4- JUDICIUM CAUSAE
Após o trânsito em julgado da decisão de pronúncia, abre-se ensejo para o judicium causae. Neste momento, pode ocorrer fenômeno denominado "crise de instância". Tal se dá quando, sendo o crime inafiançável, o réu não é localizado para ser intimado pessoalmente da sentença de pronúncia. Dos delitos elencados como crimes dolosos contra a vida, somente dois são afiançáveis, de forma que a ausência de intimação pessoal do réu acarreta, no mais das vezes, a suspensão do curso do processo, sem que haja suspensão do curso do lapso prescricional.
Procedida a intimação ao réu pessoalmente (regra), e não havendo recurso em sentido estrito, ou sendo este desprovido (se interposto pelo réu), abre-se ensanchas ao prazo para oferecimento do libelo. O libelo é a peça acusatória destinada aos jurados. A denúncia, ao revés, no procedimento do júri é, na verdade, destinada ao juiz singular. Tem se criado em alguns julgados até mesmo certa celeuma em torno dos termos utilizados na sentença de pronúncia, afirmando-se que seria impróprio "julgar procedente a denúncia". Mas a correta observância da técnica aponta em sentido diverso.
De fato, em rigor técnico, a denúncia do procedimento do júri não deve ter como fecho um pedido de condenação, mas sim de pronúncia. Feito o pedido correto, motivo algum há para que se aponte qualquer falha na sentença que julga procedente a denúncia, pois o faz exatamente para determinar a submissão do acusado ao julgamento pelo Tribunal Popular, pronunciando-o.
A sentença de pronúncia funciona, como já dito, como uma filtragem, e o resultado tem um caráter de limitação ao conteúdo acusatório. Assim, o libelo deve se ater estritamente aos termos da pronúncia, não podendo inovar ou ampliar o espectro da pretensão punitiva, sob pena de nulidade. Bem a propósito, cita-se precedente do TJRS, materializado no julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº 70003941408, relator o Desembargador Ranolfo Vieira:
"Júri. Pronúncia. Reconhecimento de circunstancia qualificadora não descrita na denuncia e não apreciação da circunstancia narrada. Nulidade declarada de oficio. a ausência de correlação entre a denúncia e a sentença gera a nulidade desta, mormente em processo de competência do Tribunal do Júri, onde os quesitos a final submetidos aos jurados deverão corresponder as circunstancias narradas na denuncia, acolhidas pela pronúncia e articuladas no libelo". [27]
O em outra oportunidade, já havia decidido o mesmo julgador que "a decisão condenatória deve guardar correspondência com a acusação. Em se tratando de processo de competência do Tribunal do Júri, o principio da correlação não permite dissonância entre a denuncia, a pronuncia, o libelo e os quesitos. Mudada a acusação, em qualquer dessas fases, sem justificativa processualmente deduzida, imputando ao réu fato ou circunstancia de que não se defendeu, o processo resta nulo". [28]
Da mesma forma, "é pacífico o entendimento pretoriano ao vedar a formulação de quesitos de agravantes com correspondência às qualificadoras, quando não tenham sido objeto do libelo ou mesmo da pronúncia." [29]
Diversamente, as agravantes não precisam ser articuladas, podendo ser alegadas em plenário, feita a ressalva supra, embora seja de bom alvitre sua inclusão no libelo.
O libelo é confeccionado sob a forma de articulados, sendo um para cada acusado e uma série de quesitos para cada fato, sendo que em cada um não pode ser mencionado o nome do co-autor.
Chegando-se no culminar do procedimento, com o julgamento em plenário, novamente se coloca a possibilidade de desclassificação que será objeto do tópico seguinte.
5- DESCLASSIFICAÇÕES PRÓPRIAS E IMPRÓPRIAS
Depois de longa celeuma a meteria da desclassificação em plenário resta assentada de forma satisfatória. Duas formas de desclassificação podem ocorrer nesta fase.
A primeira é a desclassificação própria, ocorrendo em dois casos quais sejam: a) nega-se o dolo, ainda que eventual; b) nega-se a tentativa (art.14, inciso II, do CP), neste último caso votando ao segundo quesito. Caberá, então, ao Juiz Presidente proferir decisão, pois o Tribunal do Júri se declarou incompetente para tanto quando negou a presença de um delito doloso contra a vida, embora tenha remanescido figura delituosa a ser apreciada.
A desclassificação imprópria ocorre quando o Júri desclassifica e também condena, permanecendo com a competência. Pode ocorrer em três casos a saber:
A primeira hipótese decorre do reconhecimento do excesso culposo nas descriminantes. Aqui temos a denominada culpa imprópria, onde a ação, a rigor, é dolosa, mas o excesso é culposo. A desclassificação ocorre após a condenação, pois quando reconhecido o excesso, os quesitos de autoria, materialidade e dolo já foram votados positivamente.
A segunda situação é a do reconhecimento da tese defensiva do homicídio culposo, tese cuja aplicação não passa indene de rejeição e críticas. Todavia, como argumento da defesa, deve ser questionada se argüida, não havendo motivo plausível algum para as críticas que são dirigidas a sua admissibilidade. Aliás, uma vez que adotada a possibilidade de ser considerado dolo eventual na conduta, por exemplo, de quem pratica racha automobilístico, a tese de homicídio culposo passa a ser de emprego comum. A respeito, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que:
"Se a tese da defesa é desclassificação para homicídio culposo, sem negativa de autoria, mostra-se correta a quesitação em que logo após os quesitos sobre o fato principal (materialidade, autoria e letalidade) vêm as perguntas sobre as formas de culpa, não havendo nulidade em face da ausência de quesito específico sobre dolo eventual." [30]
Na mesma esteira, colige-se julgado do TJGO, onde assentou-se que:
"Quando o Juiz-Presidente deixar de formular quesito claro e simples referente a uma das teses argüidas pela defesa de desclassificação de homicídio doloso para homicídio culposo, a fim de que os jurados respondam se o réu agiu, ou não, com culpa, em uma de suas modalidades (imprudência, negligência ou imperícia) e, não sendo desdobrados os quesitos, aplica-se a Súmula 156 do STF, tendo em vista que a ausência de quesito obrigatório macula o julgamento." [31]
A terceira circunstância decorre do reconhecimento da participação dolosa distinta no concurso de crimes. Aqui, se "se os jurados reconheceram que o acusado quis participar de crime menos grave, pois que cooperou de forma dolosamente distinta, aplicar-se-á a regra do art. 29, § 2º, do CP, devendo constar do dispositivo incriminador exclusivamente a tipificação do crime menos grave, constituindo tal hipótese uma exceção à teoria unitária do concurso de pessoas." [32]
Mas "afirmado pelos jurados o dolo do artigo 121 CP com a rejeição da tese de negativa de dolo, incompatível, mesmo que partícipe o réu, a formulação da participação dolosamente distinta do artigo 29, § 2º. Apenas possível a participação de menor importância do § 1º do mesmo artigo." [33]
Problema que gera certa perplexidade reside na desclassificação própria, quando houver delito conexo de competência do Juizado Especial Criminal. No TJRS, a situação há algum tempo era a seguinte nos órgãos fracionários:.
- A 3ªcâmara criminal aplica o CPP de forma que a competência passa ao juiz-presidente para julgar na hora;
- A 2ªcâmara criminal determina que o juiz-presidente deve suspender o julgamento, desfazer o conselho de sentença, aguardar o trânsito em julgado e remeter os autos para o juizado especial criminal;
- Na 1ªcâmara criminal a opinião é de que o juiz-presidente deve na hora dar uma nova classificação e perguntar ao promotor se ele vai aplicar a 9.099/95; se o promotor não adotar, o juiz julga na hora;
Recentemente, este problema foi amenizado com a edição da Lei nº 11.313/06, de 28 de junho de 2006, a qual estabelece que, tanto nos juizados estaduais como federais, "na reunião de processos, perante o juízo comum ou o tribunal do júri, decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis."
A questão da transação penal não será mais tratada pela primeira vez em plenário. Mas remanesce a questão da suspensão condicional do processo e do descumprimento da transação.
6- PROBLEMA APÓS A LEI Nº 11.313/06
Como supra referido, ainda restam problemas mesmo em relação à transação. Primeira questão que surge concerne à operacionalização processual da aplicação dos institutos dos juizados em processos onde há conexão ou continência, mais especificamente em relação à transação penal.
É que, enquanto a composição cível gera indubitavelmente um título executivo, cujo destino é a execução civil, a transação, de acordo com uma corrente de pensamente, pode ser revogada, dando-se seqüência ao processo.
Esta solução tem sido objeto de acalorada divergência. O TJPR, por exemplo, no Habeas Corpus nº 0208310-7 (8896), 3ª Câmara Criminal, relator convocado o Juiz Renato Naves Barcellos, decidiu que é possível o oferecimento de denúncia "dado constar expressamente da sentença homologatória que o não adimplemento da obrigação assumida daria ensejo a revogação do pactuado e ajuizamento de ação penal". [34]
No Superior Tribunal de Justiça, ao revés, encontram-se julgados que preconizam que "é segura a jurisprudência dos Tribunais Superiores na afirmação do incabimento de propositura de ação penal, na hipótese de descumprimento da transação penal." [35]
Em outra ocasião, o mesmo STJ assentou que "a sentença homologatória da transação penal, prevista no art. 76 da Lei nº 9.099/95, tem natureza condenatória e gera eficácia de coisa julgada material e formal, obstando a instauração de ação penal contra o autor do fato, se descumprido o acordo homologado." [36] Mas a posição não é absoluta, havendo possibilidade de oferecimento da denúncia se não houve homologação da proposta. [37]
Na esteira deste posicionamento, tem se entendido "regular o procedimento de, ao invés de imediatamente se homologar a transação penal, suspender-se o feito até a data acertada para o cumprimento do ajuste. Tal não encontra expressa vedação legal. E se mostra como o procedimento mais dinâmico e consentâneo com os princípios que informam os juizados especiais. Elimina a dificuldade de, homologada a transação, não cumprir o autor do fato as respectivas condições, quando, então, segundo posição jurisprudencial hoje prevalente no STJ, não mais poderá haver denúncia, incumbindo ao Ministério Público promover a execução do ajuste, que, normalmente, por conhecidas dificuldades, não se materializa, gerando impunidade e descrença" [38]
Tal posicionamento baseia-se na asserção de que "o legislador da Lei 9.099/95 não previu qualquer medida a ser tomada em caso de descumprimento da transação, salvo a sua própria execução pelo órgão do Ministério Público, perante o Juízo próprio, quando ela for possível" [39] para concluir que "em se tratando de Juizado Especial Criminal, se aceita a proposta de transação penal pelo autor indicado no termo circunstanciado, descumprida a obrigação originada daquele acordo de vontades, não mais se pode falar no seguimento da ação penal, com apresentação da denúncia, seu recebimento e demais termos legais, visto que perdeu o Estado, o poder de instaurar a persecutio criminis, cabendo somente a execução do acordo não cumprido e nada mais." [40]
Eu particularmente entendo que a revogação deve ser procedida, dando-se seqüência ao feito. Veja-se que no mais das vezes os acusados são pessoas de poucas posses, de sorte que penas de cunho pecuniário acabam por não ser executadas ou gerar gravame que atinge a família do apenado. Resta a imposição de outras formas de sanção, cuja execução específica resta inviabilizada em caso de recalcitrância do acusado, como é o caso da prestação de serviços à comunidade. Diante da impossibilidade de execução, gera-se a impunidade.
A força preventiva e repressiva, que é a essência da excepcional intervenção do direito penal, carece, no caso da transação, da possibilidade de revogação e prosseguimento no feito, sem o que recai na ineficácia dos meios executivos civis.
De qualquer forma, seja pela ampla possibilidade de revogação, pela possibilidade de oferecimento da denúncia se não homologada a transação, ou pela revogação decorrente da previsão na proposta de que assim seria em caso de descumprimento, surge o problema de termos de dar seqüência ao processo de crime conexo quando o processo do crime de júri já pode estar bem adiantado.
Deveras, entabulada transação penal, certamente teremos de formar autos próprios em relação ao delito de menor potencial ofensivo. Mas se houver situação de ter-se de dar prosseguimento ao feito, como proceder?
O aditamento à denúncia é a primeira solução que se nos apresenta, e de fato é uma hipótese viável, mas limitada, pois há entendimento de que uma vez "proferida a sentença de pronúncia e preclusa a via impugnativa, não mais poderá ela ser alterada, a menos que se verifique circunstância superveniente que modifique a classificação do delito." [41]
Então, se não proferida sentença de pronúncia, procede-se ao aditamento e tollitur quaestio. Mas se houver pronúncia, não haverá, em tese, possibilidade de aditamento. Também inviável simplesmente inserir um delito que não constou da denúncia e sobre o qual não houve instrução. Logo, outra solução não haverá se não proceder a julgamentos separados, correndo-se os riscos dos inconvenientes que disso podem resultar.
7- SUSPENSÃO CONDICIONAL E DESCLASSIFICAÇÃO.
A presença de concurso material implica necessidade de julgamento conjunto da infração onde em tese seria cabível a suspensão e do delito doloso contra a vida.
No entanto, havendo concurso material, firmou posição o STJ segundo a qual é "incabível o sursis processual na ocorrência de concurso material, quando o somatório das penas ultrapassa o lapso de 1 (um) ano." [42] Esta orientação hoje se materializa na Súmula nº 243 daquele pretório, cujo teor é o seguinte.
"O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de 01 (um) ano."
Nesta ordem de idéias, diante das penas cominadas aos delitos dolosos contra a vida, é impossível ser ofertada suspensão condicional do processo junto com a denúncia em relação aos crimes conexos. Ocorrendo desclassificação ao final do judicium accusationis, não há problema com a aplicação do instituto da suspensão. Mas e se a desclassificação se der em plenário e somada a pena dos delitos for possível a aplicação do sursis processual?
Voltamos ao dilema. Processo, inclusive com instrução, houve, e a finalidade da suspensão é exatamente evita-lo. Por outro lado, seria injusto subtrair do réu esta possibilidade.
Assim, a melhor solução é a preconizada pela Primeira Câmara Criminal do TJRS, como acima mencionado, ou seja, oportunizar a aplicação do instituto no plenário.