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Estudos sobre interpretação constitucional

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12/10/2006 às 00:00
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Os textos legais são meras representações gráficas de ordens de conduta na sociedade, aptas a regular relações intersubjetivas. Diferentemente, as anotações doutrinárias e jurisprudenciais em uma lei são interpretações.

1. NOTAS DE INTRODUÇÃO

Toda norma jurídica é objeto de interpretação, seja a lei escrita (seu campo mais freqüente), seja a decisão judicial, seja o direito consuetudinário, seja o tratado internacional. [01] Assim, a norma costumeira, a jurisprudência, os princípios gerais de direito podem, e devem, ser interpretados, para se esclarecer o seu real significado e alcance. [02] Mas vamos nos ater ao objeto deste trabalho monográfico que é a interpretação da norma constitucional.

A interpretação legal é responsável pela criação da norma e sua evolução. Toda lei enseja interpretação, e o processo hermenêutico tem, sem dúvida, relevância superior ao próprio processo de elaboração legislativa, uma vez que será através da interpretação da lei que esta será aplicada e inserida dentro de um contexto fático específico, sendo adequada a toda uma realidade histórica e os valores dela decorrentes.

Tecendo analogia entre a interpretação musical e a judicial Cássio Scarpinella diz que a música é aquela que se ouve ao vivo, naquele dia, naquela hora, naquele momento. Impossível ouvi-la gravada. E isso porque a interpretação da música relaciona-se de maneira intrínseca com o momento em que é executada. A acústica da sala, a predisposição dos músicos, da platéia, do próprio maestro. A música realiza-se em concreto; nunca em abstrato. A música não corresponde àquelas bolinhas, brancas ou pretas, com ou sem hastes, nas cinco linhas chamadas de pentagrama. Não é, também, o disco que se comprou em determinada loja. Música é aquela que se ouve na sala de concerto. Com os defeitos e as qualidades inerentes a uma interpretação ao vivo. [03] As leis não são somente aquilo que consta dos ‘Códigos’; não são sinônimos dos textos que as reproduzem, mesmo quando recém-publicadas no Diário Oficial. Não são as leis aquilo que os ‘Códigos’ ou suas meras reproduções gráficas dizem que elas, leis, são. [04]

Os textos legais são meras representações gráficas de ordens de conduta na sociedade, aptas a regular relações intersubjetivas. Diferentemente, as anotações doutrinárias e jurisprudenciais em uma lei são, assim como a música que ouvimos, interpretações. E, como toda interpretação, sujeita a um momento específico, que é a combinação de vários e diversos elementos – voluntários ou involuntários – interagindo sobre ela. Resultado dessa combinação e interação de elemento? Diferenças e distinções de resultados em igual proporção às interpretações. A lei e o direito dependem de sua interpretação se realizarem. [05] Sem interpretação, direito (norma jurídica) não há; só texto.

Iniciaremos este trabalho com uma breve introdução à hermenêutica, procurando estabelecer uma distinção entre esta e a interpretação. Em seguida discorreremos sobre a interpretação em si, suas escolas, seus métodos. Somente então adentraremos com maior atenção na interpretação constitucional propriamente dita, expondo algumas de suas características, e enfrentando algumas questões de relevância.

Não temos a pretensão de exaurir os tópicos aqui abordados, e muito menos de abordar todos os tópicos abrangidos pelo tema. Como o próprio título indica, pretendemos apenas traçar linhas gerais, tratando dos assuntos que entendemos ser mais pertinentes ou importantes na atualidade, procurando deixar de lado questões bizantinas ou já superadas.


2. HERMENÊUTICA JURÍDICA

Hermenêutica – do grego hermeneutiké, scilicet téchne, a arte de interpretar [06] – deriva de Hermes, deus grego, filho de Zeus e da ninfa Maia, a quem, dentre suas diversas atribuições, cabia servir de arauto dos olímpicos, intermediário entre homens e deuses, intérprete da vontade divina.

Inicialmente, hermenêutica pode ser definida, adotando-se um enfoque mais tradicional, como a ciência da interpretação das fontes documentais. Tendo por fim fazer compreender um texto na sua verdade, em toda a sua força expressiva.

Podemos dizer ainda que a hermenêutica é uma arte que visa o indispensável entendimento da lei, sendo formada de regras e técnicas próprias, que variam do simples ao complexo, desde a indagação pelo intérprete quanto à vontade legislativa, através dos termos escritos em que é redigida a norma, até às investigações sociológicas mais profundas. Escolas e métodos de interpretação disputam as preferências, inspirados em idéias fundamentais diferentes, e mediante o emprego de técnicas e processos diversos. O que todos procuram é o entendimento da norma a ser aplicada, espraiando-se com maior ou menor desenvoltura na pesquisa, ou prendendo-se à mais acanhada elaboração mental.

Nas palavras de Celso Bastos, a hermenêutica se trata de conjunto de regras sobre regras jurídicas, de seu alcance, sua validade, investigando sua origem, seu desenvolvimento, etc., preordenando-se a uma atividade ulterior de aplicação, existindo autonomamente do uso que depois se vai fazer deles. Conclui afirmando que a hermenêutica é a responsável pelo fornecimento de subsídios e de regras utilizados na atividade interpretativa. [07]

Para José Lamego, a hermenêutica é o rompimento do hermetismo do universo dos signos, abrindo o texto e o discurso ao mundo. Para a hermenêutica, o intérprete não ‘descodifica’ apenas um sistema de signos, mas ‘interpreta’ um texto. Subjacente a este conjunto de idéias está a rejeição pela hermenêutica de uma concepção de linguagem com função meramente instrumental – a linguagem como ‘signo’ ou mera ‘forma simbólica’ – considerando-a, ao invés, como uma instituição social complexa. As expressões têm sentido apenas no contexto dos distintos jogos de linguagem, que são complexos de discurso e de ação. A aprendizagem de uma linguagem natural implica a participação em práticas e a comparticipação de critérios que regem o seu desempenho. A gramática da linguagem só poderá ser elucidada de dentro, a partir do conhecimento das regras constitutivas do jogo e não mediante apelo a metalinguagens. [08]

Na definição de Carlos Maximiliano, é o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito; é a teoria científica da arte de interpretar. [09]

2.1 Distinção entre hermenêutica e interpretação

Pode-se dizer que interpretar [10] é atribuir [11] um sentido ou significado a signos ou a símbolos, dentro de determinados parâmetros. A linguagem normativa não tem significações unívocas.

Ainda que o texto não apresente ambigüidades de qualquer natureza, ainda assim a atividade interpretativa se faz necessária por outros motivos. Ao intérprete cabe mediar o que está para ser interpretado (objeto da interpretação) e os destinatários do objeto interpretado.

A doutrina não é uníssona quanto à existência de uma distinção entre hermenêutica e interpretação. Para alguns se tratam de sinônimos. E há os que entendam que a interpretação é inteiramente submissa às normas da hermenêutica, que seria formada apenas pelas normas que regem a atividade interpretativa, mas não pela interpretação em si mesma. Sendo que para estes é certo afirmar o caráter científico da hermenêutica.

Neste mesmo sentido escreve Carlos Maximiliano, defendendo que a interpretação nada mais é que a aplicação da hermenêutica, sendo esta um ramo da ciência dedicado ao estudo e determinação das regras que devem presidir o processo interpretativo de busca do significado da lei, e não a sua aplicação, a busca efetiva deste significado em cada caso, sendo mais ampla que a interpretação e se situando em um momento lógico anterior. A hermenêutica é a teoria da arte de interpretar. [12]

A interpretação é a atividade que procura imprimir uma vontade ao texto a ser interpretado, de modo que esse possa incidir no caso concreto. Para os que não vêem distinção entre hermenêutica e interpretação não haveria duas realidades diversas, pois eles acentuam o caráter artístico da hermenêutica, no sentido de uma manipulação para imprimir o seu conteúdo na lei. Esta, portanto, não seria erigida como ciência. [13]

Nas palavras de Emilio Betti, a hermenêutica seria uma teoria geral da ciência do espírito que engloba o estudo da atividade humana de interpretar, estando a interpretação jurídica dentro de uma Hermenêutica Geral. [14] Havendo quem entenda que tal distinção não tem qualquer aplicação prática. [15]

Enfim, o hermeneuta oferece os enunciados que servirão à interpretação. O intérprete os toma como um dado prévio, e deles se utilizará segundo sua arte interpretativa.


3. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

A lei, como fonte essencial do direito, exprime em linguagem a palavra de comando, que deve então ser captada pelo aplicador, o que exige o trabalho de entendimento de seu conteúdo. Na sua finalidade normativa de comportamento, a lei abraça a atividade social e regula as ações humanas segundo o paradigma corrente ao tempo de sua votação, mas tem ainda um sentido de previsibilidade natural, que na direção do futuro, pretende conter a normação das relações jurídicas e se empreender no tempo vindouro.

A interpretação é uma atividade criadora. Em toda a interpretação existe, portanto, uma criação de direito. Trata-se de um processo no qual entra a vontade humana, onde o intérprete procura determinar o conteúdo exato de palavras e imputar um significado à norma. Nesse sentido, a interpretação é uma escolha entre múltiplas opções, fazendo-se sempre necessária por mais bem formuladas que sejam as prescrições legais. A atividade interpretativa busca, sobretudo, reconstruir o conteúdo normativo, explicitando a norma em concreto em face de determinado caso. Pode-se afirmar, ainda, que a interpretação é uma atividade destinada a expor o significado de uma expressão, mas pode ser também o resultado de tal atividade.

Para Hans Kelsen, a interpretação é uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. [16]

De forma semelhante, para Caio Mário da Silva Pereira a interpretação da lei, como processo mental de pesquisa de seu conteúdo real, permite ao jurista fixá-lo tanto em relação com a forma do comando contemporâneo de seu aparecimento como ainda nas situações que o desenvolvimento das atividades humanas venha a criar, que embora inexistentes quando de sua elaboração, são suscetíveis de subordinação à sua regra em tempo ulterior. Esta pesquisa da vontade legal, que, de tão importante e construtiva, não falta quem classifique como última fase da elaboração normativa, sob fundamento de que a lei contém na verdade o que o intérprete nela enxerga, ou dela extrai, afina em essência com o conceito valorativo da disposição, e conduz o direito no rumo evolutivo que permite conservar, vivificar e atualizar preceitos ditados há anos, há décadas, há séculos, e que hoje subsistem somente em função do entendimento moderno de seus termos. Para o ilustre mestre, só o esforço hermenêutico pode dar vida ao nosso Código Comercial, publicado em 1850, diante da complexidade da vida mercantil de nossos dias; só pela atualização do trabalho do intérprete é possível conceber-se o vigor do Code Napoleón, que vem de 1804, ou a sobrevivência dos cânones da Constituição americana, que é de 1787. E exatamente por ser a hermenêutica a arte de rebuscar aquele sentido vivo do preceito, é que a interpretação realiza a vivência permanente da disposição legal por um tempo que largamente se distancia do momento em que nasce. [17]

O programa normativo não é apenas a soma dos dados lingüísticos normativamente relevantes do texto, captados a nível puramente semântico. Outros elementos a considerar são: a sistemática do texto normativo, o que corresponde tendencialmente à exigência de recurso ao elemento sistemático; a genética do texto; a história do texto; a teleologia do texto. Este último elemento "teleologia do texto normativo" aponta para a insuficiência da semântica do texto: o texto normativo quer dizer alguma coisa a alguém e daí o recurso à pragmática. As palavras e expressões do texto da norma constitucional (e de qualquer outro texto normativo) não têm significado autônomo, em si, se não se tomar em conta o momento de decisão dos juristas e o caráter procedimental da concretização de normas. [18]

Para Gadamer, a interpretação do texto equivale a um diálogo entre o autor e o intérprete sobre aquilo que no texto é mencionado. Nesse diálogo o intérprete apropria-se do discurso expresso no texto e prossegue a elaboração intelectiva do objeto feita pelo autor. Ao retomar a noção da hermenêutica de applicatio, Gadamer tem em vista a interpretação que constitui um aditamento de sentido: todo o ato de interpretação constitui um aditamento de sentido ao texto. [19]

A aplicação do Direito consiste em enquadrar um caso concreto à norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras palavras: tem por objeto criar o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano. [20]

O objetivo primeiro da interpretação deverá ser a criação de condições para que a norma interpretada tenha eficácia sempre no sentido da realização dos princípios e valores constitucionais, e principalmente, sempre, da ideologia constitucionalmente adotada.

Toda norma jurídica tem de ser interpretada, porque o direito objetivo, qualquer que seja a sua roupagem exterior, exige seja entendido para ser aplicado, e neste entendimento vem consignada a sua interpretação. Inexato é, portanto, sustentar que somente os preceitos obscuros, ambíguos ou confusos, exigem interpretação, e que a clareza do dispositivo a dispensa, como se repete no velho aforismo "in claris cessat interpretatio". E já em Roma era esse o entendimento, havendo inclusive brocardo rezando que: embora claríssimo o edito do pretor, contudo não se deve descurar da interpretação respectiva. [21]

Poder-se-á dizer que o esforço hermenêutico é mais simples ou mais complexo, conforme a disposição seja de entendimento mais ou menos fácil, pois que sustentar a clareza do preceito é já tê-lo entendido e interpretado, tanto mais quanto a própria clareza é em si muito relativa, dependendo do grau de acuidade de quem o lê ou aplica, de seus conhecimentos técnicos, de sua experiência. Há sempre necessidade de investigar a essência da vontade legislativa, não apenas na exteriorização verbal, mas naquilo que é a sua força interior e o poder de seu comando. Interpretar não é tão-somente contentar-se com o que a letra da lei revela, pois que, na sociedade animada pela civilização jurídica, a fórmula sacramental perdeu a validade que era o seu prestígio num estágio primitivo, em que dominava a escravidão da forma. Por isso mesmo já o romano sentenciava que saber as leis não é conhecer-lhes palavras, mas a força e o poder [22]. [23]

Hans Kelsen, ao dissertar sobre a necessidade da ação do intérprete, ressalta a indeterminação do ato de aplicação do direito, que pode dizer respeito tanto ao fato (pressuposto) condicionante como à consequência condicionada. Kelsen aponta não só a indeterminação não-intencional – como é o caso da não univocidade do sentido verbal da norma, a discrepância entre vontade e expressão tão natural tanto na lei como nos negócios jurídicos – mas também casos de indeterminação intencional, como quando a lei confere discricionariedade ao aplicador do direito. Havendo ainda indeterminação do ato jurídico a pôr como consequência do fato de duas normas, que pretendem valer simultaneamente, contradizerem total ou parcialmente. [24]

Através de processo lógico o intérprete procura estabelecer a vontade da lei, que não é, necessariamente, a vontade do legislador. A lei deve ser considerada como entidade objetiva e independente e a intenção do legislador só deve ser aproveitada como auxílio ao intérprete para construir o sentido da norma jurídica. Na interpretação se deve desenhar o exato alcance e real significado da norma. Deve-se buscar a vontade da lei, não importando a vontade de quem fez. [25]

Ao fixar o sentido e o alcance das normas jurídicas o intérprete não atua como um autômato, fazendo simples constatações. Seu papel não é o de revelar algo que já existia com todos os seus elementos e contornos. A interpretação do Direito exige, de certa forma, criatividade. Ao interpretar os textos jurídicos o intérprete não se vincula à vontade do legislador, pois o moto-contínuo da vida cria a necessidade de se adaptar as velhas fórmulas aos tempos modernos. [26]

Quanto ao resultado obtido pela ação do intérprete, diz Kelsen que se por interpretação se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento de várias possibilidades que existem dentro desta moldura. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral. [27]

Ainda para Kelsen, a idéia de que a determinação do ato jurídico a pôr, não realizada pela norma jurídica aplicanda, poderia ser obtida através de qualquer espécie de conhecimento do Direito preexistente, é uma auto-ilusão contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de uma interpretação. [28]

A questão de saber qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a "correta", não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema da teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). [29] Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas. [30]

Kelsen não repugna totalmente a ficção de que uma norma jurídica apenas permite uma só interpretação: a interpretação "correta". Ele reconhece que tal ficção de univocidade possui certas vantagens políticas, como a busca da consolidação da segurança jurídica. Mas segue afirmando enfaticamente que nenhuma vantagem política pode justificar que se faça uso desta ficção numa exposição científica do Direito positivo, proclamando como única correta, de um ponto de vista científico objetivo, uma interpretação que, de um ponto de vista político subjetivo, é mais desejável do que uma outra, igualmente possível do ponto de vista lógico. [31]

A interpretação não pode ser considerada um ato isolado, mas correlacionado, sem o que não haveria ordem jurídica, na medida em que cada intérprete pudesse, sem fronteiras, impor a sua opção motivada por fatores subjetivos condicionados a fatores os mais diversos, até mesmo psicológicos. A correlação se daria em função do sistema jurídico operante, limite da liberdade interpretativa. [32]

Porém, o ato interpretativo não deve ser puramente formal sob pena de se distanciar da realidade da vida, mas não pode ser, também, exclusivamente subjetivista, sob os mesmos riscos. Há um conjunto de valores presentes nos ordenamentos jurídicos e que servem de faróis que guiam a trajetória do intérprete. [33]

Temos, portanto, que a qualidade do direito será proporcional à qualidade da técnica legislativa somada à qualidade da intervenção do intérprete ao aplicar a norma.

Eros Roberto Grau alerta para o equívoco de que se interpreta norma. O que se interpreta é o texto normativo, e desta interpretação resulta a norma. A interpretação é, pois, atividade que se presta a transformar textos em normas. Daí, o ordenamento ser um conjunto de interpretações, isto é, um conjunto de normas.

O conjunto de textos é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. [34]

Para Grau, o intérprete não cria literalmente a norma. Ele não é um criador ex nihilo; ele produz a norma no sentido de reproduzi-la. O produto da interpretação (a norma) já se encontra potencialmente no invólucro do texto normativo. E se encontra assim apenas parcialmente, porque os fatos também a determinam, pois a norma é produzida pelo intérprete a partir de elementos que se desprendem do texto (mundo do dever-ser) e de elementos do caso ao qual será aplicada (mundo do ser). [35]

A interpretação do direito tem caráter constitutivo – e não meramente declaratório – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma de decisão [36]. Interpretar é dar concreção (=concretizar) ao direito. A interpretação (=interpretação/aplicação) opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção na vida. [37]

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3.1 Escolas de interpretação

O direito romano, a princípio, não se valia senão dos elementos literais, restringindo a interpretação à procura do que se achava fixado na palavra. Este apego à forma é natural em todos os povos que atravessam fase menos desenvolvida de sua evolução, não apenas no tocante ao direito, mas a todas as manifestações de inteligência. Somente quando o romano atingiu mais adiantado grau de cultura, ao alcançar o estágio de plenitude de seu florescimento, e conseguiu expressar-se na criação de conceitos abstratos, pôde formular regras de hermenêutica sob a dominação do elemento lógico, e assentou, então, que a interpretação é algo mais do que conhecimento literal da linguagem da lei, por envolver também a perquirição da sua força e da sua vontade. [38]

O fenômeno se repetiu da Idade Média: com a recepção do direito romano, coetânea da escola de Bolonha, os juristas partiram do pressuposto da perfeição técnica dos seus princípios e dotados os textos duma espécie de infalibilidade, limitavam-se a explicar literalmente as regras, logo passando à glosa, espécie de comentário marginal ou interlinear sob vinculação dominadora da expressão linguística. Com Irnério e seus seguidores, formou-se a escola denominada exegética. Mais tarde, quando os estudos jus-romanísticos se desenvolveram iluminados pelo espiritualismo cristão e influenciados pela filosofia escolástica, a técnica do comentário se apurou, e os pós-glossadores (Cino di Pistola, Bártolo, Accursio) desceram mais a fundo, impregnando os seus comentários de cogitações científicas mais desenvolvidas.

Na obra de Cujacio, já liberada da glosa, encontram-se a exposição e o estudo do direito romano sem a escravização à letra do texto, porém mais sabiamente planejada. [39]

3.1.1 Escola exegética

Promulgado o Código Civil francês em 1804, criou-se uma escola de interpretação [40] que se deixou encantar pelas excelências do Code Napoleón, parecendo aos seus corifeus que nada mais seria possível fazer em matéria de elaboração legislativa, pois esse monumento seria a palavra derradeira, a expressão máxima da civilização jurídica ocidental. Seus comentaristas se deixaram dominar por esta idéia preconcebida, corroborada pela convicção de que o Código era o triunfo da razão, filho do pensamento racionalista que o movimento enciclopedista do século XVIII havia difundido.

Toda a chamada escola exegética, ou dos intérpretes do Código Civil, consolidou a idéia de que a hermenêutica deve consistir na explicação da lei escrita, subordinando toda a técnica interpretativa à regra de que não pode haver direito fora da lei. Interpretar é indagar a vontade do legislador, a intenção do legislador, a mens legislatoris, não podendo o jurista desprender-se do texto. A lei é a fonte exclusiva do direito e na sua palavra está expressa a soberania legislativa. Ao entendimento da norma não devem contribuir quaisquer fatores extrínsecos, nem há cogitar das necessidades econômicas ou sociais, como não podem penetrar idéias renovadoras, nem a inspiração da equidade, nem o conceito abstrato de boa-fé.

A hermenêutica, como processo lógico, cinge seu trabalho às construções silogísticas, para as quais os elementos básicos situam-se na própria lei, de que a interpretação é apenas uma conclusão necessária, como a demonstração de um teorema em matemática.

Erigido o mito da lei, o fetichismo da lei, e assentado que esta é, ao mesmo tempo, a expressão do Estado soberano e a construção lógica do legislador perfeito, todo o trabalho do intérprete é enfeixado na concepção de que acima de tudo está o texto, continente do direito, do qual não pode o jurista fugir. O juiz não aplica o direito, aplica a lei, e, como esta é concretizada na forma escrita, seu entendimento mora na sua expressão vocabular. [41]

3.1.2 Escola científica (do direito livre)

Em oposição à corrente exegética se levanta Bufnoir, seguido de Saleilles, mais profundamente com François Gény, ao mesmo tempo em que na Alemanha, Ehrlich, e mais filosoficamente Stammler, a partir do século XIX, difundindo-se a tese de que o direito não está congelado no texto, e, ainda, que a lei não é a sua fonte exclusiva. A ciência jurídica deve dobrar-se às exigências da vida, amoldando-se a norma aos fatos novos. A lei, redigida em atenção aos acontecimentos e injunções que lhe são contemporâneos, tem de receber uma interpretação capaz de abranger o que surgir depois. Uma vez votada, desprende-se de quem a redigiu, para ter existência própria. Interpretar a lei não é perquirir o que quis o legislador. O que é, na verdade, o legislador? Elaborada a lei pelas assembléias competentes, ela se despersonaliza, resultando a norma não como expressão do que alguém disse ou quis, mas como a manifestação de uma vontade coletiva, mas indagar o que objetivamente aparece na própria lei, o que se contém nela. Interpretar um texto legal não é pesquisar o que foi o pensamento dos seus autores há 10, 50, 100 atrás, mas apurar o que seria este mesmo texto, se tivesse sido redigido hoje. A hermenêutica não se compraz com a indagação de uma hipotética intenção, mas tem de jogar com os mandamentos da justiça e da razão, tem de iluminar a lei com um sentido liberal e humano, e cogitar da realidade social ambiente. [42] Diz Lega y Lacambra que só se poderia cogitar a vontade do legislador, porque a lei não possui vontade e ainda pregava a quebra do mito da mens legislatoris, pois não se sabe o que quis o legislador, senão através do sistema da ordem jurídica. [43]

A norma jurídica é votada com uma finalidade social; logo, a sua interpretação deve ser dominada pela pesquisa daquele objetivo. Mas, por outro lado, se a lei é a principal fonte do direito, não é a única, o que impõe ao aplicador a indagação da força criadora da jurisprudência, dos costumes, da equidade. O fator psicológico não pode ser delgado, em razão do conteúdo de utilidade social do dispositivo interpretando.

Dentro desta mesma linha de raciocínio, na Alemanha, Kohler, Windscheid, Bülow sustentam que o intérprete deve extrair da lei as consequências atuais, mesmo aquelas que não podiam ter estado presentes à mente do legislador.

A escola hermenêutica moderna veio criar, então, a idéia da livre investigação científica, que os adversários preferiram cognominar de escola do direito livre (Freiesrecht), que culminou no combate à idéia da mens legis como finalidade da interpretação. A melhor forma de aplicar a lei é adaptá-la às necessidades do caso, conforme o arbítrio do juiz, desprendido este do conceito de que a lei seja todo-poderosa, idéia que substitui pela concepção de uma elaboração constante do direito sob a injunção realista da sua criação permanente, para a qual o juiz contribui com a sua experiência e a captação das influências nascidas das forças sociais em constante desenvolvimento, armado do poder de construir ou criar o direito. Mais recentemente tem surgido o conceito de "direito alternativo", que, a modo do Freiesrecht, sustenta a liberdade judicante à vista apenas dos fatos, o que pode conduzir à plena subversão da ordem constituída.

A escola da interpretação científica suscitou polêmicas intermináveis, e críticas severas, dirigidas no sentido de ter incorrido nos mesmos erros da hermenêutica tradicional (exegética). Se esta peca por um excessivo subjetivismo da vontade do legislador, não menos falha é aquela quando pretende substituí-lo por um exagerado subjetivismo do juiz, sem controle e sem limites.

Diante desta divergência de conceitos, e da própria inconsistência dogmática da escola científica, cujos maiores adeptos não se põem de acordo no definir até onde vai a livre indagação, qual seria a posição real do intérprete?

Há procedência na crítica dirigida à escola tradicional (exegética), especialmente no seu excesso de amor ao texto, à intenção e à vontade do legislador, e na idéia preconcebida de negar sistematicamente todas as outras fontes do direito além da lei. Há procedência, igualmente, na crítica à escola da livre indagação científica, ou de direito alternativo, principalmente em razão de instituir certa instabilidade decorrente da maior dose de arbítrio conferida ao aplicador, a pretexto de interpretar a lei. A posição correta do intérprete há de ser uma posição de termo-médio. Sem negar a supremacia da lei escrita como fonte jurídica, pois nisto está a idéia fundamental do ordenamento jurídico regularmente constituído, deverá tomar da escola científica a idéia de que a lei é um produto da sociedade organizada, e tem uma finalidade social de realizar o bem comum. A pretexto de interpretar, não pode o aplicador pender para o campo arbitrário de julgar a própria lei, de recusar-lhe aplicação ou de criar um direito contrário ao seu texto. Se interpretar a lei não é indagar o que alguém disse, mas o que está objetivamente nela consignado, e se na omissão do texto devem-se invocar as forças criadoras dos costumes sociais, da equidade, da jurisprudência, das necessidades sociais – a sua aplicação há de atender à sua finalidade social e às exigências do bem comum. Nem o fetichismo da lei e a proclamação da sua perfeição como obra completa de um legislador todo-poderoso e onisciente, nem o excesso oposto do direito livre. Partidário e mesmo iniciador do movimento científico da moderna hermenêutica, intitulado método histórico evolutivo, já Saleilles precisava, numa fórmula sucinta ("Au delà du Code Civil, mais par le Code Civil"), um pensamento moderado, em cujo desenvolvimento o intérprete avança além da lei, mas sem perdê-la de vista. [44]

Nesta mesma linha moderada, inscreve-se o Código Civil suíço (Art. 1º), o qual, sem render excessiva homenagem ao texto, sustenta o primado da lei, em cuja omissão, porém, arma o juiz de poderes criadores. Numa linha de equilíbrio, a que se filiou o art. 5º da nossa Lei de Introdução ao Código Civil; inspirado pela modernização da hermenêutica, o intérprete há de buscar o entendimento real da norma jurídica em função da sua utilidade e da sua adaptação às injunções da vida social contemporânea de sua aplicação e, quando autorizado o juiz a decidir por equidade, aplica uma norma que estabeleceria se fosse legislador (CPC/39, art. 114). Orientação idêntica vem consignada no Anteprojeto da Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas, cujo art. 2º invoca a inspiração do bem-comum, da justiça social e da equidade. [45]

3.1.3 Escola histórica

Em fins do século XIX surge uma nova corrente, atribuindo ao intérprete papel relevante, em resposta à imobilização criada pelos critérios da Escola da Exegese. Cumpria ao Judiciário manter o Direito sempre vivo e atual, de acordo com as exigências sociais. Não se concebia que o Direito ficasse estratificado na forma e no conteúdo, em fórmulas úteis somente ao passado.

O Direito decorre de um processo evolutivo. Há necessidade de se analisar, na evolução histórica dos fatos, o pensamento do legislador não só à época da edição da lei, mas também de acordo com a sua exposição de motivos, mensagens, emendas, as discussões parlamentares etc. O Direito, portanto, é uma forma de adaptação do meio em que vivemos em função da evolução natural das coisas. [46]

Savigny e outros adeptos desta Escola chamavam a atenção para a importância do pensamento social na formação do Direito, bem como o caráter evolutivo deste. A lei não seria produto de uma só vontade, mas resultado de um querer social. O legislador não cria a lei em seu intelecto, apropria-se das fórmulas que a organização social sugere, para transfundi-las nos textos.

Considerando que o direito é um fenômeno histórico-cultural, é claro que a norma jurídica somente se revela por inteiro quando colocada a lei na sua perspectiva histórica, com o estudo das vicissitudes sociais de que resultou e das aspirações a que correspondeu. [47]

Quem quiser compreender qualquer ordenamento jurídico deverá desdobrar o seu estudo em várias etapas: deverá dirigir sua atenção para o conteúdo de suas normas e instituições; para as condições temporais em que esse ordenamento surgiu; e para a questão da efetividade desse ordenamento na sociedade que lhe corresponde, isto é, deverá certificar-se de que aquelas normas e instituições ainda de encontram atuantes; se não, porque deixaram de prevalecer; ou ainda, porque não exercem a sua influência com igual intensidade. [48]

Caio Mário da Silva Pereira sublinha que o elemento histórico, e não método histórico, é invocado para coadjuvar o trabalho do intérprete. Ressalva, porém, que tal retribuição deve ser recebida cum grano salis, pois, se é certo que a votação de uma lei decorre das injunções políticas, econômicas e sociais num dado período, e, por outro lado, obedece a um processo de tramitação pelas Casas do Congresso, onde é discutida e recebe, então, a contribuição dos que na sua elaboração participaram, certo é também que o pensamento ou vontade do legislador, como ente abstrato, não se vincula à sua manifestação de um membro do parlamento, ou ao voto enunciado no seio de alguma Comissão ou em discurso proferido em plenário, em defesa da disposição em foco. A origem histórica de uma lei é fator às vezes ponderável na apuração das modificações por que passa a legislação num dado momento, e ajuda a extrair o seu pensamento dominante, ou a fixar a adoção de um novo critério, o abandono de uma corrente doutrinária, a indicação de circunstâncias ligadas à construção do sistema adotado pelo legislador. [49]

Carlos Maximiliano defende que ao intérprete moderno incumbe determinar o sentido objetivo do texto, a vis potestas legis; ele deve olhar menos para o passado e mais para o presente, adaptar a norma à finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva. [50]

3.1.4 Tópica

A tópica consiste em uma técnica do pensamento que se orienta para o problema. É uma técnica de pensamento problemático. Para Theodor Viehweg "a tópica é uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica". [51]

Podemos dizer que a tópica é a técnica do pensamento que se orienta para o problema e, em razão deste, mediante uma legitimação de premissas, busca oferecer uma solução justa para qualquer caso que seja apresentado ao jurista. [52]

A tópica não é uma técnica de pensar moderna, embora raramente dela se escute falar. Ao revés, é um modo de pensar muito antigo que vem desde antes de Aristóteles, junto dele, e depois. Este antigo modo de pensar foi retomado por Theodor Viehweg, em sua obra Topik und jurisprudenz, publicado pela primeira vez em 1953, onde sugere a utilização da tópica como técnica de interpretação do Direito.

Antes disso, Calamandrei já lecionava que, embora se continue a repetir que a sentença pode se reduzir esquematicamente a um silogismo no qual, a partir de premissas dadas, o juiz tira a conclusão apenas em virtude da lógica, às vezes acontece que o juiz, ao formar a sentença, inverta a ordem normal do silogismo; isto é, encontre antes a conclusão e, depois, as premissas que servem para justificá-la. Essa inversão da lógica formal parece ser oficialmente aconselhada ao juiz por certos procedimentos judiciários, como aqueles que, enquanto lhe impõem tornar público, no fim da audiência, o dispositivo da sentença (isto é, a conclusão), consentem que retarde por alguns dias a formulação dos fundamentos (isto é, das premissas). A própria lei, portanto, parece reconhecer que a dificuldade de julgar não consiste tanto em achar a conclusão, que pode ser coisa a se resolver no mesmo dia, quanto em achar depois, com mais longa meditação, as premissas de que essa conclusão deveria ser, segundo o vulgo, a consequência.

As premissas, não obstante seu nome, frequentemente são elaboradas depois – em matéria judiciária, o teto pode ser construído antes das paredes. Com isso, não se quer dizer que o dispositivo surja às cegas e que a fundamentação tenha o único objetivo de mostrar como fruto de rigoroso raciocínio o que, na realidade, é fruto do arbítrio; quer-se dizer apenas que, no julgar, a intuição e o sentimento muitas vezes têm um papel bem maior do que parece a quem vê as coisas de fora. [53]

Viehweg inicia sua obra pelos fundamentos do pensar tópico, deixando de lado uma investigação histórica independente. Parte o autor, primeiramente, das considerações relativas aos procedimentos científicos (scientiarum instrumenta) feitas por Gian Battista Vico, em 1708, em sua dissertatio denominada De nostre temporis studiorum ratione (O caráter dos estudos de nosso tempo), onde na realidade Vico procura analisar a conciliação entre dois métodos científicos de estudo, a saber: o antigo (tópico) e o moderno (crítico).

O primeiro é uma herança da antiguidade, transmitida por Cícero, sendo seu ponto de partida o senso comum, que manipula o verossímil (verissimila) mediante a contraposição de pontos de vista, segundo os cânones da tópica retórica, trabalhando, sobretudo, com uma rede de silogismos. Por sua vez, o método crítico tem como ponto de partida um primum verum, que não pode sequer ser posto em dúvida. O seu desenvolvimento se dá através de uma longa cadeia dedutiva, à maneira da geometria. Segundo Vico, as vantagens deste novo método estariam na agudeza e na precisão da conclusão, caso o primum verum seja mesmo verum. As desvantagens, entretanto, predominam, consistindo na "perda em penetração, estiolamento da fantasia e da memória, pobreza da linguagem, falta de amadurecimento do juízo, em uma palavra: depravação do humano." [54] Tudo isto, aduz Vico, pode ser evitado pela tópica retórica, pois esta "proporciona sabedoria, desperta a fantasia e a memória e ensina como considerar um estado de coisas de ângulos diversos, isto é, como descobrir uma trama de pontos de vista". [55] Em decorrência disto, conclui Vico que deve haver uma intercalação entre os dois métodos, pois um sem o outro não se efetiva.

Após a "alusão de Vico", Viehweg passa a examinar os fundamentos da tópica em Aristóteles e Cícero.

O nome "tópica", que significa técnica de pensar por problemas, foi atribuído por Aristóteles no seu famoso texto Tópica. Nesta obra o autor se ocupa da antiga arte da disputa, domínio dos retóricos e sofistas, que constitui o campo do meramente oponível, da dialética.

No Livro I da Tópica, Aristóteles afirma que o seu "tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraço." Para isto, Aristóteles classifica os raciocínios em demonstrativo, dialético e erístico. Diz-se que o raciocínio é uma demonstração quando as premissas das quais parte são verdadeiras e primeiras, ou quando o conhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras; por sua vez, dialético é o raciocínio que parte de opiniões geralmente aceitas; o raciocínio erístico é aquele que parte de opiniões que parecem ser geralmente aceitas, mas não o são realmente. Segundo Aristóteles, são "verdadeiras" e "primeiras" aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não seja ela própria. Por outro lado, "opiniões geralmente aceitas" são aquelas que todos admitem, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos, em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes. [56] Posto desta forma qualquer problema, basta pensar corretamente conforme as opiniões que pareçam adequadas () para atacar ou defender.

Desta forma, o que diferencia o raciocínio dialético do raciocínio analítico (demonstrativo) não é o aspecto formal, mas sim o material, é dizer, pela natureza das premissas de que se utilizam. O raciocínio dialético utiliza-se de premissas verossímeis, ou seja, de opiniões geralmente aceitas, ao passo que o analítico utiliza-se de premissas verdadeiras e primeiras, que não podem sequer ser postas em dúvidas.

No que tange ao vocábulo "topoi", este aparece pela primeira vez no final do primeiro livro da Tópica, mas sua explicação encontra-se na Retórica. Aduz Aristóteles que os topoi são pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade. Mutatis mutandi, pode-se dizer que na tópica jurídica, os topoi podem ser entendidos como os diversos pontos de vista compreendidos, ou comportados, pela norma.

Por sua vez, a tópica de Cícero teve maior influência histórica do que a aristotélica. Pretendeu Aristóteles construir uma teoria da tópica, situada no campo filosófico, ao passo que a tópica de Cícero estava totalmente vertida para a sua utilização prática. O trabalho de Cícero consiste em uma coletânea de topoi voltados para sua aplicação prática, e não de uma ordenação teórica dos topoi, como fez Aristóteles. Para Cícero a tópica consiste na arte de buscar argumentos. A tópica ciceroniana está voltada para a práxis.

Após um longo período de esquecimento, a tópica jurídica surge na Alemanha alguns anos após a Segunda Guerra Mundial, com o intento de responder à crise do positivismo desencadeada pela implantação de regimes totalitários. Neste mesmo sentido, explica Paulo Bonavides que "a insuficiência do positivismo explica o advento da tópica na medida em que lhe foi possível abranger toda a realidade do direito, valendo-se, conforme ressaltou Kriele, de normas positivas, escritas ou não escritas, em vinculação com as regras de interpretação e os elementos lógicos disponíveis." [57]

Segundo a lição de Canotilho, a tópica é método cujas premissas para aplicação são o caráter prático da interpretação constitucional (já que o objetivo de qualquer interpretação é deslindar as situações concretas postas), o caráter aberto, fragmentário ou indeterminado da lei constitucional e a preferência pela discussão do problema em virtude da abertura de normas constitucionais que coíbem a dedução subsuntiva a partir delas mesmo. [58]

O método tópico de interpretação constitucional pressupõe uma pluralidade de intérpretes, haja vista que o mesmo situa-se no campo da retórica, ou seja, na arte da discussão. É, no dizer de Canotilho, um processo aberto de argumentação entre os vários participantes (pluralismo de intérpretes) através da qual se tenta adaptar ou adequar a norma constitucional ao problema concreto. Posto um problema constitucional concreto, os intérpretes utilizam-se de vários topoi ou pontos de vista, sujeitos a serem legitimados como premissas (caso venham a ser aceitos pelo interlocutor), visando resolver o problema por meio da interpretação mais adequada ao problema ou, noutras palavras, mais razoavelmente justa. Desta forma, percebemos que os topoi servem de auxiliar de orientação ao intérprete; constituem um guia de discussão dos problemas e; permitem a decisão do problema jurídico em discussão.

Sobre a necessidade do método tópico de interpretação na seara constitucional, adverte Bonavides que a Constituição representa o campo ideal de intervenção ou aplicação do método tópico em virtude de constituir na sociedade dinâmica uma "estrutura aberta" e tomar, pelos seus valores pluralistas, um certo teor de indeterminação. Dificilmente uma Constituição preenche aquela função de ordem e unidade, que faz possível o sistema se revelar compatível com o dedutivismo metodológico. Conclui que diante desses obstáculos, só a tópica, como hermenêutica específica, estaria adequada metodologicamente a resolver dificuldades inerentes à Constituição nos seus fundamentos.

Feitas estas considerações, analisemos cada um dos três elementos característicos da tópica, a saber: o problema, os topoi e a legitimação das premissas.

O problema é o ponto de partida do pensar tópico. Problemas são aquilo em torno do que os raciocínios giram ou, segundo Viehweg, significa toda questão que, aparentemente, permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto da questão que há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução. O ponto de partida é uma aporia, ou seja, um problema concreto.

O termo "problema" pode ser substituído pelo sinônimo "aporia", que significa precisamente uma questão que é estimulante e iniludível, designa a falta de um caminho, a situação problemática que não é possível eliminar. A aporia fundamental do direito é a aporia da justiça. O que é o justo aqui e agora? Eis um problema que o direito busca permanentemente resolver, e que por isso Viehweg o caracteriza como tópico.

Onde há sociedade há problema, onde há problema há direito, de modo que podemos concluir que o direito só existe em função dos problemas. Onde não houver problemas, conflitos de interesses, não haverá razão de existir o direito. A sociedade precisa do direito para pôr termo aos problemas que se lhe apresentam diariamente. Não há como conceber uma sociedade vivendo harmonicamente sem a presença do direito regulando as condutas intersubjetivas. O direito surge em razão de problemas oriundos da convivência entre humanos, e apenas retira sua razão de ser a partir destes mesmos problemas. O direito é feito pela sociedade e para esta mesma sociedade. Ou seja, o direito é feito para dizer o justo aqui e agora. É um meio a serviço de um fim. O direito é técnica, instrumento que serve ao problema fundamental da justiça. Eis a razão de ser do direito: a aporia fundamental da justiça.

O problema está à frente de tudo, é a partir dele que será feita a seleção do sistema, ou seja, o acento no problema opera uma seleção de sistema. Partindo de determinado problema, busca-se uma solução em um sistema A, caso o sistema A não ofereça a solução adequada passa-se ao sistema B, e assim por diante, até que se ache uma solução adequada em um determinado sistema. Por isto a afirmação feita no início de que o acento no problema opera uma seleção de sistema. Ao revés, o acento no sistema opera uma seleção de problemas. Cada sistema busca nele próprio os seus problemas. Caso no sistema não seja encontrada uma resposta para o que se denominou de problema, então se conclui que aquilo não é um verdadeiro problema, mas sim um falso problema.

O segundo elemento característico do pensar problemático é o topoi. Os topoi devem ser entendidos de um modo funcional, como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento. [59] Servem eles a uma discussão de problemas. Conforme os topoi sejam escolhidos arbitrariamente ou estejam previamente dispostos sob a forma de catálogos, podemos classificar a técnica do pensamento problemático em tópica de primeiro grau e tópica de segundo grau. Desta forma, os topoi são pontos de vista que servem a uma discussão do problema. São instrumentos auxiliares.

Os topoi adquirem sentido em razão do problema. Toda proposição ou conceito que sirva a uma discussão de problemas e que leve a busca de uma solução adequada para o caso concreto pode ser considerada como topoi. Em se tratando do Direito Constitucional podem ser caracterizados como topoi: os métodos de interpretação constitucional; as normas constitucionais; os argumentos da doutrina juspublicista; decisões do judiciário, etc.

Pode parecer espantoso, mas como o problema está à frente de tudo, as normas jurídicas passam para um segundo plano, adquirindo a natureza de topoi. Em se tratando da Constituição esta perde em muito o seu aspecto formal. Assim esclarece Paulo Bonavides: "A invasão da Constituição formal pelos topoi e a conversão dos princípios constitucionais e das próprias bases da Constituição em pontos de vista à livre disposição do intérprete, de certo modo enfraquece o caráter normativo dos sobreditos princípios, ou seja, a sua juridicidade. A Constituição, que já é parcialmente política, se torna por natureza politizada ao máximo com a metodologia dos problemas concretos, decorrentes da aplicação da hermenêutica tópica." [60] No mesmo sentido alerta Celso Bastos, advertindo que o emprego da tópica na interpretação da Constituição resultaria em um enfraquecimento desta, de maneira que o poder estaria todo na mão do intérprete, que poderia, ao seu bel prazer, alterar o real significado e intuito das normas constitucionais. [61]

A validação das premissas pela aceitação do interlocutor constitui a terceira característica da tópica. Como é sabido, a tópica é uma técnica de pensar por problemas. Posto um problema, o intérprete busca auxílio nos topoi, que servem para afirmar ou contrapor um outro argumento. A partir do momento em que o interlocutor for aceitando as argumentações contrárias, vão-se formando as premissas em busca de uma solução que seja razoavelmente justa. Desta forma, as premissas se legitimam pela aceitação do interlocutor. Firmam-se como premissas legítimas os pontos de vista aceitos pelas partes, depois de postos em discussão.

A tópica é, assim, uma técnica aberta de pensar por problemas, podendo servir de recurso interpretativo das normas jurídicas, estabelecendo uma forma de raciocínio, que procede por questionamentos sucessivos, em torno da relação pergunta x resposta. Assim, quando os meios convencionais para a resolução das questões concretas da vida forem insuficientes, o juiz diante da situação sub judice, poderia valer-se dos topoi, isto é de pontos de vista que facilitam e orientam a sua argumentação, à luz daquilo que está inserido nos autos do processo. A partir daí discute-se o problema, analisando cada uma das soluções imagináveis e fundamentações para o caso concreto. A conclusão se forma pela avaliação das fundamentações dos prós e contras das distintas soluções, após o que se deve escolher a interpretação mais adequada para o problema. Todos os meios interpretativos podem ser utilizados para a formação dos pontos de vista. [62]

Pela deficiência quanto à visão de sistema e pelo excessivo casuísmo, este método é refutado pela doutrina, sendo proveitosa a afirmação de Canotilho: "A concretização do Texto Constitucional a partir dos tópoi merece sérias reticências. Além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas. A interpretação é uma atividade normativamente vinculada, constituindo a constitutio scripta um limite ineliminável, que não admite o sacrifício da primazia da norma em prol da prioridade do problema". [63]

Ilação em igual sentido pode ser feita do comentário de Eros Roberto Grau: "Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer norma da Constituição impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dela – da norma até a Constituição. Uma norma jurídica isolada, destacada, desprendida do sistema jurídico, não expressa significado normativo nenhum". [64]

3.2 Classificações

Interpretar a lei consiste em determinar o seu significado e fixar o seu alcance. Compreendendo diversos momentos e aspectos, a tarefa interpretativa apresenta, contudo, um tal caráter unitário, que não atinge o seu objetivo senão na sua inteireza e complexidade. A esses diversos aspectos da atividade do intérprete, que mutuamente se completam e se exigem, alude-se tradicionalmente com o nome de métodos de interpretação. [65]

Inobstante, o escol de Francesco Ferrara nos ensina que não há, a rigor, várias espécies de interpretação, mas uma interpretação única, combinando-se os diversos meio empregados, interpretando-se reciprocamente, para obtenção do acertamento do sentido legislativo. [66]

É sabido que o Direito não milita com signos exatos e em razão disso surge uma certa imprecisão em suas normas jurídicas. Todavia, esta imprecisão não pode ser tomada como sendo fruto de uma desvalia da Ciência Jurídica, mas tão-somente como um elemento imprescindível de que se vale o Direito para formular as suas normas de molde a serem dotadas de abstratividade e generalidade e, por consequência, abarcarem uma multiplicidade de situações. Isso significa que em todo o processo de elaboração das leis chega-se a um ponto em que elas passam a conter dentro de si a condição de incerteza.

Ademais, se não fossem essas zonas de aparente imprecisão, não seria possível ao Direito evoluir no tempo. Não se pode considerar essa imprecisão como algo negativo, pois na verdade ela é um instrumento de que se vale o Direito para se manter atual e dinâmico. Há que se deixar consignado também que essa abstratividade e imprecisão permeiam toda a ordem jurídica. [67]

Adotamos aqui parcialmente a classificação sistemática de Tito Fulgêncio [68] da interpretação em dois grupos, quanto à origem e quanto aos elementos, acrescentando um terceiro, quanto aos efeitos, adotada por alguns doutrinadores, notadamente Cintra, Grinover & Dinamarco. [69] Já em relação aos itens de cada um desses grupos, achamos por bem promover certas alterações, conciliando o posicionamento de diferentes doutrinadores.

A escolha entre este ou aquele método interpretativo não é uma atividade gratuita, é dizer, ela é feita, em última análise, de acordo com a ideologia do intérprete. Este último escolherá aqueles métodos que forneçam elementos favoráveis ao seu interesse, que guarde consonância com a sua ideologia ou, como preferem alguns autores a "pré-compreensão do intérprete" que faz com que por ocasião da escolha do método já se tenha uma noção das múltiplas significações que a norma comporta. [70]

Ainda, cabe ressaltar que a norma interpretativa tem efeito ex tunc, uma vez que apenas esclarece o sentido da lei. [71]

3.2.1 Quanto à origem

Quanto à origem, a interpretação será autêntica, judicial ou doutrinária.

Cabe sublinhar que a interpretação dada à norma em determinado caso concreto não vincula o intérprete, mesmo que em exercício de função jurisdicional, podendo ele e os demais órgãos judicantes interpretar livremente a norma em casos análogos.

3.2.1.1 Autêntica

É chamada de ‘autêntica’ – e também de ‘legal’, ‘legislativa’ ou ‘pública’ – a interpretação realizada pelo próprio órgão que editou a norma a ser interpretada, declarando seu sentido, alcance e conteúdo, por meio de outra norma jurídica.

É chamada de contextual quando vem inserida no próprio texto interpretado, ou posterior, quando elaborada para esclarecer o sentido duvidoso da lei já publicada.

Ressalte-se que a própria lei interpretativa, sendo norma de direito objetivo, norma da mesma natureza da interpretada, está sujeita a interpretações.

Também deve ser observado o escalonamento hierárquico das leis. Assim, uma norma constitucional somente poderá receber interpretação autêntica por outra norma constitucional. Não pode o Executivo baixar decreto interpretativo de uma lei, nem é possível à União votar lei interpretativa de lei estadual ou municipal ou vice versa. [72]

Para Kelsen, sempre é autêntica a interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito, pois ele cria Direito. Pouco importa se cria uma norma geral, ou se cria Direito apenas para um caso concreto. [73]

3.2.1.2 Judicial

Será ‘judicial’ ou ‘jurisprudencial’ a interpretação realizada por órgão jurisdicional, demonstrando a orientação que os juízos e tribunais vêm dando à norma.

Não é a função judicial especificamente, mas resulta como via de consequência, da fixação do conteúdo do dispositivo invocado, que o juiz esclarece em que termos compreende. Por isso mesmo, não se pode emprestar sentido normativo à interpretação judicial, cujo prestígio depende da autoridade intelectual do prolator. [74]

3.2.1.3 Doutrinária

Este método, também chamado de interpretação ‘científica’, se refere à interpretação feita por estudiosos e cultores do direito (communis opinio doctorum). Alguns doutrinadores defendem que as exposições de motivos devem ser tomadas como interpretação doutrinária, e não autêntica, uma vez que não são leis. [75]

3.2.2 Quanto aos elementos

Para criar a norma em concreto, o aplicador do direito recorre a diferentes técnicas de interpretação do sentido da norma em abstrato.

Quanto aos elementos, a interpretação é classificada em gramatical, lógica, ou teleológica.

Ressalte-se que todos os métodos de interpretação conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto. Fixar-se na vontade presumida do legislador desprezando o teor verbal ou observar o estritamente o teor verbal sem se importar com a vontade do legislador tem valor absolutamente igual. Se for o caso de duas normas da mesma lei se contradizerem, então as possibilidades lógicas de aplicação jurídica se encontram sobre um e o mesmo plano. É um esforço inútil querer fundamentar juridicamente uma, com exclusão da outra. [76]

3.2.2.1 Gramatical

Também chamado de método ‘filológico’, ‘literal’ ou ‘verba legis’, consiste em verificar o sentido do texto legal, analisando-se o alcance das palavras utilizadas pelo legislador, tanto individualmente como na sua sintaxe. O intérprete precisa a significação dos vocábulos, a sua colocação na frase, o uso de partículas e cláusulas, o emprego de expressões sinônimas.

Já que o comando estatal se revela pela palavra, é do seu emprego, da sua utilização que o intérprete se vale, num primeiro grau do entendimento hermenêutico para definir o seu conteúdo.

Há quem considere o processo de interpretação meramente literal de maliciosa perversão da lei. [77] Eduardo Espínola expõe que a letra em si é inexpressiva; a palavra, como conjunto de letras ou combinações de sons, só tem sentido pela idéia que exprime, pelo pensamento que encerra, pela emoção que desperta. [78] E esse cuidado já tomavam os romanos, tendo o jurisconsulto Paulus se pronunciado no sentido de que age em fraude à Lei quem, respeitadas as suas palavras, contorne o seu sentido. [79]

3.2.2.2 Lógico-sistemático

Os dispositivos legais não têm existência isolada – não se interpreta o direito em tiras [80] –, mas se inserem organicamente em um sistema, que é o ordenamento jurídico, em recíproca dependência com as demais regras de direito que o integram. [81] Desse modo, para serem entendidos devem ser examinados em suas relações com as demais normas que compõem o ordenamento e à luz dos princípios gerais que o informam. [82]

Também deve ser notada a distinção feita pela doutrina entre lógica interna e lógica externa.

A primeira trata da inteligência do próprio texto legislativo, alheando-se dos elementos de informação extra legem, estudando a lei dentro de sua unidade de pensamento, através dos métodos dedutivo, indutivo e dos raciocínios silogísticos. A crítica deste método diz que ele oferece aparência de certeza, exterioridades ilusórias, deduções pretensiosas; porém no fundo, o que se ganha em rigor de raciocínio, perde-se em afastamento da verdade, do Direito efetivo, do ideal jurídico. [83]

Pela lógica externa, procura-se completar o sentido da lei observando os acontecimentos que provocam o fenômeno jurídico (occasio legis), indagando os fins que ditaram a regra jurídica (ratio legis). Nas palavras de Holbach, toda ciência que se limita aos textos de um livro e despreza as realidades da vida é ferida de esterilidade. [84]

Alguns doutrinadores desmembram este método, apresentando classificações distintas para o método ‘lógico’ e para o ‘sistemático’, o que nos parece redundante, pois em ambos os casos o texto interpretado é analisado em conjunto com o sistema onde está inserido. A diferenciação estaria em que no primeiro também é incluído o método teleológico. Com a devida vênia, entendemos que a classificação aqui proposta é melhor dividida.

3.2.2.3 Teleológico

A par desta lógica formal (logos do racional), há que se falar da lógica do razoável a que se refere o guatemalteco Luis Recasèns Siches, que apresenta certas características referentes à lógica (logos) do humano que: está condicionado pela realidade concreta do mundo social-histórico e particular no qual, com o qual e para o qual se elaboram as normas jurídicas; está impregnado de valorações, de critérios estimativos ou axiológicos referidos a uma determinada situação humana real, e que constituem a base para uma formulação de finalidades; é regido por razões de congruência ou adequação entre a realidade social e valores, entre valores e fins, entre fins e realidade social concreta, entre fins e meios em vista da correção ética dos meios; entre fins e meios naquilo que se refere à eficácia dos meios etc. [85]

Como bem resume Elcio de Cresci Sobrinho, a interpretação das normas jurídicas inclusive das que parecem mais claras e mais completas, requer referência a princípios axiológicos, a critérios valorativos que muitas vezes não estão expressos no texto da lei. Os termos de uma norma jurídica devem ser interpretados em função do propósito para o qual foi emitida e sempre em relação com o sentido e o alcance dos fatos particulares, em questão, referidos àquela finalidade da norma. [86] Há, pois, que se indagar, por vezes, do sentido teleológico da lei, com vista na apuração do valor e finalidade do dispositivo. [87]

A lei tem em vista um objetivo e se justifica por uma razão; a lei foi votada em um determinado momento e não em outro; a lei traduz as idéias políticas, filosóficas e econômicas dominantes no meio social de que se destina a regular as atividades. O intérprete não pode desprezar todos esses fatores, ao precisar o que a lei deve conter efetivamente. Tem de indagar qual a sua ratio isto é, o motivo ou causa determinante do dispositivo, o que lhe permite abarcar, no preceito, todo o fenômeno compreendido na mesma ordem racional; tem de perquirir a occasio legis, a saber o momento histórico do seu aparecimento, o subsídio para reconstrução da sua força; tem de isolar a expressão da vontade legislativa, não no sentido da emissão volitiva do proponente, ou da exteriorização psíquica de uma pessoa, mas de uma vontade objetiva, da própria lei, encarada como entidade jurídica de existência autônoma. [88]

3.2.3 Quanto aos resultados

Conforme o resultado da atividade interpretativa, esta será declarativa, extensiva, restritiva ou ab-rogante.

A interpretação ‘declarativa’ atribui à lei o exato sentido proveniente do significado das palavras que a expressam.

É considerada ‘extensiva’ sempre que se considera que a lei é aplicável a casos que não estão abrangidos pelo teor literal (lexplus voluit quam dixit), alargando o campo de incidência da norma, em relação aos seus termos.

‘Restritiva’ é a interpretação que limita o âmbito de aplicação da lei a um círculo mais estrito de casos do que o indicado pelas suas palavras (minus voluit quam dixit).

Diz-se ‘ab-rogante’ a interpretação que, diante de uma incompatibilidade absoluta e irredutível entre dois preceitos legais ou entre um dispositivo de lei e um princípio geral do ordenamento jurídico, conclui pela inaplicabilidade da lei interpretada.

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Sobre o autor
Marcelo Azevedo Chamone

Advogado, Especialista e Mestre em Direito, professor em cursos de pós-graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAMONE, Marcelo Azevedo. Estudos sobre interpretação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1198, 12 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9032. Acesso em: 2 nov. 2024.

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