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As desclassificações no procedimento do júri

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11/10/2006 às 00:00
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O texto trata de aspectos doutrinários e práticos das desclassificações no procedimento do Júri, analisando, especialmente, a questão dos delitos conexos.

Síntese: O texto trata de aspectos doutrinários e práticos das desclassificações no procedimento do Júri, analisando, especialmente, a questão dos delitos conexos.


Sumário: 1- Júri: Um Procedimento em Questionamento. 2-Competência: Noções 3-. Procedimento Complexo. 3.1) Pronúncia. 3.2) Impronúncia. 3.3) Absolvição Sumária. 3.4) Desclassificação. 4- Judicium Causae. 5- Desclassificações Próprias e Impróprias. 6- Problema após a Lei nº 11.313/06. 7- Suspensão Condicional e Desclassificação. 8- Considerações Finais


1-JÚRI: UM PROCEDIMENTO EM QUESTIONAMENTO

Qualquer tratativa acerca de aspectos do procedimento do Tribunal do Júri não deve descurar da premissa consistente no fato de que esta instituição passa, hoje, por uma fase de questionamento.

Uma análise crítica formulada a partir de conhecimentos técnicos revela que este procedimento tem se caracterizado por ser uma verdadeira "sementeira de nulidades", haja vista sua complexidade. Por outro lado, a possibilidade de revisão parcial dos veredictos e a presença do protesto por novo júri, além da possibilidade de recurso acerca da pronúncia, colaboram para torná-lo singularmente demorado.

Sob o prisma leigo, a sociedade a cada dia mais se mostra atônita com a instituição que lhes é revelada pela mídia. Desconhecendo a principiologia que ilumina o processo penal e sua concreta materialização no procedimento do Júri, os leigos não entendem como o processo pode resultar demorado e chegar, por vezes, a desfechos que não condizem com suas expectativas.

Conseqüência destes fatos é que o Tribunal do Júri começa a ser cogitado como um instituto que carece de reformas urgentes, havendo, inclusive, projetos de lei em tramitação objetivando sua simplificação.

Eu, particularmente, entendo que foi um equívoco a inserção do instituto do Tribunal do Júri no artigo 5º, inciso XXXVIII, da CF/88. Esta topologia subtraiu flexibilidade na tratativa da instituição e na sua condução dentro da realidade da sociedade. Conforme já me manifestei, melhor teria sido sua inserção no capítulo do Poder Judiciário, como mera regra de competência, porque na prática nem sempre o julgamento pelo Júri representa uma garantia para o acusado.

De fato, conforme já ponderei, não posso conceber uma garantia ou um direito que venha em prejuízo de seu beneficiário. No caso do Júri, pode ocorrer de o julgamento por este rito implicar, no caso concreto, uma certeza de condenação ex ante, sobretudo naqueles casos mais rumorosos, onde a mídia exerce papel fundamental na formação da opinião pública, fator ainda não bem aquilatado. [01]

Embora, de modo geral, os jurados julguem relativamente bem, vale dizer, de acordo com aquilo que razoavelmente verte do contexto probatório, o fato é que a estrutura do julgamento através de quesitos complexos dificulta sobremaneira a expressão da vontade real do Conselho de Sentença.

Veja-se, por exemplo, que não é incomum o jurado orientar seu voto no fato de que a publicização do resultado poderá quebrar o sigilo da votação, que é o que ocorre quando há unanimidade em relação a determinado quesito. O jurado, constatando tal possibilidade, acaba por votar contrariamente a sua convicção para simplesmente criar uma exceção que protegerá o sigilo. Também não é incomum que, uma vez que não há comunicação entre os jurados, mais de um deles tenha esta mesma iniciativa, levando, inclusive a soluções evidentemente absurdas.

Em determinado caso, materialidade e autoria são certas para seis dos jurados. Três deles, no entanto, acabam por votar contra esta convicção, a fim de resguardar o sigilo da votação. Votam embasados na premissa de que pelo menos um voto tem de contrariar aos demais. Como desconhecem o voto dos demais, mas acreditam que irá em determinado sentido, votam contrariamente, e somando-se ao voto dissidente, acabam por absolver o réu quando sua convicção seria pela condenação, ou vice versa. Resultado: uma decisão que não espelha a convicção real do Conselho de Sentença e um provável recurso por decisão manifestamente contrária à prova dos autos, cujo consectário é um novo julgamento, sabe-se lá quantos meses depois.

Por outro lado, há o direito do acusado de conhecer o resultado da votação. Em termos técnicos, este conhecimento pode ser crucial para a defesa, uma vez que pode interferir na validade da votação. É pensar-se no caso de impedimento ou suspeição de jurado, que poderá, ou não, interferir na validade da votação conforme a quantidade de votos em um e outro sentido.

A contraposição destas visões acaba por criar problemas insolúveis.

Paradoxalmente, o direito a decisões fundamentadas (artigo 93, inciso IX, da CF/88) incrivelmente não consta dos direitos e garantias individuais.

De qualquer forma, na medida em que o Tribunal do Júri foi (equivocadamente) alçado à condição de direito fundamental, as eventuais reformas somente poderão (tentar) otimizá-lo, jamais suprimi-lo.

Feitas estas digressões a título introdutório, cumpre iniciarmos a tratativa da questão principal desta abordagem, qual seja, a desclassificação nos delitos sujeitos ao procedimento do júri.


2- COMPETÊNCIA: NOÇÕES

A jurisdição de um Estado é una. É um atributo da soberania, pois jurisdição é possibilidade de coerção. Mas seu exercício pode ser fracionado na prática. Esta é uma conseqüência lógica da virtual impossibilidade de um único órgão jurisdicional concentrar todo o exercício da jurisdição. Desta divisão surge a noção de competência, já definida como "a medida da jurisdição atribuída a cada órgão jurisdicional."

Assim, conflito de jurisdição somente há na ordem internacional, quanto entes dotados de soberania objetivam fazer valer sua jurisdição sobre determinada situação. Excetuada esta hipótese, teremos sempre questões de competência.

A fonte primordial da determinação da competência está na Constituição Federal. A Carta Magna cria, direta ou indiretamente, os órgãos jurisdicionais do Estado e lhes atribui, com maior ou menor grau de extensão, a competência. Assim, por exemplo, temos uma divisão entre as justiças federal, estadual, militar, eleitoral e trabalhista.

Também prevê o texto constitucional órgãos jurisdicionais específicos, como sejam os tribunais superiores, os tribunais regionais federais, os tribunais estaduais etc...

Por vezes, refere de forma específica uma determinada espécie de objeto material ou qualidade do agente ou da vítima para determinar a competência.

Mas há uma competência que, embora constitucional, não consta do capítulo destinado ao Poder Judiciário. Trata-se de competência do Tribunal do Júri, inscrita no inciso XXXVIII, do artigo 5º da CF/88, para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Entre os crimes dolosos contra a vida não figuram o latrocínio (Súmula 603 do STF), o estupro seguido de morte ou e lesão nas mesmas circunstâncias, dentre outros crimes. Para estes, competente é o juiz singular, porque a morte é preterdolosa.

Como já afirmei em outras oportunidades, a meu juízo, o inciso XXXVIII do artigo 5º da CF/88 deveria figurar no capítulo do Poder Judiciário, ao passo que a norma do artigo 93, inciso IX, deveria encontrar-se dentre os direitos e garantias fundamentais. Por outras palavras, antes de um direito individual, o artigo 5º, inciso XXXVIII, da CF/88 condensa uma norma típica de competência que, como tal, deveria ser tratada.

A fundamentação das decisões, esta sim é verdadeira garantia do cidadão contra o arbítrio e a parcialidade. Foi um grande e injustificável lapso do legislador constituinte não ter previsto a fundamentação das decisões como garantia constitucional de máxima envergadura. Onde está hoje, não é clausula pétrea, embora possa se afirmar que está ínsita na cláusula do devido processo legal material.

Em termos de processo penal, a competência pode ser determinada a partir de uma série de enfoques. Pode ser determinada ratione materiae, ratione personae, e ratione loci. Esta última é forma de competência relativa.

Pode ainda, ser observado o critério funcional (competência absoluta), tanto vertical como horizontal. No primeiro exemplo, temos a competência dos tribunais para conhecer de recursos. No segundo, a divisão pode se dar por fase do processo ou por objeto do processo. Exemplo da primeira categoria da competência funcional horizontal é a competência do juiz singular para julgamento do processo de júri na fase de pronúncia em contraponto à competência dos jurados para o julgamento de meritis. Exemplo da segunda é a competência do tribunal para julgar a exceção da verdade oposta contra pessoa sujeita originariamente a sua competência ratione personae.

Associadas ao instituto da competência temos a conexão e a continência. Através delas, fica estabelecida uma relação entre situações que determinam o processamento conjunto de dois ou mais delitos. Estas infrações não estão ontologicamente relacionadas de forma que imprescindivelmente tivessem de fazer parte de um mesmo processo.

Três são as formas de conexão, a saber: Intersubjetiva, ou objetiva-subjetiva; objetiva, material ou teleológica; instrumental ou probatória.

A primeira pode ocorrer sob três formas: ocasional, concursal ou por reciprocidade.

Na hipótese de conexão intersubjetiva ocasional, há pessoas reunidas, sem vinculação alguma entre elas. Já havendo conexão intersubjetiva recíproca, as infrações são cometidas por várias pessoas, umas contra as outras, referindo-se àquelas situações como, por exemplo, ocorre com certa freqüência atualmente com torcedores das duas equipes de futebol. Em se tratando da conexão intersubjetiva ocasional ou recíproca, tem-se o mesmo lugar e tempo.

Já na conexão intersubjetiva concursal ocorre a conexão independentemente da diversidade de tempo e lugar, sendo o nexo justamente o concurso entre duas ou mais pessoas para praticar duas ou mais infrações.

A objetiva ou lógica ou material ocorre quando uma infração for praticada para facilitar ou ocultar outro delito ou para obter vantagem ou para conseguir impunidade. A conexão objetiva pode ocorrer com uma só pessoa. Quando uma infração é cometida para facilitar a prática de outra, fala-se também em conexão teleológica. Quando cometida para facilitar ou assegurar a ocultação, impunidade ou vantagem em relação a outra, fala-se em conexão conseqüencial.

A Instrumental ou probatória é a conexão processual típica, ocorrendo quando a prova de uma infração seja necessária para provar outra.

A continência, de seu turno, manifesta-se sob duas formas: a) Concursal ou por cumulação subjetiva (art. 77, I) decorrente de uma só infração, praticada mediante concurso de agentes. b) Por cumulação objetiva: nos casos do art. 70 do CP (concurso formal); art. 73 (aberratio ictus); art. 74. Nesses casos há uma só ação com pluralidade de eventos.

Nestas hipóteses, o que orienta o legislador são critérios de conveniência, a fim de evitar soluções logicamente contraditórias e o aproveitamento racional da prova. Daí que o próprio conceito jurídico do que caracteriza uma e outra situação seja legal.

O Tribunal do Júri, em vista de seu status constitucional, apresenta vis atractiva, de forma que os delitos conexos são submetidos ao rito especial, ressalvados os casos que também estão sujeitos a uma competência constitucional, como ocorre, v.g. com a competência ratione personae estabelecida para os governadores de Estado, julgados pelo Superior Tribunal de Justiça.

A competência ratione personae somente prevalece sobre a do júri, contudo, quando estabelecida na Constituição Federal. As competências por prerrogativa de função estabelecidas exclusivamente pelas Constituições Estaduais não prevalecem sobre a do júri, conforme a Súmula nº 721 STF.


3- PROCEDIMENTO COMPLEXO

Em duas ocasiões pode ocorrer a desclassificação no procedimento do Tribunal do Júri. Como cediço, o procedimento do Júri é escalonado em duas fases, o judicium accusationis, também chamado de sumário da culpa, e o judicium causae.

A primeira fase se inicia com a denúncia e termina com o trânsito em julgado da sentença da fase de pronúncia. Nesta primeira fase, o procedimento é idêntico ao procedimento comum, dos delitos apenados com penas de reclusão, com a peculiaridade da supressão da fase de requerimento de diligências do artigo 499 do CPP. Diversidade também ocorre nas alegações de pronúncia, também conhecidas como alegações do artigo 406, cujo prazo é de cinco e não de três dias, como ocorre no caso do artigo 500 do CPP.

Nesta fase, quatro alternativas se colocam ao julgador: pronunciar, impronunciar, desclassificar ou absolver sumariamente.

3.1) Pronúncia

A pronúncia exige certeza da materialidade e indícios de autoria. A materialidade se traduz no conjunto de vestígios sensíveis deixados pela execução do delito. Ordinariamente, nos delitos dolosos contra a vida encontra corporificação no auto de necropsia. Nem sempre, porém, pois se o delito for tentado, poderemos ter duas hipóteses.

Se a tentativa é cruenta, ou seja, se a vítima foi atingida, teremos auto de exame de corpo de delito, ao passo que se a tentativa for "branca", ou incruenta, sequer isso se terá, pois a vítima não terá sido atingida. Nestes casos, não há propriamente uma materialidade da infração, cuja existência demandará invocação de outras espécies de prova.

Por vezes, a identificação do animus necandi se torna extremamente difícil. Nem sempre a espécie de arma utilizada ou a região visada na vítima denotam claramente a intenção do agente.

Aquele que dispara uma arma de fogo contra outrem presumivelmente quer matá-lo, pois as armas de fogo ordinariamente produzem lesões letais. Pode ocorrer, no entanto, que o disparo inequivocamente seja dirigido a uma área onde a probabilidade do evento morte é reduzida. Nesta última hipótese, não obstante a utilização de uma arma letal, o dolo é dirigido, também presumivelmente, à lesão se ficar claro que o local atingido foi o efetivamente visado.

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E o inverso também é verdadeiro, ou seja, uma agressão perpetrada com uma arma que ordinariamente não causa a morte ou direcionada um local onde este evento tem menor probabilidade de ser produzido pode esconder um ato movido pelo dolo homicida. O ferimento em um braço da vítima pode denotar que tentava se defender de golpes de uma faca, por exemplo, os quais tinham por alvo o tórax. Por outro lado uma pedra ou uma ferramenta podem ser eficazmente utilizados como instrumentos para um delito de homicídio consumado ou tentado, ainda que comumente não possam ser identificadas como armas letais. Em todas estas hipóteses mencionadas, a aferição da real intenção do agente requer uma acurada análise do contexto dos fatos.

Há, ainda, uma premissa que não pode ser olvidada no que diz respeito à sentença de pronúncia. Por tratar-se de um juízo preliminar de admissibilidade, a análise é informada pelo princípio "in dúbio pro societate". Na prática, este princípio, que é o contraposto do "in dubio pro reo" e que, por isso mesmo, é exceção [02], implica em que na dúvida deva o magistrado pronunciar, ou, em um sentido inverso, a pronúncia somente não ocorrerá se houver comprovação cabal de circunstâncias legais que a afastem.

Enquanto que nos demais procedimentos criminais a atuação do julgador é pautada pelo princípio "in dúbio pro réu", de forma que a dúvida opera a favor do acusado, na sentença desta fase do procedimento do júri a dúvida opera "pro societate" vale dizer, em favor da acusação e da pronúncia.

Logo, para que ocorra a pronúncia, não haverá necessidade de aprofundamento na análise da prova da existência do delito e dos indícios de autoria. Aliás, aqui os indícios de autoria por si só bastam, o que não ocorre ordinariamente nos juízos criminais, quando, em regra, os indícios somente fornecem sustentáculo a uma condenação se somados a outras provas.

Como mero juízo de admissão ao julgamento pelo Tribunal Popular, a sentença de pronúncia não transita em julgado. Trata-se de hipótese de preclusão pro judicato, e de uma sentença de natureza processual. [03] Por este motivo, se a denúncia descrevia tentativa de homicídio e vem a ocorrer a morte da vítima após a sentença de pronúncia, não se há falar em aplicação do artigo 384 do CPP ou em necessidade de aditamento, bastando que dos autos seja concedida vista a acusação e à defesa para que se manifestem, proferindo o juiz nova sentença. Isso não impede, todavia, que entenda por bem o Ministério Público oferecer aditamento.

Ainda pelo mesmo motivo (ser decisão de admissão) deve o magistrado tomar redobrados cuidados com a linguagem utilizada na decisão. A redação deve ser comedida, sintética e direta, e a análise da prova não deve ir além do necessário. A demasia de fundamentação pode ser utilizada como elemento da acusação em plenário, causando prejuízo ao réu. Se basta indício de autoria, sua constatação é o quantum satis. Não deve o julgador formar um juízo de certeza e muito menos formular qualquer afirmação neste sentido nos autos, ainda que a prova assim pudesse legitimá-lo em um julgamento levado a efeito em outro rito. O excesso pode inclusive, conduzir à nulidade da sentença, pois "a motivação da pronúncia é condição de sua validade e, não, vício que lhe suprima a eficácia, limitando-a, contudo, em intensão e extensão, a sua natureza específica de juízo de admissibilidade da acusação perante o Tribunal do Júri." [04]

Também deve o magistrado abster-se de quaisquer considerações acerca de agravantes e atenuantes e de circunstâncias como a continuidade delitiva ou o concurso de delitos. Mas as qualificadoras têm de ser analisadas e devidamente fundamentadas, observada a limitação acima referida quanto à linguagem. Deveras, "a pronúncia comporta, exclusivamente, o exame da existência do crime e de indícios da autoria, aí incluindo-se eventuais qualificadoras que são integrativas do tipo, essenciais à classificação. A inclusão de agravantes, atenuantes, causas de aumento e diminuição de pena, concurso de crimes invade a competência privativa do júri que será perguntado sobre trais questões, independente de ter sido mencionada na denúncia, podendo ser articuladas no libelo ou até dos debates em Plenário. Salvo as atenuantes, que serão obrigatoriamente formuladas pelo juiz-presidente, conforme artigo 484, parágrafo único, incisos I, II e III do CPP." [05]

E os crimes conexos? Quanto a eles há divergência acerca da necessidade ou não de tratativa na sentença de pronúncia. Para uns, basta ao julgador tratar do crime contra a vida, sendo a atração decorrente da conexão ou continência automática. Não seria necessário, portanto, analisar materialidade e autoria em relação aos crimes conexos ou que apresentem relação de continência. Neste diapasão, cita-se Aramis Nassif:

"Tenho sustentado que os crimes conexos aos da competência do Tribunal do Júri não são objetos de sentença de pronúncia, além dos estritos limites da declaração da conexidade. Acontece que, primeiro, a lei não trata em qualquer parte desta decisão; em segundo, deve-se ter presente que, entendendo admissível a postulação acusatória, ela trata de reconhecer a existência do fato e a autoria, ainda que indiciariamente. Tais afirmativas judiciais para os crimes que não admitem teses como, por exemplo, de legítima defesa (v.g. estupro), pode decretar, se pronunciado, a própria condenação do acusado pela certa influência que exercerá no âmbito dos jurados. Por isso mesmo já decidiu o TJRS que,. ..havendo pronúncia em relação ao delito prevalente (homicídio), não cabe ao juiz, no ato pronunciatório, manifestar-se sobre o delito conexo (lesões corporais)...(TJRS, apel. 696188994, j. em 28.11.96). Ocorrendo desclassificação pelo Tribunal Popular, haveria, no mínimo, embaraço para absolver quando o magistrado julgar o fato cuja autoria e existência atestara anteriormente. Agrava-se o quadro em perspectiva se outro for o juiz que, para a absolvição, deverá arrostar o entendimento da pronúncia" [06].

Para outros, a fundamentação em relação aos crimes conexos ou que apresentem relação de continência é necessária, imperativa, sob pena de nulidade. Sufragando esta posição, cita-se, do acervo pretoriano, o julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº 70014583264, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, relatado pelo Desembargador Ivan Leomar Bruxel, em cujo acórdão consta:

"Ao exame dos crimes conexos, no momento da decisão de pronúncia, verificará o Juiz tão-só a viabilidade, a admissibilidade da acusação, remetendo a decisão final para o Tribunal do Júri, que evidentemente poderá reconhecer ou afastar as figuras penais dos delitos conexos. Mas estará presente a possibilidade, mera possibilidade de condenação, da mesma forma que a absolvição. Mas, ao contrário, se examinando a prova a respeito dos fatos conexos, o Juiz de pronto os afastar, esta decisão favorece o réu, na medida em que, na sessão de julgamento perante o Tribunal do Júri, tal matéria nem mesmo será submetida a debate.

Seguindo a mesma linha da decisão de pronúncia a respeito do fato principal, o Juiz não afirmará a existência e autoria dos crimes conexos, mas tão só a possibilidade, de maneira que não haverá vinculação, e por conseqüência dificuldade para absolver, se os jurados afastarem a competência do Tribunal do Júri.

No caso concreto, inclusive, cresce em importância a análise do crime conexo, pois intimamente ligado à qualificadora.

Afinal de contas, assim como está a decisão de pronúncia, pode até ser considerado presente o constrangimento ilegal pelos fatos secundários, uma vez que o Juiz não fez qualquer análise da prova, confrontando as declarações do réu, das testemunhas e da vítima. Haverá, a respeito dos fatos secundários, apenas o debate em plenário, sem manifestação judicial do Juiz-Presidente, o que implica reconhecer a não incidência do duplo procedimento (perante o Juiz singular e perante o Tribunal do Júri) característico nos casos de crimes contra a vida."

Na mesma esteira, no julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº 70013029376, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, o relator, Desembargador Ranolfo Vieira, ao tratar da fundamentação quanto aos crimes conexos, conclui:

"A determinação legal abrange, tanto os crimes de competência originária do tribunal do júri, como os que passam à mesma competência por força de conexão.

Ademais, é garantia fundamental do direito de defesa saber o réu do que está sendo acusado.

É certo que o Juiz não pode se manifestar sobre o mérito dos crimes conexos, isto é, não os pode julgar, por incompetente, como ocorre, aliás, com os crimes originalmente de competência do tribunal do júri. Não há diferença neste ponto.

Mas, assim como ocorre com estes últimos, também é necessário o juízo de admissibilidade quanto aos delitos conexos, pois, entendendo o magistrado inexistente prova da existência do fato ou de indícios mínimos de autoria quanto a estes, não devem ser submetidos ao Tribunal do Júri" [07].

Para os prosélitos desta corrente jurisprudencial, "no processo do Tribunal do Júri é necessário, para o juízo de admissibilidade, a análise da materialidade e dos indícios da autoria também do crime conexo, sob pena de nulidade da pronúncia". [08]

De minha parte, consoante pensamento já externado em outra oportunidade [09], a sentença de pronúncia deve ser fundamentada também em relação aos crimes conexos, mas com redobradas cautelas a fim de não gerar vinculatividade lógica em relação possibilidade de desclassificação em plenário.

O julgamento de pronúncia deve funcionar como uma filtragem em garantia do acusado. Sendo o julgamento do júri embasado na livre e íntima convicção do jurado, com possibilidade de que julgamentos injustos prevaleçam, uma vez que apelação por julgamento manifestamente contrário à prova dos autos somente pode ser utilizada uma única vez, a pronúncia deve servir como filtro para que os fatos postos à apreciação apresentem uma feição de mínima plausibilidade em relação ao jus puniendi a eles relativo.

Admitida a tese de que o magistrado sobre eles não pode se manifestar abre-se ensejo a que pretensões punitivas manifestamente inadmissíveis após a realização da instrução venham a ser postas à apreciação do Conselho de Sentença.

Não se olvide, ademais, a possibilidade de prescrição, mormente quando a tese da prescrição pela pena em perspectiva ou projetada ganha a cada dia mais espaço. Presente a prescrição em relação ao crime conexo, há que ser decretada mesmo ainda na sentença de pronúncia.

A própria questão da conexão pode ensejar a necessidade de manifestação do julgador. De fato, é de bom alvitre que além da materialidade e autoria, sucintamente abordadas com as cautelas já apontadas, também exista breve manifestação acerca da presença de circunstância de justifique o julgamento conjunto.

Então, de qualquer forma, há necessidade de fundamentação em relação aos crimes conexos, o que é uma exigência constitucional (artigo 93, inciso IX, da CF/88).

À sentença de pronúncia, por força do artigo 408, parágrafo 4º, são aplicáveis a emendatio libelli [10] e a mutatio libelli, observada, quanto a este último caso, a providência do artigo 410 e seu parágrafo único, do CPP, que se assemelha ao artigo 384 do CPP.

Também na sentença de pronúncia surge a questão da segregação do acusado, agora pronunciado.

A sentença de pronúncia pode ensejar a manutenção de prisão cautelar anteriormente existente ou a decretação da custódia. Em qualquer caso, a constrição da liberdade decorre da própria sentença, que representa o título de legitimação da prisão. Por outras palavras, há sempre uma nova decisão que, mantendo ou não a custódia, substitui a anterior. [11]

A redação do parágrafo 2º do artigo 408 deixa entrever a automaticidade da segregação caso o acusado não seja primário e tenha bons antecedentes. Esta perspectiva resta superada pelo advento da Constitituição Federal de 1988 e pela sistemática que a doutrina e jurisprudência têm imprimido ao instituto das prisões cautelares.

Podemos dizer, sem medo de errar, que a ordem constitucional vigente não se compraz com a automatização da prisão cautelar, qualquer que seja sua forma, se não houver concreta necessidade. Na esteira deste entendimento, já decidiu o STJ que "a prisão cautelar, providência processual de caráter excepcional, só deve ser imposta quando presente um dos motivos que autorizam sua adoção, que deve restar claramente demonstrado, não resultando sua necessidade do fato de estar comprovada a existência e a autoria de crime considerado grave". [12] Em outra oportunidade, o mesmo sodalício assentou que:

"No ordenamento constitucional vigente, a liberdade é regra, excetuada apenas quando concretamente se comprovar a existência de periculum libertatis. Ausentes os pressupostos e requisitos da prisão cautelar (art. 312 do CPP), descabe determinar a prisão em face de pronúncia, mero juízo de admissibilidade da acusação. A prisão preventiva é medida excepcional de cautela, cabível apenas quando comprovados objetiva e concretamente, com motivação atual, seus requisitos autorizadores." [13]

No julgado supracitado, o relator, Ministro Paulo Medina, conclui, acertadamente, que "os princípios constitucionais do Estado de Inocência e da Liberdade Provisória não podem ser elididos por normas infraconstitucionais que estejam em desarmonia com os princípios e garantias individuais fundamentais."

Ainda mesmo em casos onde a liberdade provisória está expressamente negada por lei, tem sido aplicada quando evidente a desproporcionalidade e a desnecessidade da medida diante do caso concreto.

A simples ausência de primariedade ou de bons antecedentes não pode, diante deste quadro, servir de arrimo para a automatização da prisão. A adoção pelo artigo 310, parágrafo único, dos vetores dos artigos 311 e 312 do CPP, também utilizados para vedar o cabimento de fiança, são seguro indicativo de que o sistema de prisões cautelares está sobre eles eixado, inclusive no que atine à prisão decorrente de pronúncia ou de sentença penal condenatória recorrível.

Logo, se presentes os requisitos para decretação da prisão preventiva, que são os mesmos obstativos da concessão de liberdade provisória e da fiança (artigo 324, inciso IV do CPP), a custódia cautelar poderá ser decretada por ocasião da sentença de pronúncia. A primariedade e os bons antecedentes serão considerados apenas como elementos de convicção e não como requisitos vinculativos.

Caso contrário, teríamos a incongruência de ver um réu que, embora não apresentando bons antecedentes ou não sendo primário, respondeu à acusação em liberdade, diante da desnecessidade concreta de sua segregação, vir a ser preso por força da sentença de pronúncia apenas pela presença daquelas circunstâncias.

Nesta ordem de idéias, concebem-se duas situações. Se o réu não estava preso anteriormente, somente se presentes os requisitos dos artigos 311 e 312 do CPP poderá ser decretada a prisão. Parece intuitivo que se anteriormente não havia sido decretada a prisão preventiva, somente fatos ou provas novos poderão justificar a segregação, não servindo esse qualificativo para a própria sentença de pronúncia.

Por outro lado, se o réu já se encontrava preso, poderá o julgador manter a segregação por força da continuidade do quadro fático que anteriormente a legitimou, ou revogá-la se cessado. A respeito, já decidiu o STJ que "a manutenção da custódia cautelar constitui efeito natural da pronúncia, se continuam presentes os motivos ensejadores do decreto". [14] A presença de bons antecedentes e primariedade, contrario sensu do que preconiza o parágrafo 2º do artigo 408 do CPP, não enseja, per se, a revogação da custódia cautelar se subsistem os motivos que a tornaram necessária. Estando o réu preso é obrigatória a manifestação acerca da manutenção da prisão (agora com novo título) ou concessão de liberdade provisória.

3.2) Impronúncia

A impronúncia ocorre quando, por não reconhecer a existência do crime ou indícios de autoria, o magistrado julga improcedente a denúncia. Na verdade, trata-se de uma absolvição. De fato, se o crime não ocorreu estamos diante da hipótese prevista no artigo 386, inciso I do CPP. Como em relação à materialidade há necessidade de prova, também ocorrerá a impronúncia se não estiver suficientemente comprovada a existência do fato, o que nos conduz ao artigo 386, inciso II do CPP. Também conduz à impronúncia a circunstância de "não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal", o que se amolda ao artigo 386, inciso IV do CPP.

A hipótese do artigo 386, inciso III, do CPP é de difícil ocorrência em caso de delito contra a vida e a solução será encontrada na desclassificação ou absolvição sumária.

Obviamente, se o fundamento da impronúncia for a inexistência do fato, haverá formação de coisa julgada, apesar do que afirma o parágrafo único do artigo 409 do CPP. O mesmo vale para o caso de ter sido comprovada de forma peremptória a inexistência de qualquer forma de participação do acusado. Mas isso não vale para caso de apenas a ausência de indícios mínimos de autoria ter servido de sustentáculo para a impronúncia. [15]

O afastamento da pronúncia pode ocorrer pela via recursal (recurso em sentido estrito), e neste caso teremos a denominada despronúncia.

Como verdadeira sentença absolutória, a impronúncia implica imediata liberação do acusado se estiver preso somente por força do processo onde prolatada a decisão.

Vale registrar que, operada a pronúncia, resta prejudicada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo na instrução (Súmula 21 do STJ).

3.3) Absolvição Sumária

Sob o título de absolvição sumária encontra-se a decisão que absolver o réu com base nas circunstâncias do artigo 386, inciso V, do CPP, pois as circunstâncias que excluem o crime ou isentam o réu de pena (artigo 411 do CPP) são as mesmas mencionadas naquele dispositivo.

Exclusão do crime significa excludente da ilicitude. Isenção de pena reporta-se a dirimentes da culpabilidade. Dentre as causas de exclusão da ilicitude, encontramos a legítima defesa, o exercício regular de direito, o estado de necessidade e o estrito cumprimento de dever legal. A estas se acrescem outras quatro a saber: aborto necessário (art. 128, I, CP), aborto no caso de gravidez resultantede estupro (art. 128, II, CP), interveção cirúrgica justificada pelo iminente perigo de vida (art. 146, § 3º, I, CP) e coação para impedir o suicídio (art. 146, § 3º, II, CP). Também mencionam a doutrina e a jurisprudência a existência de causas supralegais de esclusão da ilicitude de que seria exemplo emblemático o consentimento do ofendido.

Quando falamos em dirimentes da culpabilidade, podemos elencar três grupos de causas que se amoldam exatamente aos requisitos da culpabilidade, ou seja, imputabilidade, potencial consciência da ilictude e exigibilidade de conduta diversa. Em primeiro lugar existem os casos de inimputabilidade do sujeito: a) doença mental, desenvolvimento mental incompleto e desenvolvimento mental retardado (art. 26); b) desenvolvimento mental incompleto por presunção legal, do menor de 18 anos (art. 27); c) embriaguez fortuita completa (art. 28, §1º).

Há ausência de culpabilidade pela inexistência da possibilidade de conhecimento do ilícito nas seguintes hipóteses: a) erro inevitável sobre a ilicitude do fato (art. 21 do CP); b) erro inevitável a respeito do fato que configuraria uma descriminante (descriminantes putativas, art. 20, §1º, do CP); c) obediência à ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico (art. 22, segunda parte, do CP).

Por fim, exclui-se a culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa na coação moral irresistível (art. 22, primeira parte,do CP). A jurisprudência, inclusive do STJ, tem admitido com freqüência cada vez maior, causas extralegais de exclusão da culpabilidade, desde que relativo a fato determinado, sendo a omissão do quesito no Júri causa de nulidade. [16] A respeito, no âmbito dos precedentes do STJ, consta na ementa do RHC nº 13.180/SP [17]:

"Há cerceamento de defesa no indeferimento de quesito correspondente à tese defensiva de exclusão da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa. Precedentes.

- Há cerceamento de defesa quando as teses por ela sustentadas em plenário não se refletem no questionário apresentado ao Conselho de Sentença."

Em outra ocasião, assentou o STJ a respeito da mesma matéria, em julgado do Ministro Félix Fischer [18]:

"A exigibilidade de conduta diversa, apesar de apresentar muita polêmica, é, no entendimento predominante, elemento da culpabilidade. Por via de conseqüência, sem adentrar na questão dos seus limites, a tese da inexigibilidade de conduta diversa pode ser apresentada como causa de exclusão da culpabilidade. Especificada e admitida a forma de inexigibilidade, aos jurados devem ser indagados os fatos ou as circunstâncias fáticas pertinentes à tese."

Não se há de olvidar que "a tese de inexigibilidade de conduta diversa, como causa excludente da culpabilidade, deve ser apresentada em quesitos desmembrados, quando há circunstâncias fáticas concorrentes, para evitar a complexidade da indagação em quesito único, sob pena de nulidade da quesitação." [19]

De notar, porém, que "a influência do estado puerperal não exclui o crime ou isenta a ré de pena, como exige o art. 411 do Código de Processo Penal. Ao contrário, faz parte do próprio tipo do art. 123 do Código Penal. O estado puerperal, pois, é elementar do tipo descrito como crime de infanticídio, e não uma excludente da criminalidade, a toda evidência." [20]

Vigendo o princípio "in dúbio pro societate" nesta fase, a absolvição sumária requer prova cabal de alguma das circunstâncias que caracterizam excludentes ou dirimentes.

A decisão está sujeita a "recurso de ofício", com efeito suspensivo. A rigor, de recurso não se trata. Realmente, a menção a um recurso de ofício tem recebido múltiplas críticas da doutrina, a começar pelo fato de que ressoa ilógico o juiz recorrer de sua própria decisão. A noção de recurso está ordinariamente e tradicionalmente ligada a uma irresignação manifestada pela parte, estando sujeita, dentre outros requisitos, à presença de interesse em recorrer pela criação de um gravame. Que interesse teria o julgador em recorrer de sua própria decisão?

Na verdade, o assim denominado recurso de ofício é uma condição de eficácia da decisão [21], assim como ocorre no reexame necessário do processo civil (artigo 475 do CPC), qualquer que seja a denominação que se lhe atribuir. Em uma eventual reforma do código, certamente seria recomendável que esta terminologia fosse revista.

Já que provido de efeito suspensivo o recurso, teremos situação onde a sentença absolutória não terá por corolário a imediata liberação do acusado caso esteja preso.

3.4) Desclassificação

Analisando os fatos descritos na denúncia, pode o julgador se convencer, diante das provas, de que o acusado não agiu motivado pelo animus necandi, mas ainda assim, perpetrou comportamento que, à luz do ordenamento penal, pode constituir infração penal.

É o caso, por exemplo, do agente que, podendo inequivocamente matar a vítima, visto que dispõe de arma letal em plenas condições de ser eficazmente utilizada neste desiderato, apenas a lesiona em região anatômica que não oferece maior risco. Pode, ainda, ocorrer que o delito contra a vida, consumado ou somente sob a figura da conatus, tenha por escopo outra infração ou decorra de preterdolo. Nesta condição podemos encontrar o latrocínio ou o estupro seguido de morte. Em ambos os casos o delito contra a vítima não era o principal objetivo do agente. Tal circunstância poderá somente vir à tona após a instrução. [22]

Estaremos, então, diante de hipótese de desclassificação. A respeito, determina o artigo 410 do CPP:

"Quando o juiz se convencer, em discordância com a denúncia ou queixa, da existência de crime diverso dos referidos no art. 74, § 1º, e não for o competente para julgá-lo, remeterá o processo ao juiz que o seja. Em qualquer caso, será reaberto ao acusado prazo para defesa e indicação de testemunhas, prosseguindo-se, depois de encerrada a inquirição, de acordo com os arts. 499 e segs. Não se admitirá, entretanto, que sejam arroladas testemunhas já anteriormente ouvidas."

Os crimes do referidos pelo artigo 74, parágrafo 1º, do CPP são exatamente os delitos dolosos contra a vida, os quais empolgam a competência do Tribunal do Júri. Ordinariamente, a constatação de que o delito não é doloso contra a vida advirá da análise do elemento anímico do agente, ainda que isso ocorra através da consideração de aspectos externos do seu agir (tipo objetivo).

A denúncia se fundamenta em uma conduta que induz a crença de que agente atuou motivado pelo dolo de matar. A análise do caderno probatório revela que a intenção era diversa. Subsiste, contudo, ato típico.

Deverá o julgador, se não for competente para o julgamento, remeter o feito para o juiz que o seja. A ocorrência desta hipótese vai depender de a vara do júri (no Estado do Rio Grande do Sul, normalmente a primeira Vara Criminal ou especializada, como ocorre na capital do Estado) ter competência para julgamento do crime.

Mas qualquer que seja a solução, deverá ser aberto prazo para defesa e indicação de testemunhas prosseguindo-se, posteriormente, de acordo com o artigo 499 do CPP. Tal providência, por óbvio, pressupõe o trânsito em julgado da decisão. Diz o artigo 410 que não podem ser arroladas testemunhas anteriormente ouvidas.

A menção ao artigo 499 do CPP implica dizer que estará sendo utilizado o rito dos delitos apenados com reclusão, seguindo-se a fase dos artigos 500 (alegações finais) e 502 (prazo de cinco dias para o juiz determinar diligências).

A vedação a que se arrolem testemunhas já ouvidas me parece não ser a melhor solução, pois foram anteriormente ouvidas tendo em vista uma provável sentença de pronúncia, cujos requisitos são diversos da sentença escudada nos artigos 386 e 387 do CPP.

Uma vez proferida a desclassificação e "transitada em julgado a decisão que afastou o dolo de matar, vedado oferecimento de aditamento à denúncia novamente por tentativa de homicídio, com variação da ´´aberratio ictus´´ anterior para o dolo direto, sem alteração do fato relevante." [23]

Mas o maior problema que surge é o que decorre do fato de à infração eventualmente constatada serem aplicáveis os institutos previstos na Lei nº 9.099/95, especialmente a transação penal e a suspensão condicional do processo. O Código de Processo Penal nada prevê. Duas soluções aparecem como possibilidades.

A primeira consiste em simplesmente ignorar a aplicação dos mencionados institutos. Já teria transcorrido um processo, inclusive com instrução, inviabilizando a invocação de um instituto que obsta a propositura da ação penal (transação penal) ou que suspende o seu curso (suspensão condicional do processo).

Especificamente em relação à suspensão condicional do processo, em caso onde a desclassificação se deu em plenário, decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais que: "A suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95, não é aplicável em tal hipótese. Se o objetivo e finalidade da lei é evitar o processo e todo transtorno que acarreta não só ao réu como à própria justiça, não há como cogitar-se de suspensão, se a instrução já se fez encerrada, a sentença de pronúncia já foi proferida e já houve o julgamento pelo Tribunal do júri." [24] A mesma solução é encontrada no julgamento da Apelação Crime Nº 70004868402, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, relator o Desembargador Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, onde consta: "Com a desclassificação de tentativa de homicídio para delito tipificado como infração de menor potencial ofensivo – perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132, CP)-, se mostra incabível à aplicação da Lei n. 9.009/95." [25]

A segunda reside em aplicar, se presentes os pressupostos, qualquer dos dois institutos, o que conduziria ao paradoxo acima mencionado.

De minha parte, entendo que o acusado não pode ser prejudicado pela errônea qualificação do delito por ocasião da denúncia, quer quanto a seus elementos constitutivos, quer quanto a uma causa de julgamento conjunto que fez com que o delito fosse, não obstante não ser doloso contra a vida, submetido ao julgamento pelo rito do júri.

Logo, mesmo tendo havido processo, acredito que deve ser oportunizada a aplicação dos benefícios, sob pena de injustificável tratamento desigual ao acusado que, por qualquer motivo, foi denunciado por delito doloso contra a vida. Com este entendimento, o STJ já se manifestou afirmando que "se a desclassificação de homicídio tentado para lesões corporais ocorreu durante o julgamento pelo Tribunal do Júri, deve o Juízo abrir vista ao Ministério Público, para manifestação a respeito de suspensão condicional do processo." [26]

Apesar de a maioria dos precedentes que admitem a aplicação dos institutos reportarem-se a desclassificações operadas em plenário (adiante analisadas), a conclusão é válida, pois tenha sido procedida pelo juiz singular ou pelo plenário, a situação é idêntica para os fins de aplicação dos benefícios da Lei dos Juizados Especiais.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. As desclassificações no procedimento do júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1197, 11 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9034. Acesso em: 22 dez. 2024.

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