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A Belíndia, as testemunhas e o art. 366 do CPP

09/10/2006 às 00:00
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A redação do art. 366 do CPP visa proteger os direitos constitucionais do réu citado por edital e sem constituição de um advogado, sendo que algumas decisões recentes têm gerado controvérsias quanto à possibilidade de produção de provas neste momento processual. Este trabalho abordará, contudo, a ouvida de testemunhas na situação delimitada pelo art. 366 do CPP:

(...)Se o acusado, citado por edital, não comparece nem constitui advogado, pode o juiz, suspenso o processo, determinar produção antecipada de prova testemunhal, apenas quando esta seja urgente nos termos do art. 225 do Código de Processo Penal(STF. RHC 83709 / SP - SÃO PAULO. Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA.Rel. Acórdão Min. CEZAR PELUSO.Julgamento: 30/03/2004 1ªTurma. Publicação: DJ 01-07-2005 PP-00056 EMENT VOL-02198-02 PP-00279)

Por diversas vezes, ao meditar sobre a produção legislativa do Brasil, inclusive quanto à alteração do art. 366 do CPP, recordo da afirmação de um político conhecido, que certa vez comparou nosso país a um misto da Bélgica com a Índia: Belíndia. Destaque-se que na época da frase a Índia ainda não tinha o desenvolvimento atual.

Mostrando um lado belga de ser, o art. 366 do CPP visa a proteção dos direitos do denunciado, determinando, como regra geral, a suspensão do processo, e até do curso da prescrição, desde que o réu, citado por edital, não tenha constituído advogado. Garantiu-se, assim, aparentemente, os direitos dos acusados, muitas vezes condenados sem sequer saber da existência do processo, ainda que tal situação acontecesse pela ineficácia estatal em localizá-los. A regra admite, entretanto, a produção de provas urgentes, preocupação compatível com a finalidade do processo criminal, sempre premido pela proteção do acusado e pelo resguardo da paz social, abalada pelo crime ocorrido. Norma com preocupações de primeiro mundo. Norma que poderia estar no direito belga, sem desvalor.

Ressaltando nosso nível de desenvolvimento, o país, em pleno século XXI, não dispõe de tradição de prova pericial nos feitos criminais. Quantos operadores do direito já encontraram fotos e diagramas do local do delito? Quantos bancos de dados policiais existem que mereçam o nome? Quantos já manusearam um processo com exames de DNA de material relacionado ao crime? Quantos já viram a cena do crime devidamente preservada nos termos da legislação (art. 6º,I do CPP)? Quantos estudaram um reconhecimento de digital devidamente anexado aos autos?

Recentemente assisti a um episódio de uma série de televisão sobre peritos forenses. Pensei que estava em Marte. Não, vou escolher um planeta mais distante: me senti em Plutão. Os peritos encontravam manchas de secreções humanas em locais imperceptíveis, das quais extraíam material para exame de DNA. As digitais eram recolhidas aos pedaços, de vários locais, para serem unificadas em programas de computador. As balas eram comparadas em um banco de dados que informava outros crimes onde a arma já havia sido utilizada. Com uma simples foto de marca de pneu de carro se identificava o veículo e seu ano de fabricação. Com um estudo das marcas dos pés do criminoso se descobria sua altura e peso. Vou parar por aqui.

Temos um país pobre e não podemos fingir o contrário. Nesta nação de extensão quase continental, e todos que militam na área criminal sabem, a prova que condena é a testemunhal. Gostando-se ou não, esta é a realidade.

Na visão de alguns, a prova testemunhal só pode ser produzida na situação do art. 366, se obedecer aos requisitos do artigo 225, ambos do CPP. Para estes, inferindo-se uma demora do processo, o depoimento deve ser efetivado logo, quando a testemunha vai ausentar-se ou é arriscado esperar sua oitiva, por ser enferma, por exemplo. Para outros, a prova testemunhal pode ser produzida antecipadamente sempre, pois os artigos 92 e 93 do CPP a qualificam como de natureza urgente (os dispositivos tratam da suspensão do processo "após a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente."). Para o primeiro grupo, os artigos 92 e 93 do CPP tratam de réu que foi citado e participa do processo. Para o segundo grupo, se assim fosse, o artigo 225 do CPP também só se aplicaria ao réu que foi citado, não podendo ser usado para interpretação do art. 366 do CPP. Mais ainda: para o primeiro grupo, mesmo quando o réu está presente, o processo já demora e não se cogita a antecipação da prova testemunhal, enquanto que o segundo grupo sustenta que com o réu presente tem-se uma perspectiva próxima de realização do ato, ausente na suspensão do processo, daí se antecipar a oitiva.

Não se encontrará a solução pela leitura isolada dos dispositivos do nosso vetusto CPP. De fato, a prova testemunhal é de natureza precária, se esmaecendo com o decurso do tempo, fato de muito conhecido por todos. Se o legislador, contudo, considerasse esta prova como especial em caso de suspensão por força do art. 366 do CPP, teria destacado sua produção, o que não fez, embora já não se espere tanto esmero de nossos congressistas.

A questão se exaure na necessidade de proteção do réu ausente, quanto aos princípios constitucionais aplicados ao processo e as regras pertinentes às providências de natureza cautelar.

Em primeiro lugar, não considero o artigo 225 do CPP como exaustivo. A prova testemunhal se justifica em outros casos, como, aliás, se verifica na produção regida pela medida cautelar do art. 847 do CPC, análoga por similitude:

Produção antecipada de prova. Exegese mais liberal do art. 847 do CPC, viabilizando-se o pedido de produção antecipada de provas, consistente na oitiva de testemunha e depoimento pessoal, não só fulcrada no critério de urgência e necessidade, mas acrescendo o de conveniência. (Tribunal de Justiça do Distrito Federal. APC2784792 DF ACÓRDÃO: 59142. 3a Turma Cível. RELATOR: NANCY ANDRIGHI. Diário da Justiça do DF: 26/08/1992 Pág: 25.792)

Em segundo lugar, a antecipação da prova no caso do art. 366 do CPP acontece em situação especial e far-se-á com a presença de defensor designado para tal fim. Essa situação não é nova no dia-a-dia forense. Se o defensor do réu, por exemplo, não comparece, nomeia-se um advogado dativo para acompanhar o ato processual, nos termos do art. 265 do CPP. Muitas vezes, tanto o réu como seu advogado não comparecem às audiências e nem por isso se deixa de produzir a prova. Alguns dirão que foi opção do réu, que não pode optar no caso do art. 366 do CPP, mas o que falar das testemunhas que são ouvidas por carta precatória? Os tribunais superiores entendem que é dever do réu comparecer diariamente ao cartório para procurar saber quando o ato será praticado (Súmula 273 do STJ):

Não há necessidade de nova intimação do advogado do réu da data da audiência de inquirição de testemunha, a ser realizada no juízo deprecado, se ele foi intimado da expedição da carta precatória. Caberia a ele acompanhar a tramitação da precatória e certificar-se do dia designado pelo juízo deprecado para a realização da referida audiência(STJ.RHC 10.451-SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, julgado em 3/10/2000)

O papel do defensor nomeado (art. 366§1° do CPP), inclusive, é o de indicar provas não requeridas pela acusação, já que inexiste defesa prévia. Surge daí a possibilidade de que seja ouvida uma testemunha não arrolada pela acusação e que pode beneficiar o réu, materializando o caráter singular desta produção antecipada de provas, a exigir, também, uma apreciação singular.

Em terceiro lugar, toda e qualquer prova pode ser repetida, ou seja, o réu sempre pode requerer, fundamentadamente, nova prova e mais ainda neste caso: a prova deverá ser repetida, se factível e desejada. Por que? Porque não sendo caso de revelia, o réu não recebe o processo no estado em que se encontra (art. 366§2° do CPP). Aconteceu, apenas, uma produção antecipada de prova, à semelhança do art. 846 do CPC. E mais: o réu não acompanhou sua produção e pode ter interesse em instruir seu defensor para determinados pontos, desconhecidos do advogado dativo. Imaginemos a situação: o feito é suspenso e acontece a produção de alguma prova urgente, tipo oitiva de uma testemunha da acusação. Dois anos depois o réu é localizado. O processo segue de onde? Do interrogatório! Depois vem a defesa prévia, testemunhas de acusação e de defesa, de regra. Neste caso, deve o magistrado questionar a defesa se deseja repetir a oitiva da testemunha, caso isto ainda seja possível. A medida proporciona ampla defesa, direito constitucional do réu. Podem surgir divergências entre os dois depoimentos? Claro que devem surgir, e isto é salutar! O réu traz elementos novos que podem, por exemplo, concluir pela veracidade ou não do testemunho, viabilizando a eterna busca da verdade real.

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Por último, várias provas são produzidas sem o conhecimento do réu, ainda na fase inquisitorial e as mesmas são aceitas como válidas para futura condenação (apreensões, perícias, etc..), restando ao réu questiona-las posteriormente, no chamado "contraditório diferido"("As nulidades no Processo Penal", Malheiros, 1993. p.129 – citado pelo TACRIM-SP na AP 905.243/4 – 16ªCam. Rel. Dyrceu Cintra). Relembro, ainda, a posição já manifestada pelo STF quanto às testemunhas ouvidas apenas no inquérito policial, hábeis a lastrear uma condenação(STF. HC 73.513-4. 1ª Turma. Rel Min Moreira Alves. J 26.03.1996. RT 740/527), ainda que seja uma posição constitucionalmente questionável.

Na verdade, a situação de urgência colocada no artigo 366 do CPP pode até guardar alguma relação com outros dispositivos do Código de Processo Penal, mas não há uma sobreposição ou prevalência de regras para a sua realização. A simples ausência do depoente, mencionada no art 225 do CPP, não justifica a antecipação da produção da prova. A testemunha, por exemplo, pode até mudar de domicílio e o fato não caracterizar urgência na realização da prova. Por outro lado, a testemunha pode permanecer na mesma comarca e ainda assim justificar sua oitiva antecipada. Diga-se, por exemplo, que foi arrolada uma testemunha, que pela fundamentação no requerimento da parte, possa ser adjetivada como de canonização, isto é, daquelas que só sabem que o réu ou vítima é semelhante à falecida Madre Teresa de Calcutá: pessoa angelical, pura e sem defeitos. Sustente-se, ainda, que essa testemunha vai residir em outro município. Não se justifica a produção antecipada da prova nos termos imaginados para o artigo 366 do CPP: a prova não é urgente, o depoimento, colhido hoje ou daqui a cinco anos, não interfere no processo, pois tem natureza acessória ao mérito da lide. Para aqueles que enxergam nas decisões do STF uma rigidez plena, a prova se justifica, segundo o art. 225 do CPP.

Sob outro prisma, imagine-se uma testemunha visual, que presenciou os atos, viu e ouviu o disparar da arma e o grito da vítima. Essa testemunha comparece e afirma que já sofreu dois atentados e que corre risco de vida, mas que não está disposta a desaparecer de sua comunidade, ingressando nos ainda parcos programas de proteção à testemunha. Se formos adeptos da rigidez das recentes interpretações, a testemunha não será ouvida antecipadamente. Não parece crível garantir que a testemunha será protegida pela atuação regular do Estado quanto à segurança pública.

Fico feliz que não se tenha defendido, ainda, a aplicação do artigo 224 do CPP(obrigação da testemunha comunicar ao juízo mudança de endereço, sob "as penas de seu não comparecimento"), que nivela a testemunha ao criminoso.

Inobstante tudo o que foi dito, juízes, promotores e advogados devem ser criteriosos na oitiva de testemunha sob o manto do artigo 366 do CPP. Não é qualquer testemunha. É a testemunha relevante, significativa para a comprovação da autoria e/ou da materialidade, ou, ainda, negativa de ambas, que esteja cercada de alguma característica que justifique sua oitiva antecipada, devendo tal circunstância ser obrigatoriamente declarada no requerimento para sua oitiva. Uma testemunha com 20 anos não pode ser ponderada da mesma forma que uma testemunha com 70 anos. Uma testemunha que não conhecia as partes e só viu a vítima sair do prédio com uma faca nas costas não pode ser igualada àquela outra que ouviu o diálogo e viu o homicídio em seguida. Não existe regra e não existe exceção. O que deve existir é bom senso e ponderação na análise de cada caso, de cada testemunha e de cada processo.

Extraem-se duas cautelas na produção de provas no termos do art. 366 do CPP: a primeira é que o pedido exige contraditório. Se a acusação quer a prova, o defensor nomeado tem que se manifestar sobre ela e vice-versa. A segunda regra é que o deferimento deve ser acompanhado da ressalva quanto à sua futura repetição, se possível, para complementação dos interesses do réu.

Resumidamente falando, não se pode generalizar a produção da prova testemunhal, mas não se pode cristalizar a sua proibição, sob pena de se prejudicar a busca da verdade e os interesses do próprio réu na obtenção da medida certa da sua participação no que lhe é imputado.

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Sobre o autor
Josemar Dias Cerqueira

juiz de Direito em Rio Real (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CERQUEIRA, Josemar Dias. A Belíndia, as testemunhas e o art. 366 do CPP. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1195, 9 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9028. Acesso em: 4 nov. 2024.

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