4. PECULIARIDADES DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
Uma Constituição democrática se baseia em princípios que permitem uma constante evolução interpretativa, condicionada pelos princípios universais de direitos humanos, processos e procedimentos democráticos constitucionalmente previstos, e pela livre expressão da vontade consciente dos cidadãos.
A questão que nos interessa diretamente neste momento do trabalho é a da interpretação da Constituição vislumbrando como se dá a relação entre suas regras e princípios. Em outras palavras, pergunta-se se há hierarquia entre as diversas normas constitucionais.
O princípio da unidade da constituição determina que a constituição deve ser interpretada de maneira sistemática, de modo a evitar contradições entre suas normas. Não é aconselhável interpretar um dispositivo constitucional isoladamente, mas sim integrado com outras normas que compõem o sistema interno da constituição. Explica Canotilho que este princípio "obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar" [89].
Canotilho defende como pontos básicos para a interpretação constitucional: a) rejeição de qualquer interpretativismo extremo vinculado a premissas teóricas insustentáveis: a interpretação como revelação da "vontade de um poder" constituinte histórico, identificação do texto com a norma, limitação da interpretação aos preceitos constitucionais transportadores de regras jurídicas precisas e concretas; b) rejeição do "desconstrucionismo" ou "pós-estruturalismo interpretativo", conducente a uma jurisprudência política, disfarçada na necessidade de mediação e integração dos valores presentes numa ordem constitucional; c) articulação da concepção substantiva de constituição com o princípio democrático: os parâmetros substantivos da constituição são concretizados político-jurídico-valorativamente pelo legislador e controlados jurídico-valorativamente pelos tribunais; d) arrimo da interpretação da constituição numa teoria constitucionalmente adequada que postula o apelo simultâneo a "valores" substantivos (igualdade, liberdade, justiça), a "valores" procedimentais (processo democrático, eleições), a "valores" formais (forma de lei, do contrato) – dar operacionalidade prática à concepção de constituição como sistema normativo aberto de princípios e regras; e) a interpretação da constituição é interpretação-concretização de uma hard law e não de uma soft law: as regras e princípios constitucionais são padrões de conduta juridicamente vinculantes e não simples "diretivas práticas". [90]
Ivo Dantas entende que, uma vez tendo o texto constitucional estabelecido a divisão dos princípios em gerais e setoriais, poder-se-á estabelecer uma nova hierarquia entre estes princípios, colocando no ápice da pirâmide os princípios fundamentais, e abaixo os princípios gerais voltados para determinado setor na Constituição. [91]
Ao falar-se em hierarquia de normas constitucionais, esta hipótese poderá sugerir uma possível inconstitucionalidade de normas constitucionais oriundas do poder constituinte originário, [92] tese com a qual não concordamos; primeiro porque os princípios constitucionais podem facilmente superar possíveis inconstitucionalidades de regras em sentido restrito, e em segundo lugar porque a ideologia constitucionalmente adotada, juntamente com o princípio da economicidade, ajuda-nos a superar qualquer antagonismo no texto.
Desta forma, no lugar de hierarquia, é preferível visualizar nas normas constitucionais diversos graus de abrangência, onde se poderia acrescentar uma diferenciação entre os princípios fundamentais e os princípios gerais setoriais. Temos então: a) regras em sentido restrito; b) regras deduzidas em sentido amplo; c) regras expressas em sentido amplo setoriais; d) regras expressas em sentido amplo fundamentais; e) ideologia constitucionalmente adotada.
Para a boa interpretação constitucional é preciso verificar, no interior do sistema, quais as normas que foram prestigiadas pelo legislador constituinte a ponto de convertê-las em princípios regentes desse sistema de valoração. Impende examinar como o constituinte posicionou determinados preceitos constitucionais. Alcançada, exegeticamente, essa valoração é que teremos os princípios. Estes, como assinala Celso Antônio Bandeira de Mello, são mais do que normas, servindo como vetores para soluções interpretativas. De modo que é preciso, para tal, conhecer cada sistema normativo. A interpretação da norma constitucional levará em conta todo o sistema, tal como positivado, dando-se ênfase, porém, para os princípios que foram valorizados pelo constituinte. [93]
Este conjunto de regras constitucionais se apresentam ao intérprete, que poderá com os elementos oferecidos pela hermenêutica, adequá-las, sistematiza-las e inseri-las a na realidade social, política e econômica. Este processo de interpretação não ocorrerá pela vontade de um intérprete, mas de vários intérpretes, que para a correta interpretação da vontade da Constituição, e sua justa aplicação, deverão estar atentos às indicações advindas das aspirações populares adequadas aos valores do texto constitucional.
Ora, se a Constituição é um sistema de normas, um lucidos ordo, como era sempre advertido por Ruy Barbosa, que confere unidade a todo o ordenamento jurídico, disciplinando de forma unitária e congruente as estruturas fundamentais da sociedade e do Estado, é mais do que razoável concluir não haver hierarquia entre estas normas constitucionais. Não existe nem mesmo hierarquia (jurídica) entre os princípios e as regras constitucionais, o que se afasta, de logo, a ocorrência de normas constitucionais inconstitucionais, ou melhor, normas constitucionais do poder constituinte originário inconstitucionais, uma vez que o STF admitiu a possibilidade de inconstitucionalidade de normas emanadas pelo poder constituinte derivado (ADIn 939), desde que feridas as garantias enumeradas no art. 60, §4º. [94]
É forçoso admitir que não há hierarquia entre os princípios constitucionais. Ou seja, todos as normas constitucionais têm igual dignidade; em outras palavras: não há normas constitucionais meramente formais, nem hierarquia de supra ou infra-ordenação dentro da Constituição, conforme asseverou Canotilho. Existem, é certo, princípios com diferentes níveis de concretização e densidade semântica, mas nem por isso é correto dizer que há hierarquia normativa entre os princípios constitucionais. Com efeito, como decorrência imediata do princípio da unidade da Constituição, tem-se como inadmissível a existência de normas constitucionais antinômicas (inconstitucionais), isto é, completamente incompatíveis, conquanto possa haver, e geralmente há, tensão das normas entre si.
Já lecionava José Afonso da Silva que toda constituição é feita para ser aplicada. Nasce com o destino de reger a vida de uma nação, construir uma nova ordem jurídica, informar e inspirar um determinado regime político-social. [95] E nesta constante tarefa de interpretação do texto constitucional para sua aplicação e transformação da realidade, ou em sentido contrário, a transformação ou mutação do texto imposta pela realidade, o jurista irá trabalhar com regras que não têm hierarquia, mas sim graus de abrangência diferentes. Desta forma, a interpretação de uma lei poderá ser bastante diferenciada em situações também diferentes, onde seguindo valores fundamentais, princípios aplicáveis a uma situação não poderão ser usados em outra condição.
Linares Quintana formula sete regras que devem ser aplicadas quando do momento da interpretação de normas constitucionais, são elas: a) na interpretação constitucional deve sempre prevalecer o conteúdo teleológico ou finalista da Constituição, que se é instrumento de governo, também e principalmente é restrição de poderes em defesa da liberdade individual; b) a Constituição deve ser interpretada com um critério amplo, liberal e prático; nunca estreito, limitado e técnico, de modo que na aplicação de suas disposições se cumpram cabalmente os fins que a orientam e informam; c) as palavras que a Constituição emprega devem ser entendidas em seu sentido geral e comum, a menos que resulte claramente de seu texto que o constituinte quis referir-se a seu sentido técnico, e em nenhum caso há de supor-se que um termo constitucional é supérfluo ou está demais, senão que sua utilização obedeceu a um desígnio preconcebido dos autores da lei suprema; d) a Constituição deve ser interpretada como um conjunto harmônico, no qual o significado de cada parte deve determinar-se em harmonia com o das partes restantes; nenhuma disposição deve ser interpretada isoladamente, e sempre deve preferir-se a interpretação que harmoniza e não a que coloque em confronto as distintas cláusulas da lei suprema; e) a Constituição, enquanto instrumento de governo permanente, cuja flexibilidade e generalidade lhe permite adaptar-se a todos os tempos e circunstâncias, deve ser interpretada tendo em conta não somente as condições e necessidades existentes ao momento de sua sanção, mas também as condições sociais, econômicas e políticas que existem ao tempo de sua interpretação e aplicação, de modo que nem sempre seja possível o cabal cumprimento dos grandes fins e propósitos que informam e orientam a lei fundamental do país; f) as exceções e os privilégios devem ser interpretados restritivamente; g) os atos públicos se presumem constitucionais enquanto, mediante uma interpretação razoável da Constituição, possam ser harmonizados com esta. [96]
Também Canotilho arrola os princípios que devem reger a atividade do intérprete da constituição, quais sejam: princípio da unidade da constituição, a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições, considerando-a em sua globalidade e harmonizando os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar; princípio do efeito integrador, na solução de problemas jurídica constitucionais deve se dar primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política; princípio da máxima efetividade, a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê; princípio da ‘justeza’ ou da conformidade funcional, o órgão (ou órgãos) encarregado da interpretação da lei constitucional não pode chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido; princípio da concordância ou da harmonização, impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros; princípio da força normativa da constituição, na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve se dar prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia ótima da lei fundamental, dando-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a "atualização" normativa, garantindo, ao mesmo tempo, a sua eficácia e permanência. [97]
4.1 Finalidade
A interpretação da Constituição deve ter sempre em vista certos objetivos, que devem acompanhar a concretização da norma constitucional. Peter Häberle expõe em sua obra que tais objetivos (e tarefas) da interpretação constitucional são a justiça, equidade, equilíbrio de interesses, resultados satisfatórios, razoabildiade, praticabilidade, justiça material, segurança jurídica, previsibilidade, transparência, capacidade de consenso, clareza metodológica, abertura, formação de unidade, "harmonização", força normativa da Constituição, proteção efetiva da liberdade, igualdade social, e ordem pública voltada para o bem comum. [98]
4.2 Conflito de normas
A situação de regras incompatíveis entre si é denominada antinomia. Há três critérios clássicos, apontados por Norberto Bobbio e aceitos quase universalmente, para solução de antinomias: o critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e, por último, o critério da especialidade (lex specialis derogat generali). Assim, no caso de duas regras em conflito, aplica-se um desses três critérios.
No caso de colisão de princípios constitucionais, porém, não se trata de antinomia, [99] vez que não se pode simplesmente afastar a aplicação de um deles. Portanto, não há que se falar em aplicação destes critérios para solucionar eventual colisão de princípios constitucionais. Como assevera Canotilho: "Assim, por ex., se o princípio democrático obtém concretização através do princípio maioritário, isso não significa desprezo da proteção das minorias (...); se o princípio democrático, na sua dimensão económica, exige a intervenção conformadora do Estado através de expropriações e nacionalizações, isso não significa que se posterguem os requisitos de segurança inerentes ao princípio do Estado de direito (princípio de legalidade, princípio de justa indenização, princípio de acesso aos tribunais para discutir a medida da intervenção)". [100]
Também, as práticas político-sociais geram precedentes políticos que interferem no significado de certos preceitos da Constituição. Não é raro que uma prática constitucional introduza regra em desacordo com normas constitucionais.
Em princípio é preciso observar que as forças que provocam a mudança nas constituições podem atuar de duas formas. Primeiramente podem originar uma mudança nas circunstâncias que, de por si, não conduza a qualquer mudança efetiva no texto constitucional mas que, no entanto, faça com que esta signifique algo diferente do usual ou que pertube seu equilíbrio. A segunda e mais patente forma em que tais forças atuam se dá quando estas originam circunstâncias que conduzem a uma modificação na Constituição, seja pelo processo de emenda formal ou através de uma decisão judicial ou do desenvolvimento e estabelecimento de algum uso ou convenção na Constituição. [101]
A concordância prática pode ser enunciada da seguinte maneira: havendo colisão entre valores constitucionais (normas jurídicas de hierarquia constitucional), o que se deve buscar é a otimização entre os direitos e valores em jogo, no estabelecimento de uma concordância prática (praktische Konkordanz [102]), que deve resultar numa ordenação proporcional dos direitos fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão, ou seja, busca-se o melhor equilíbrio possível entre os princípios colidentes. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet: "Em rigor, cuida-se de processo de ponderação no qual não se trata da atribuição de uma prevalência absoluta de um valor sobre outro, mas, sim, na tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas, ainda que no caso concreto se torne necessária a atenuação de uma delas" [103].
Trazemos aqui um exemplo da aplicação do princípio da concordância prática: na Alemanha, em um caso famoso, um sujeito foi preso, por estar sendo acusado de inúmeros crimes de grande repercussão social. Logicamente, a imprensa local pretendia divulgar amplamente a matéria, tendo uma emissora editado um documentário que seria transmitido em horário nobre. Diante desses fatos, o sujeito que havia sido preso aforou uma ação pretendendo impedir os intentos da imprensa sob a alegação de que a divulgação da matéria feriria o seu direito à intimidade e à privacidade, sendo certo que, após a divulgação, seria impossível ao sujeito tornar a ter uma vida normal.
Estaríamos, assim, diante de uma colisão de dois princípios constitucionais: a liberdade de expressão e o direito à intimidade.
O fato foi posto a julgamento, e a Justiça Alemã, utilizando o princípio da concordância prática, assim decidiu: a imprensa poderá, em nome da liberdade de expressão, exibir a matéria. No entanto, visando preservar o direito à intimidade do indivíduo, não poderá citar seu nome completo (mas somente as iniciais), nem mostrar seu rosto (deverá utilizar mecanismos eletrônicos para desfigurá-lo).
Conciliou-se, assim, os princípios da liberdade de expressão e da privacidade. É a concordância prática.
4.3 Interpretação judiciária vinculativa
Já vimos que não há univocidade no texto legal, e que também não há como se determinar qual a melhor, ou mais correta interpretação de dado texto. Logo, não há como se admitir a instituição de mecanismos como a infame súmula vinculante, que vem sendo tema de calorosos debates nos mundos político e jurídico. [104] As súmulas produzidas pelas cortes judiciais, como subprodutos de um ato que nada mais são do que aplicação/interpretação do direito, devem ter como objetivo simplesmente servir de indicativo da corrente de pensamento seguida pelos integrantes da corte à época de sua edição. [105] É difícil crer que uma súmula de, digamos, vinte anos atrás, continue refletindo o entendimento adotado pelos pretores, que certamente já não serão todos os mesmos.
Se assim fosse, uma vez adotada a súmula vinculante, somente seria permitido aos aplicadores/intérpretes do direito modificar seu entendimento após alteração legislativa. Isto seria perverter os princípios da hermenêutica, colocá-la de cabeça para baixo, uma vez que seu objetivo é imprimir dinamicidade à norma estática, atualizando-a, e admitir que somente uma nova regra jurídica autorize aos aplicadores buscar nova interpretação – até que nova súmula seja produzida pelas cortes competentes –, seria inverter tal preceito, sendo que a lei é que passaria a dar dinamicidade à interpretação estática.
Mesmo que se diga que a súmula pode ser alterada ou mesmo revogada. Mas não faz parte de sua própria natureza somente o ser quando houver provocação? [106] E como haver provocação se ao caso regulado por tal súmula não será dado acesso ao órgão superior? Mesmo que seja criado um mecanismo independente de questionamento, visando a revogação ou reformulação de alguma súmula, tal como previsto no §2º, do art. 103-A, da CF, estaria castrado, ferido de morte, poder-se-ia até dizer, todo o objeto e finalidade da hermenêutica, pois amarrá-lo a um procedimento especial, vincular a ação do intérprete a uma norma, determinando como deve agir, seria demasiado retrocesso, uma perda muito maior para o conhecimento jurídico do que o ganho para os tribunais ao verem sua carga de trabalho reduzida. O diálogo jurídico até então existente, daria espaço para um monólogo, um monólogo não longe do autoritarismo despótico.
Do mesmo modo, defendemos a não recepção do procedimento previsto nos artigos 179-187 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, promulgado sob a égide da ditadura militar, que tratam de interpretação da lei. Tal instituto regula a chamada interpretação prévia de lei ou ato normativo, onde se prevê que o Procurador Geral da República poderá submeter, por meio de representação, o exame de lei ou ato normativo federal ou estadual, sendo que a decisão obtida ao final tem efeito vinculante. [107]
A simplificação dos processos de aplicação da lei à realidade social, são decorrentes de práticas autoritárias e burocráticas onde a vontade do administrador, e os atos por ele praticados passam a ter maior importância do que a vontade constitucional.
Nos sistemas jurídicos de direito não escrito, é compreensível que do julgamento de cada case se extraia critério para julgamentos futuros, na busca de alguma estabilidade e segurança suficiente para a confiança no próprio direito. Onde se tem direito escrito, todavia, isso não é necessário, nem é aconselhável que os tribunais estratifiquem tanto a sua orientação em torno de teses, que a dinâmica do direito fique trancada. Pela via da apreciação judiciária de casos concretos, é lícito esperar a evolução do próprio direito, segundo a dinâmica social e evolução das perspectivas axiológicas. [108]
O Brasil já possuiu uma única interpretação constitucional admissível obtida quando do pronunciamento da Corte constitucional pátria em representações interpretativas (EC nº 7/77), vigentes sob a Constituição anterior. Atualmente, nem mesmo nos pronunciamentos em sede concentrada de constitucionalidade dão uma interpretação constitucional unívoca, já que os objetivos das referidas ações é tão somente inferir se uma determinada lei ou ato normativo é, por meio de interpretação constitucional compatível ou não com a Constituição, sem que isto implique uma única e unívoca leitura do texto constitucional. [109]
Lênio Luiz Streck ressalta que o Judiciário brasileiro não é lento porque as súmulas não vinculam os juízos inferiores, mas, sim, porque reveste-se de um estrutura arcaica e burocrática, despida de qualquer planejamento administrativo e permeada por uma imaginário conservador, fruto de uma fortíssima crise de paradigma pela qual passa a dogmática jurídica. [110]
Já dizia Karl Larenz que "nem a regra é jamais tão inequívoca e exatamente precisa, que não fossem possíveis dúvidas sobre sua aplicabilidade a este ou àquele caso determinado", e que "nem existe na lei, a par de cada caso que acontece, uma regra que lhe possa fazer jus." Acrescenta ainda que em tais casos o juiz "interpreta a regra, restringindo-a ou estendendo-a; encontra uma nova regra, que resulta no nexo de sentido da ordem jurídica, das idéias básicas da lei ou de uma decisão precedente, dos critérios de valor já reconhecidos na ordem jurídica ou na consciência geral". [111]
Sobre a problemática da única interpretação possível, ou da melhor interpretação, ou da verdadeira interpretação, temas tão caros à segurança jurídica e à própria vida em sociedade, lembra-se que caminham essas concepções conjuntamente com a corrente doutrinária que ainda vê no aplicador da lei um mero autômato. Além disso, embora todo o ordenamento jurídico esteja voltado a oferecer a necessária segurança e estabilidade nas relações humanas, o certo é que não é a segurança jurídica o primado último do Direito. Certamente acima dele encontram-se outros objetivos. Dentre estes, destaque-se, em especial, o princípio da justiça. Este, de acordo com a doutrina mais moderna, enquadra-se dentro dos chamados princípios gerais de Direito, e tem aplicação ampla entre os diversos campos em que esta se divide. A própria segurança jurídica busca a realização da justiça. Na medida em que não houver nenhuma segurança, é praticamente certa a ausência também da justiça. O que ocorre é que nem todo o Direito seguro será inexoravelmente um Direito justo. Reconhece-se, pois, que o princípio da segurança jurídica exerce um papel mínimo, posto que sem ele não será possível realizar os demais elementos, tais como a justiça, a liberdade, a igualdade, etc.. [112]
A independência dos órgãos judiciários, que hoje pode ser aceita como um dogma, está na própria essência do Poder judiciário. O juiz submete-se unicamente à sua convicção; não se lhe pode solicitar explicações quanto àquilo que haja decidido; não são obrigados a aceitar decisões de outros juízes e tribunais, valendo estas, única e exclusivamente, pelo poder de persuação que gozem, nunca como precedentes autoritários, em nosso sistema constitucional, salvo, é certo, exceções constitucionalmente expressas, tal como o resultado da ação direta de constitucionalidade (EC 3). [113]
4.4 Inconstitucionalidade da norma
A princípio, não cabe ao Poder Judiciário anular uma lei quando puder de alguma maneira preservá-la em nosso ordenamento jurídico num dos sentidos que ela comporte e que esteja em consonância com a Lei Maior. Sempre que possível, a norma deve ser interpretada de maneira a ser dotada de eficácia, só devendo ser declarada a sua inconstitucionalidade e conseqüente banimento do ordenamento jurídico como última ratio, quando a inconstitucionalidade do dispositivo em questão for flagrante e incontestável. Nesse sentido, a interpretação conforme a Constituição funciona como um fator de autolimitação da atividade do Poder Judiciário que acaba por respeitar à atuação dos demais Poderes, Legislativo e Executivo, e conseqüentemente a obedecer ao princípio da separação dos poderes. Fica vedado, contudo, ao Poder Judiciário colocar normas em vigor, restando-lhe apenas a tarefa de afastar da vigência aquelas leis que contrariem frontalmente as normas superiores do ordenamento jurídico. [114]
Cumpre advertir que o princípio da interpretação conforme a Constituição não contém em si uma delegação ao Tribunal para que realize uma melhoria ou um aperfeiçoamento da lei, pois qualquer alteração ao conteúdo da norma, mediante a alegação de pretensa interpretação conforme a Constituição representa uma intervenção mais direta no âmbito de competência do legislador do que a própria pronúncia de inconstitucionalidade e conseqüente nulidade da norma jurídica em questão, uma vez que a Constituição Federal assegura ao Poder Legislativo a prerrogativa de elaborar uma nova norma em conformação com a Carta Maior. O princípio da interpretação conforme a Constituição encontra seus limites na própria literalidade da norma, ou seja, não é permitido ao intérprete inverter o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador. Isso significa que na busca de se salvar a lei não é permitido aos Tribunais fazer uma interpretação contra legem, é dizer, não é permitido ao Poder Judiciário exercer a função de legislador positivo, que é competência precípua do Poder Legislativo. Trata-se aqui de uma interpretação minuciosa que fica entre dois caminhos: o da constitucionalidade e o da inconstitucionalidade. E, por estar nessa linha limítrofe é que o Poder Judiciário pode conferir à norma em exame uma interpretação constitucional, e afastar assim os inconvenientes advindos da declaração de inconstitucionalidade e seu conseqüente banimento do ordenamento jurídico. [115]
Celso Ribeiro Bastos aponta que o temor, ou prudência, em declarar dada lei inconstitucional deu origem às modernas formas de interpretação constitucional, que visam manter a norma no ordenamento jurídico tendo como fundamento o princípio da economia, da segurança jurídica e da presunção de constitucionalidade das leis adquirida com a promulgação e como escopo a busca de uma interpretação que compatibilize a norma tida como "inconstitucional" com a Lei Maior. Parte-se da idéia de que a inconstitucionalidade da norma dará lugar a um vazio legislativo, que poderá produzir sérios danos no ordenamento jurídico. Portanto, procura-se evitar a decretação de nulidade do texto legal tendo em vista os possíveis inconvenientes que poderão surgir, pois a interrupção brusca da vigência de uma lei, sem ter transcorrido tempo suficiente para que se coloque outra em seu lugar geraria um vazio normativo. [116]
O Ministro Gilmar Ferreira Mendes defende a possibilidade de haver ‘declaração de constitucionalidade de norma em trânsito para a inconstitucionalidade’, considerando que determinada lei, em virtude de circunstâncias de fato, pode vir a ser inconstitucional, não o sendo, porém, enquanto essas circunstâncias de fato não se apresentarem com a intensidade necessária para que se tornem inconstitucionais. Nos é dado o exemplo da decisão do STF, cujo relator foi o Ministro Sydney Sanches, onde foi decidido que a inconstitucionalidade do §5º do art. 1º da Lei 1060/50, acrescentado pela Lei 7871/89, não deveria ser reconhecida no ponto em que confere prazo em dobro para recurso às Defensorias Públicas, ao menos até que sua organização, nos estados, alcance o nível da organização do respectivo Ministério Público. O Ministro Moreira Alves, em seu voto, caminhou no mesmo sentido defendendo que a desigualdade de tratamento se justifica na circunstância de as Defensorias Públicas não se encontrarem tão bem aparelhadas como o Ministério Público. [117]
Quanto à chamada ‘declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade’, defendida por conceituados juristas, não vemos motivo para a sua sustentação, uma vez que a razão que nos é dada para a sua aplicação é evitar o vazio normativo, mantendo a norma inconstitucional no sistema normativo, mas tirando dela toda sua eficácia. Ora, se tal texto não pudesse ser aplicado, tivesse toda sua eficácia retirada, não produzindo efeito algum, é o mesmo que se não existisse. Se a lei permanece integrando o sistema, permanece dotada de eficácia, podendo muito bem vir a ser aplicada em caso concreto. Fala-se ainda de adotar este método quando for caso de inconstitucionalidade por omissão. A inconstitucionalidade está na mora do legislador e não na inexistência da regulamentação exigida pelo texto constitucional, não havendo que se declarar nulidade de nada. [118]