A obra de Henri Lefebvre intitulada Direito à Cidade é um clássico que influencia sobremaneira debates, no âmbito das ciências geográficas, ciências econômicas, ciências jurídicas e ciências sociais, acerca de relações de poder e relações políticas que estão adstritas ao fenômeno da urbanização e da organização do espaço nas cidades.
Como explica o supracitado autor, tomando em consideração a cidade arcaica (grega ou romana) de que partem as sociedades e as civilizações ditas “ocidentais”, tem-se que esta resulta geralmente de um sinecismo, reunião de aldeias ou tribos estabelecidas em um território. Esta unidade permite o desenvolvimento da divisão do trabalho e da propriedade mobiliária (dinheiro), sem, todavia, destruir a propriedade coletiva ou antes “comunitária” do solo. Assim, se constitui uma comunidade no seio do qual uma minoria de livres cidadãos detém o poder sobre os outros membros da cidade: mulheres, crianças, escravos, estrangeiros. A cidade liga seus elementos associados à forma de propriedade comunal (“propriedade privada comum” ou “apropriação primitiva”) dos cidadãos ativos, os quais se opõem aos escravos .
Ainda segundo este autor, essa forma de associação constitui uma democracia, mas os elementos dessa democracia são estreitamente hierarquizados e submetidos às exigências da unidade da própria cidade. No transcorrer da história da cidade arcaica, a propriedade privada pura e simples (do dinheiro, do solo, dos escravos) se fortalece, se concentra, sem abolir os direitos da cidade sobre o território .
Importante destacar o pensamento de Henri Lefebvre, principalmente quando se percebe a origem histórica, e, portanto, a gênese dos processos de formação e de organização dos espaços urbanos. A proeminência do desenvolvimento nas cidades fez surgir, naturalmente, uma realidade antagônica, a saber: a realidade dos espaços rurais (ou do campo), os quais experimentariam, como ainda hoje experimentam, déficits de desenvolvimento e de competitividade territorial, principalmente se forem com os principais centros urbanos. Sobre esta realidade, cidade x campo, o referido autor explica que a separação entre elas tomou lugar entre as primeiras e fundamentais divisões do trabalho, com a divisão do trabalho conforme os sexos e as idades (divisão biológica do trabalho), com a organização do trabalho segundo os instrumentos e as habilidades (divisão técnica). Esta divisão social do trabalho entre cidade e campo corresponde à separação entre trabalho material e o trabalho intelectual e, por conseguinte, entre o natural e o espiritual. A cidade incumbe o trabalho intelectual: as funções de organização e de direção, as atividades políticas e militares, elaboração do conhecimento teórico (filosofia e ciências). A totalidade se divide; instauram-se separações, inclusive a separação entre a Physis e o Logos, entre a teoria e a prática e, na prática, as separações entre práxis (ação sobre os grupos humanos), poiésis (criação de obras), techné (atividade armada com técnicas e orientada para os produtos). O campo, ao mesmo tempo realidade prática e representação, vai trazer as imagens da natureza, do ser, do original. A cidade as imagens do esforço, da vontade, da subjetividade, da reflexão, sem que estas representações se alastrem de atividades reais.
Na prática, segundo as especificidades de cada país, as cidades representam centros onde a reprodução de relações econômicas se intensificam, com vistas a se buscar meios de sobrevivência e de acumulação de riquezas. Neste sentido, os Estados, na realidade contemporânea, estão bem mais centrados na produção de riquezas através de investimentos de capitais estrangeiros em seus territórios do que na tributação interna de sua própria produção e de sua população.
Neste sentido, ganham cada vez mais espaço no contexto da economia das cidades, os interesses de grupos de investidores (muitas vezes estrangeiros), que exigem mudanças estruturais nas relações jurídicas, sociais e econômicas ditadas pelo ordenamento jurídico interno, como também garantias mínimas de infraestruturas, como “contraprestações” aos investimentos prometidos.
Como ensina Milton Santos, as necessidades de espaço mudaram, tanto em função dos requisitos da produção como da circulação mais exigente de rapidez. Por isso, a cada dia que passa, mais o espaço tem que ser preparado de maneira particular para cada tipo de produção. Isso se dá ao mesmo tempo que novas vias de circulação têm que ser criadas para que a produção possa escoar com rapidez, em um mundo em que a economia é cada vez mais uma economia de fluxos. O que isso representa? Este autor responde que se a necessidade de modificar a cidade, reconstruindo o espaço urbano, faz-se sentir de forma repetida e a fracos intervalos, o erário público é chamado a ter despesa sempre maiores, toda vez que a cidade se torna inviável para o grande capital.
Neste contexto, pergunta-se: a quem se destina o planejamento urbano? A que interesses serve a cidade? O direito à cidade é um direito de todos? Percebe-se que em tese a cidade deveria ser administrada no sentido de atender, cada vez mais, aos interesses de todos, mesmo que esta seja uma tarefa difícil e demorada. Pelo menos é nesta direção que aponta os textos constitucionais do Brasil e de Portugal. No entanto, a realidade que se observa nos países em estudo é que os territórios das cidades estão sendo geridos no interesse da fruição do mercado global ou globalizante. A ideia que se passa é que há consistências nacionais no sentido de que a globalização é um caminho sem volta, ou melhor, uma tendência inescapável e necessária ao atual estágio de desenvolvimento capitalista.
Seguindo na análise das construções e desconstruções de políticas e investimentos nas cidades, Milton Santos explica que há ciclos sucessivos de inviabilização e de reviabilização da cidade, aumentando a superfície urbana, útil aos grandes capitais, estendendo a área urbana de forma específica, de maneira a permitir as condições exigidas pelas grandes firmas em matéria de espaço geográfico.
A discussão sobre o direito à cidade está na pauta do dia em inúmeros países. O centro da discussão repousa sobre o estágio atual de desenvolvimento do capitalismo, que exige dos estados nacionais posturas cada vez mais liberalizantes, sempre com o intuito de reduzir a intervenção e regulações destes centros de controle e poder estatais.
Acerca deste debate, Mark Purcell destaca que ativistas em Seattle, Washington, Montreal, Gotemberg, Genoa, Porto Alegre e em outros locais, tem insistido que o problema central da reestruturação neoliberal global é que o controle democrático dos governos em diversos países tem sido transferido para as corporações transnacionais. Estes ativistas apontam as grandes corporações, tais como Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, e Banco Mundial, e várias outras instituições, como os arquitetos que perseguem este projeto neoliberal, sob o fundamento de um projeto global que objetiva aumentar a integração de todas as pessoas e lugares em uma única economia capitalista mundial, regida pela lógica do laissez faire.
Como recorda Édis Milaré, não só com o planejamento e a ordem urbana se preocupam a Constituição e o Estatuto da Cidade, mas também levam em consideração a chamada “cidade irregular”, que se forma com aqueles assentamentos nascidos e desenvolvidos quase como oposição à cidade legal. Tal cidade irregular não abole o direito à cidade, que é um direito da cidadania, como é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A lei, por conseguinte, reconhece que todos têm direito à moradia, como têm à vida, à saúde e ao trabalho . Neste sentido, entende-se que o direito à cidade é um direito fundamental, pela técnica e pela sua essencialidade, à concretização de outros direitos, também fundamentais, indispensáveis à realização do conceito de dignidade da pessoa humana.
Sobre as transformações do espaço urbano, Henri Lefebvre ensina que a cidade se transforma não apenas em razão de “processos globais” relativamente contínuos (tais como o crescimento da produção material no decorrer das épocas, com suas consequências nas trocas, ou no desenvolvimento da racionalidade) como também em função de modificações profundas no modo de produção, nas relações “cidade-campo”, nas relações de classe e de propriedade. Para este autor, a cidade e o urbano não podem ser compreendidos sem s instituições oriundas das relações de classe e de propriedade. Ela mesma, a cidade, obra e ato perpétuos, dá lugar a instituições específicas: municipais.
Retornando mais uma vez à questão da relação entre a urbanização e a industrialização, Henri Lefebvre explica que o duplo processo de industrialização e de urbanização perde todo seu sentido se não se concebe a sociedade urbana como objetivo e finalidade da industrialização, se se subordina a vida urbana ao crescimento industrial. Este fornece as condições e os meios da sociedade urbana. Este autor ensina que a industrialização produz a urbanização inicialmente de modo negativo (explosão da cidade tradicional, de sua morfologia, de sua realidade prático-sensível) e que a sociedade urbana começa sobre as ruínas da cidade antiga e sua vizinhança agrária.
Nessa perspectiva, a realização da sociedade urbana exige uma planificação orientada para as necessidades sociais, as necessidades da sociedade urbana. Ela necessita, segundo afirma, de uma ciência da cidade. Necessárias, estas condições não bastam. Para este mesmo autor, uma força social e política capaz de operar esses meios é igualmente indispensável.
Outro ponto importantíssimo para discussão da presente obra é a de que a classe operária sofreria as consequências da explosão das antigas morfologias. Segundo afirma, ela é vítima de uma segregação, estratégica de classe permitida por essa explosão. Tal é a forma atual da situação negativa do proletariado. A antiga miséria proletária se atenua e tende a desaparecer nos grandes países industriais. Uma nova miséria se estende, que toca principalmente o proletariado sem poupar outras camadas e classes sociais: a miséria do habitat, a miséria do habitante submetido a uma cotidianidade organizada (na e pela sociedade burocrática de consumo dirigido). Para aqueles que ainda duvidaram de sua existência como classe, a segregação e a miséria de seu “habitar” designam na prática a classe operária.
Nesta realidade, segundo afirma, certos direitos abrem caminho, direitos que definem a civilização. Esses direitos mal reconhecidos tornam-se pouco a pouco costumeiros antes de se inscreverem nos códigos formalizados. Mudariam a realidade se entrassem para a prática social: direito ao trabalho, à instrução, à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres, à vida. Entre estes direitos em formação figura o direito à cidade (não à cidade arcaica mais à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais, etc.). Por fim, conclui que para a classe operária, rejeitada dos centros para as periferias, despojada da cidade, expropriada assim dos melhores resultados de sua atividade, esse direito tem um alcance e uma significação particulares. Representa para ela ao mesmo tempo um meio e um objetivo, um caminho e um horizonte; mas essa ação virtual da classe operária representa também os interesses gerais da civilização e os interesses particulares de todas as camadas sociais dos “habitantes”, para os quais a integração e a participação se tornam obsessivas sem que cheguem a tornar eficazes essas obsessões.
Nas lições de Milton Santos, este recorda que na esteira do que escreveu Lefebvre, muito se fala em “direito à cidade”. Trata-se, de fato, do inalienável direito a uma vida decente para todos, não importa o lugar em que se encontre, na cidade ou no campo. Mais do que um direito à cidade, o que está em jogo é o direito a obter da sociedade aqueles bens e serviços mínimos, sem os quais a existência não é digna. Esses bens e serviços constituem um encargo da sociedade, por meio das instâncias do governo, e são devidos a todos. Sem isso, não se dirá que existe o cidadão.
Um dos focos do debate ora proposto repousa, como se observa, na transferência do poder estatal de gestão e administração de interesses, mesmo que de forma informal e indireta, a grupos de investidores e organizações supranacionais que atuam com vistas ao estabelecimento de um mercado global, em detrimento e prejuízo dos interesses das populações destes espaços territoriais, em especial aquela população que depende de prestações materiais e intervenções que possibilitem a sua inserção no mercado produtivo ou que garantam um mínimo de um desenvolvimento endógeno que possibilite a fruição de um padrão mínimo de qualidade de vida.
Somente com a participação da população e a abertura feita pela Administração Pública para esta participação é que se terá uma via que leve ao conhecimento das instâncias de planejamento as necessidades reais das comunidades de cada parcela do território. Para tanto, é imprescindível, em termos qualitativos, que haja investimentos públicos na melhoria do nível de instrução da população, de modo que se produza uma massa crítica social indispensável à postulação de suas reais necessidades.
Em síntese conclusiva, podemos afirmar que o direito à cidade é o direito que todos têm a uma cidade que seja capaz de atender às suas necessidades de habitação adequada, de modo que seja possível a todos os seus habitantes viverem em um espaço sustentável e que promova inclusão social. Neste sentido, a cidade não pode permitir que haja a apropriação de seu espaço por um grupo com força política e econômica capaz de moldar o território de modo que seus interesses particulares se mantenham, em detrimento de exclusões, expropriações e políticas segregacionistas. Sendo assim, direito à cidade significa que a cidade é um direito de todos, indistintamente. E neste sentido, o planejamento da cidade deve ser feito, de modo que o zoneamento ambiental ou urbanístico não seja um instrumento de segregação, mas que seja um instrumento de reconhecimento de características especiais do território e de espacialização de investimentos. Em todo esse processo, é fundamental que a população como um todo seja consultada e ouvida com frequência. Observando-se essa lógica, é fácil compreender o que iremos defender ao longo de todo esse livro: que existe um direito fundamental à cidade, o qual cria um dever do Estado a intervir, sendo esse direito à cidade, portanto, um direito social.
Referências Bibliográficas
LEFEBVRE, Henri. Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina – jurisprudência – glossário. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
PURCELL, Mark. Excavating Lefebvre: The right to the city and its urban politics of the inhabitant. In: GeoJournal, 58: 99–108, 2002, pág. 99. Disponível em: Acesso em 22 de abril de 2015.
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Editora de São Paulo, 2007.
SANTOS, Milton. Por uma economia política das cidades: o caso de São Paulo. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2009.