contaminando todos os atos do processo legislativo. Não havendo um texto promulgado válido, a Emenda Constitucional cai, pois deixa de existir seu suporte de validade.

Ressalte-se que nunca chegamos a entrar no mérito da constitucionalidade da Emenda em si, pois ante o princípio da unidade da Constituição, uma norma constitucional não pode ser tida por inconstitucional. O projeto proposto, o processo legislativo e a promulgação, como atos infraconstitucionais, sim, podem ser inconstitucionais.

Ainda, ao fazer o juízo de constitucionalidade do texto inovador, devemos buscar sempre considerar a Constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. [43] Assim, sendo possíveis dois modos de interpretação, sendo que por um deles se obtém a constitucionalidade do texto, e pelo outro não, deve-se optar pelo primeiro. Estando o aplicador em uma situação onde parte do texto que se pretende reformador é irremediavelmente inconciliável com o texto constitucional, mas outra parte não o é, deve-se optar pela nulidade apenas do elemento inconstitucional. Destarte, somente a fração do PEC que confrontar restrição constitucional não será abrangida pelos efeitos da promulgação.

Foi com o jurista alemão Otto Bachof, em 1951, que surgiu a teoria de que poderiam existir normas constitucionais inconstitucionais, levando-se em conta que princípios constitucionais, ou mesmo meta-constitucionais poderiam se chocar com normas da própria Constituição. No entanto, é certo que tal posicionamento não prosperou nas doutrinas ou jurisprudências dos tribunais. As poucas vezes em que foi considerada válida em tribunais alemães sempre foram de maneira hipotética e vaga, refletindo a própria incerteza dos julgadores quanto à validade de tal teoria. Em um julgado em que foi ventilada tal tese, da Corte Constitucional de Hess, proferido em 04/08/1950, entendeu-se que "normas suprapositivas não pertencem aos critérios de controle de normas". [44]

Encontramos ferrenha oposição à posição de Bachof na própria doutrina alemã, como em Herzog & Schick, segundo os quais infrações do Constituinte originário ou derivado a princípios da Constituição não são sequer imagináveis. [45]

Tanto nos Estados Unidos, como na Europa continental, doutrinadores do porte de Friedrich Müller, Kauper, Canotilho e Jorge Miranda apresentam posições firmes ante a impossibilidade de existência de antinomia de normas constitucionais. [46] Müller afirma que não há norma constitucional inconstitucional; quando muito, concretização inconstitucional do Direito que está na Constituição. [47] Canotilho assevera que a probabilidade de uma norma constitucional originariamente inconstitucional é praticamente impossível em Estados de legalidade democrática. Por isso é que a figura das normas constitucionais inconstitucionais, embora nos conduza ao problema fulcral da validade material do Direito, não tem conduzido a soluções práticas dignas do registro. [48]

Já Jorge Miranda assinala que é possível haver inconstitucionalidade material de normas oriundas de revisão constitucional em contradição com certas normas constitucionais já existentes, porém, afirma não ser possível admitir inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias. Acrescenta ainda que no interior da mesma Constituição originária, obra do mesmo poder constituinte, não se divisa como possam surgir normas inconstitucionais. Também não vê como órgãos de fiscalização instituídos por esse poder seriam competentes para apreciar e não aplicar, com base na Constituição as suas normas. É um princípio de identidade ou de não contradição que o impede. Miranda ainda defende poder haver inconstitucionalidade por oposição entre normas constitucionais preexistentes e normas constitucionais supervenientes, na medida em que a validade destas decorre daquelas; não por oposição entre normas feitas ao mesmo tempo por uma mesma autoridade jurídica. Conclui que pode haver inconstitucionalidade da revisão constitucional, porque a revisão funda-se, formal e materialmente, na Constituição; não pode haver inconstitucionalidade da Constituição. [49]

Kelsen não excluía a possibilidade de um Tribunal Constitucional ser chamado a decidir sobre a constitucionalidade de determinada lei, e cassá-la com a fundamentação de que se trata de lei injusta sendo a justiça um princípio da Constituição a ser empregado pelo Tribunal Constitucional. Mas isso não significa que ao Tribunal Constitucional se concedeu uma perfeição de poder, que deve ser tida por insuportável. Aquilo que à maioria dos juízes desse Tribunal se afigura por justo pode estar em inteira contradição com aquilo que a maioria do Parlamento assim considera, precisamente a maioria que aprovou essa lei. É de toda evidência que o sentido da Constituição não pode ser, mediante o uso de palavra tão indefinível e tão ambígua como justiça ou outra semelhante, o de fazer que toda a lei do Parlamento depende do livre-arbítrio de um colégio de composição política mais ou menos arbitrária, como vem a ser um Tribunal Constitucional.

Caso se tenha de prevenir um tal deslocamento de poder do Parlamento para uma instância que paira fora do mesmo, deslocamento não pretendido pela Constituição e politicamente da mais alta inconveniência, por se tratar de instância que pode ser o expoente de outras forças políticas de todo o ponto diferentes daquelas que têm expressão no Parlamento, então deve a Constituição, ao instituir um Tribunal Constitucional, abster-se de tal fraseologia; e caso queira estabelecer princípios, diretivas e limitações para o conteúdo das leis a serem formuladas, que o faça da forma mais precisa possível. [50]

Paulo Bonavides pondera que, se Kelsen tinha por ‘insuportável’ o poder dos tribunais de cassar por inconstitucionalidade leis ordinárias, qual não seria seu pasmo se acaso visse ao Tribunal Constitucional reconhecida a faculdade de nulificar conteúdos normativos da Constituição mesma? Isso sob o pálio evasivo de um direito extrapositivo, qual Bachof concebera quando teorizou, superficial e confusamente, acerca da ‘inconstitucionalidade de normas constitucionais’. [51]

O jurista chileno Sagüés opinou que a ‘interpretação contranormativa’ é de se repulsar por inteiro, visto que interpretar a Constituição em oposição ao programa normativo que ela efetivamente contém importa uma mudança constitucional – quando não, uma perversão constitucional. [52]

Nas palavras de Paulo Bonavides, as ‘normas constitucionais inconstitucionais’ não passam de um devaneio jusnaturalista de Bachof. Tal jurisprudência nunca vingou nas Cortes federais de qualquer Nação do Mundo onde a democracia cimenta as instituições e o regime. [53]

3.1 Constitucionalidade formal

A própria Constituição estabelece certos parâmetros para o procedimento de produção de emendas. Tal procedimento, determinado na Carta Constitucional em seu art. 60, deve ser rigorosamente observado, sob pena de inconstitucionalidade.

Assim, se uma Emenda Constitucional é promulgada durante a vigência de estado de sítio, tal ato é inconstitucional. Se o quorum de aprovação foi inferior ao exigido, não foi observado requisito constitucional e eventual ato de promulgação pela Mesa do Congresso seria facilmente tachado de inconstitucional.

Se, porém, não foi respeitado procedimento prevista no Regimento Interno de uma das casas, o processo, além de ilegal face o desrespeito a lei em lato sensu [54], será inconstitucional por desrespeito ao chamado ‘devido processo legislativo’, que nada mais é do que o princípio da legalidade aplicado ao processo legislativo.

A conseqüência desta inconstitucionalidade formal será a inexistência do texto no sistema normativo, uma vez que não foram preenchidos pressupostos exigidos constitucionalmente para que possa nascer o produto final do processo legislativo. [55]

3.2 Constitucionalidade material

Obedecido o procedimento prescrito, há ainda que se observar o conteúdo abrangido pelo texto.

As limitações feitas pela própria Constituição podem ser classificadas em implícitas [56] e explícitas. Estas são as elencadas no próprio art. 60, em seu §4º, quais sejam as tendentes a abolir: I) o sistema federativo; II) o voto direto, secreto, universal e periódico; III) a separação dos Poderes; IV) os direitos e garantias individuais.

A vedação não se restringe somente às propostas que excluam os institutos protegidos, mas qualquer proposta que vise modificar qualquer elemento conceitual da Federação e do voto direto, ou que restrinja, mesmo que indiretamente, direito ou garantia individual. Assim, limitar as capacidades de auto-organização, autogoverno e auto-administração dos estados federados indica tendência a abolir o sistema federativo. Ainda, atribuir a um Poder atribuição dada pela Constituição exclusivamente a outro tende a abolir o princípio da separação de Poderes. [57] Manoel Gonçalves, numa posição menos restritiva, defende que se pode re-equacionar, modificar ou alterar as condições ou efeitos das instituições protegidas pelo texto constitucional; cita ainda Robert Alexy que ressalta poder haver restrição de direito que não importe em abolição do mesmo, desde que não atinja o "conteúdo essencial" do direito, ou seja, se não for inadequada, desnecessária e desproporcionada em sentido estrito (quando não se encontra numa relação adequada com o peso e a importância do direito fundamental). [58]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

O mesmo Manoel Gonçalves joga ainda uma luz diferente sobre esta questão. Ele nos diz que as Constituições costumam invocar que o poder constituinte dos elaboradores lhes foi outorgado pelo povo. Este mesmo povo outorga poderes ao legislador ordinário para tomar decisões políticas sobre seu futuro. Assim, não haveria qualquer diferença entre a relação do povo com os seus representantes que editam a Constituição e aqueles que governarão o Estado de acordo com ela. Logo, não haveria uma superioridade intrínseca de um em relação ao outro se levarmos em conta a legitimação democrática. [59] Com todo o respeito à opinião do eminente professor, sua posição neste ponto nos parece extremamente equivocada. Todo procurador está restrito a atuar dentro dos limites dos poderes que lhe foram conferidos. A identidade entre os modos de concessão destes poderes não legitima o representante eleito para um fim atuar fora destes limites pré-estabelecidos.

Em contraponto, a posição de Carl Schmitt é de que existiria uma diferenciação entre a Constituição em si e as chamadas ‘leis constitucionais’. Aquela se referiria ao modo e forma da unidade política, aos pontos fundamentais da ordem política, e alterar este núcleo seria fraudar a Constituição. As ‘leis constitucionais’ seriam as demais normas inclusas no texto constitucional, e estas poderiam ser alteradas livremente pelo poder constituinte derivado. [60]

Já quanto às limitações implícitas, Nelson Sampaio enumera: I) as concernentes ao titular do poder constituinte, pois uma reforma constitucional não pode mudar o titular do poder que cria o próprio poder reformador; II) as referentes ao titular do poder reformador, pois seria despautério que o legislador ordinário estabelecesse novo titular de um poder derivado só da vontade do constituinte originário; III) as relativas ao processo da própria emenda, distinguindo-se quanto à natureza da reforma, para admiti-la quando se tratar de tornar mais difícil seu processo, não a aceitando quando vise a atenuá-lo, Segundo o citado jurista, a chamada dupla revisão seria ilógica e destrutiva; não poderia a reforma constitucional se tornar forma de destruir a própria Constituição. [61]

Há ainda quem defenda a limitação quanto à supressão dos dispositivos atinentes à intocabilidade dos temas já elencados (art. 60, §4º) [62], porém este não é entendimento dos doutrinadores de maior peso [63], que defendem não haver qualquer tipo de limitação neste sentindo, citando-se inclusive exemplos históricos ocorridos no Brasil [64] e no estrangeiro [65] de alterações constitucionais vultuosas, e mesmo substituição por uma nova ordem constitucional, sem quebra de continuidade da ordem jurídica.

Canotilho esclarece que "as normas de revisão não são o fundamento da rigidez da Constituição mas os meios de revelação da escolha feita pelo poder constituinte. Esta escolha de um processo agravado de revisão, impedindo a livre modificação da lei fundamental pelo legislador ordinário (constituição flexível), considera-se uma garantia da Constituição. O processo agravado da revisão é, por sua vez, um instrumento dessa garantia – a rigidez constitucional é um limite absoluto ao poder de revisão, assegurando, desta forma, a relativa estabilidade da Constituição". [66] Acrescenta ainda que as normas de revisão estariam em um nível supraconstitucional, atestando a superioridade do constituinte e a sua violação, mesmo pelo legislador de revisão, deveria ser considerada como incidindo sobre a própria garantia da Constituição; violação das normas constitucionais que estabelecem a imutabilidade de outras normas constitucionais deixaria de ser um ato constitucional para se situar nos limites da ruptura constitucional, seria mesmo um indício de fraude à Constituição. Afirma ainda que as regras de alteração de uma norma pertencem aos pressupostos da mesma norma, e daí que as regras que fixam as condições de alteração de uma norma se coloquem num nível de validade (eficácia) superior ao da norma a modificar. [67]

Tem-se entendido também que, em virtude do resultado do plebiscito que se realizou em 21 de Abril de 1993, está fora do alcance do reformador da Constituição alterar a forma e o sistema de governo (i.e. república presidencialista). [68]

Da inconstitucionalidade material de um dado texto, temos que resulta a sua nulidade ipso jure.

Canotilho [69] nos ensina que a inconstitucionalidade deve ser abordada sob o ponto de vista da conformidade intrínseca do sistema normativo. A nulidade é uma conseqüência da inconstitucionalidade, é uma resposta da ordem jurídica a uma violação da ordem constitucional.

Sempre que a contradição com o texto constitucional não for a falta de um requisito da própria existência do ato temos a nulidade daquele ato. E já em 1803, o juiz norte-americano Marshall proferiu o enunciado hoje clássico: "an act of the legislature repugnant to the Constitution is void". [70]

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Marcelo Azevedo Chamone

Advogado, Especialista e Mestre em Direito, professor em cursos de pós-graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAMONE, Marcelo Azevedo. Aspectos de validade e constitucionalidade da emenda constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1193, 7 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9016. Acesso em: 4 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos