1 INTRODUÇÃO
O sistema adotado pelo Código Penal Brasileiro para fixação das penas é o de Nelson Hungria, previsto no artigo 68 [01] da lei penal, o qual prescreve um procedimento que congrega três diferentes etapas. A pena-base, nesse sistema trifásico de aplicação das sanções penais, é entendida como a dosimetria inicial da pena a ser aplicada, devendo situar-se, necessariamente, dentro dos limites típicos, ou seja, entre o máximo e o mínimo previstos como pena abstrata para determinada conduta.
Conforme prescreve o artigo 68 do Código Penal, ela é aferida na primeira etapa do processo de dosimetria da pena, sendo, via de regra, modificada nas etapas seguintes do procedimento, quando são consideradas as circunstâncias agravantes e atenuantes, bem como as causas de diminuição e aumento da pena. A pena-base tem significativa importância por determinar concretamente o quantum de pena sobre o qual incidirão, caso estejam presentes [02], as circunstâncias previstas nas demais fases do procedimento, promovendo assim uma penalização individualizada.
O trabalho de fixação da pena é regulado por princípios e regras constitucionais e legais previstos, repectivamente, no artigo 5º, inciso XLVI da Constituição Federal e artigos 59 do Código Penal e 387 do Código de Processo Penal.
Todos esses dispositivos remetem o aplicador do direito à individualização da medida concreta, porém, é no caput do artigo 59 da lei penal que estão elencados os critérios norteadores da fixação da pena na primeira etapa do procedimento trifásico:
O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
[...]
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
[...]
Conforme se constata da leitura do caput desse dispositivo, as circunstâncias a serem analisadas pelo magistrado são: a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do crime, bem como o comportamento da vítima. A finalidade dessas circunstâncias, denominadas judiciais, por balizarem uma atuação jurisdicional fundada num exercício discricionário, é, como dito, permitir a aplicação de penas individualizadas e proporcionais que sejam necessárias e suficientes para promover a reprovação e a prevenção da conduta.
Essas circunstâncias podem ser divididas em dois grupos: subjetivas e objetivas. As primeiras dizem respeito aos antecedentes, à conduta, à personalidade e aos motivos do crime, e as segundas, às circunstâncias do crime, às conseqüências e ao comportamento da vítima.
Vale lembrar que tais circunstâncias, além de funcionarem como norteadoras da fixação da pena-base – objeto do presente estudo –, servem também, dentre outras coisas, para estabelecer quais penas são aplicáveis dentre as cominadas, qual deverá ser o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade e se é possível a substituição da pena privativa de liberdade aplicada por outra espécie de pena, quando cabível.
Essas circunstâncias, de acordo com Bitencourt [03], estão além dos elementos essenciais à constituição do tipo penal, "sem os quais a figura típica não se completa". Elas são, na verdade, elementos acidentais, que, embora não alterem a constituição ou a existência do tipo penal, influem na dosagem da pena.
Bitencourt acrescenta ao seu pensamento a doutrina de Aníbal Bruno [04], que conceitua as circunstâncias judiciais como "condições acessórias, que acompanham o fato punível, mas não penetram na sua estrutura conceitual e, assim, não se confundem com os seus elementos constitutivos". Assim, elas podem ser entendidas como elementos externos ao tipo penal, mas capazes de acrescentar ao delito praticado uma maior ou menor reprovabilidade.
Conhecidas as circunstâncias judiciais elencadas no Código Penal e a função que deve ser por elas exercida ante o fato punível, pode parecer, à primeira vista, que fixar a pena-base é uma missão cujo cumprimento deriva da simples aplicação de uma fórmula pré-determinada. Entretanto, Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli [05] chamam a atenção para o fato de que a fixação da pena com base nessa suposta fórmula "é bastante complexa e exige uma ordenação sistemática de critérios e regras, porque não se trata de uma síntese ordenada, mas de elementos um tanto dispersos, e cuja ordem hierárquica se faz necessário determinar". Sob esse prisma, deve ser admitido como comando geral a ordenar os demais comandos contidos no artigo 59 do Código Penal o seguinte critério: um quantum que seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
Ou seja, a partir dos critérios elencados na lei penal, deve derivar uma pena que seja individualizada, necessária e suficiente para promover a reprovação, que, grosso modo, pode ser entendida como a punição do agente porque delinqüiu e a prevenção, que, dividida em geral e especial, também grosso modo, teria como finalidades, respectivamente, fazer com que outras pessoas não delinquam pelo medo de serem punidas e fazer com que o agente não mais delinqua. Ademais, a pena resultante da aplicação desses critérios deve contemplar fundamentos principiológicos, tais como o da humanidade e o da proporcionalidade.
Partindo-se dessas premissas, surge uma questão: é possível ser aferida uma pena–base de modo justo, individualizado, humano e proporcional e que seja necessária e suficiente para promover a reprovação e prevenção do crime a partir dos critérios elencados no referido dispositivo como "fórmula" para alcançar esse fim?
A partir desse questionamento, o presente trabalho propõe-se a fazer uma análise crítica dos parâmetros de fixação da pena-base, a fim de constatar se eles efetivamente cumprem o papel a que se destinam ou se acabam por acentuar tendências discriminatórias fundadas em estereótipos, contribuindo, desse modo, para que haja na aplicação da pena uma seletividade desfavorável a determinados sujeitos.
Para se entender de forma global a essência dos comandos contidos no artigo 59 do Código Penal, é preciso compreender, de forma isolada, o sentido dos preceitos nele contido, fazendo-se necessária, para isso, uma análise pontual, ainda que breve, de cada um deles.
Na medida em que cada uma dessas circunstâncias precisa estar contida na sentença de modo fundamentado, sem que restem dúvidas quanto à subsunção da realidade fática ao preceito legal, cumpre, em primeiro lugar, tratar-se pontualmente da fixação da pena dentro dos limites típicos e da sua obrigatória fundamentação.
2 DA OBRIGATORIEDADE DE FUNDAMENTAÇÃO NA FIXAÇÃO DA PENA
Desde a Idade Média, o sistema de aplicação das penas passou por inúmeras transformações, frutos de um longo processo histórico-evolutivo, que, de certo modo, operou um movimento pendular, variando da ampla e irrestrita liberalidade do julgador em aplicar medidas sancionatórias até as penas fixas, retornando à concessão de uma maior margem de liberdade ao juiz, a partir de um sistema com parâmetros legais pré-definidos. [06]
De acordo com Cezar Roberto Bitencourt [07], a partir de um movimento reativo ao excessivo arbítrio dos juízes no período medieval, quando as penas eram absolutamente indeterminadas, surgiu uma nova concepção de Direito Penal que se contrapunha ao sistema anterior, tendo como fundamento um sistema punitivo pautado em penas fixas. Foram expoentes desse movimento Cesare de Beccaria e Montesquieu, que entendiam que ao juiz não deveria ser admitida a interpretação da lei, devendo ele restringir-se, portanto, à sua mera aplicação.
Porém, conforme assevera Bitencourt [08], se "a pena absolutamente indeterminada deixava demasiado arbítrio ao julgador, igualmente, a pena absolutamente determinada impediria o seu ajustamento, pelo juiz, ao fato e ao agente, diante da realidade concreta". Assim, fez-se imperativa uma evolução, a partir da qual abriu-se "um grande crédito à livre dosagem das penas", com o estabelecimento de limites máximos e mínimos, a partir dos quais, com fundamento no princípio do livre convencimento, o juiz, fundamentadamente, estabeleceria a pena cabível ao caso concreto.
Hoje, no sistema jurídico brasileiro, é nesses limites pré-estabelecidos que se pauta o trabalho de fixação da pena, o qual, de acordo com Guilherme de Souza Nucci [09], pode ser conceituado como "um processo judicial de discricionariedade juridicamente vinculada visando à suficiência para prevenção e reprovação da infração penal", por meio do qual o juiz, em conformidade com os limites mínimo e máximo estabelecidos por lei, quantifica, de forma motivada, a pena-base, primeira etapa da dosimetria da pena.
Quando se fala em forma motivada, deve-se entender esse elemento como o dever que tem o magistrado de motivar a sentença, a qual, de acordo com Ricardo Aronne [10], é "um ato complexo, permeado por questionamentos críticos, históricos e racionais". Por isso, o juiz, ao elaborar a sentença, "deve expor a sua motivação e todo o horizonte dentro do qual a desenvolveu".
Conforme assevera Nucci [11], "é a motivação da sentença que oferece garantia contra os excessos, os erros de apreciação, as falhas de raciocínio ou de lógica ou os demais vícios de julgamento".
A motivação é obrigação instituída pela Constituição Federal, em seu artigo 93, inciso IX, que determina que todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, sob pena de nulidade. Assim, é inquestionável o fato de que todos os argumentos utilizados pelo órgão julgador devem apresentar a sua respectiva motivação e que, do contrário, a decisão é nula de pleno direito.
Assim determina o texto constitucional:
Art. 93 – omissis.
[...]
IX – Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão Públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]
De acordo com José Eulálio Figueiredo de Almeida [12], a fundamentação é exigência do próprio Estado, "órgão monopolizador da jurisdição e encarregado da repressão dos delitos, desde quando se organizou politicamente e acabou com a jurisdição privada". Desse modo, sendo a sentença uma resposta à sociedade, que ao Estado delegou tal poder, é imperativo que a sociedade possa ter acesso às razões que conduziram o magistrado a decidir de um determinado modo e não de outro, bem como avaliá-las. Assim, ainda que a sentença absolva o réu, é preciso que dela constem os fundamentos que conduziram o magistrado ao seu veredicto.
Todavia, dentre as razões que ensejam a necessidade de haver uma fundamentação adequada, a principal delas é o eventual inconformismo das partes em relação à decisão proferida, já que, optando pela possibilidade de reformá-la ou cassá-la, é com base na motivação da sentença que exercitarão os seus direitos de recurso.
Assim, entende-se que não basta o juiz fazer menção ao artigo 59 na sentença, é preciso que a fixação da pena seja fundamentada, devendo, por isso, cada uma das circunstâncias em comento estar expressamente descrita na sentença, de modo que fiquem absolutamente claros para o réu de quais fundamentos se valeu o magistrado para majorar a sua pena, possibilitando assim ao réu recorrer, se entender oportuno.
Atualmente, tem se firmado o entendimento de que é suficiente que o magistrado motive, obrigatoriamente, apenas as circunstâncias que sejam desfavoráveis ao réu, presumindo-se, nesse caso, que aquelas que não foram mencionadas lhe são favoráveis. Esse entendimento se sustenta no fato de que o juiz parte sempre do mínimo de pena fixado em lei, não sendo possível, nesta etapa da dosimetria da pena, fixar-se uma medida sancionatória abaixo do mínimo legal. [13]
Não há dúvidas quanto à obrigatoriedade da fundamentação, porém, a questão que se insurge nesse âmbito é quanto aos critérios valorativos em que se pauta o juiz para analisar as circunstâncias judiciais a fim de justificar diferentes gradações das medidas sancionatórias. Assim, na seqüência, far-se-á uma análise pontual de cada uma das circunstâncias previstas no artigo 59, a fim de que se possa obter o um contorno dos critérios que as delimitam.
3 CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS
3.1 A culpabilidade
Começando pela culpabilidade, primeira circunstância a ser observada pelo magistrado na individualização da sanção, Bitencourt [14] a define como "o elemento de medição ou de determinação da pena". Isso porque, "nessa acepção, a culpabilidade funciona não como fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de culpabilidade".
Bitencourt [15] considera importante que o magistrado tenha em mente o real significado do elemento culpabilidade, nessa acepção do termo, para que não incorra em erros como afirmar que "o agente agiu com culpabilidade, pois tinha consciência da ilicitude do que fazia", porque, nessa outra acepção, a culpabilidade é somente fundamento da pena, ou seja, ‘’é característica negativa da conduta proibida", sendo portanto objeto de análise juntamente com a tipicidade e a antijuridicidade e, se esse juízo for negativo, sequer há condenação.
É ilustrativa, nesse sentido, a explicação de Luís Flávio Gomes [16], quando afirma que a culpabilidade tem, "no Direito penal, tríplice função: (a) de fundamento da pena; (b) de limite da pena (cada um é punido nos limites da sua culpabilidade – CP, art. 29) e (c) de fator de graduação da pena (CP, art. 59)".
Assim, entende-se que, no contexto do artigo 59, avalia-se não se há culpabilidade – porque, tendo havido a condenação, é evidente que ela existe –, mas sim a gradação dessa culpabilidade, ou seja, o grau de reprovabilidade da conduta dentro do contexto em que foi cometido o delito, devendo portanto ser considerada a realidade fática em seu todo.
A análise da culpabilidade como elemento de gradação da pena, entretanto, guarda ampla complexidade. Para Zaffaroni e Pierangeli [17], a culpabilidade congrega tanto os motivos, já "que a motivação é problema da culpabilidade", como as circunstâncias e as conseqüências do delito, que, segundo os autores, podem compor também o grau do injusto, refletindo-se conseqüentemente na culpabilidade. Defendem ser possível também que o comportamento da vítima tenha reflexos sobre a culpabilidade, aumentando ou diminuindo o grau do injusto.
Nucci [18], no mesmo diapasão, entende que a culpabilidade consiste no resultado da avaliação de todas as circunstâncias judiciais.
Essa questão é delicada, pois entender que a culpabilidade congrega outros critérios com existência autônoma, que também têm o escopo de funcionar como parâmetros de gradação da pena, traz como conseqüência a dupla consideração de um mesmo critério para majorar mais de uma circunstância, já que, consoante esse entendimento, a avaliação negativa da culpabilidade estaria sempre vinculada à avaliação negativa de outra circunstância. Uma vez que a dupla consideração de um mesmo critério é vedada no sistema jurídico brasileiro, entende-se inadequado considerar que o juízo negativo da culpabilidade seja pautado no juízo negativo atribuído a outras circunstâncias. [19]
Objetivando evitar o indevido bis in idem, a princípio, resta razoável considerar que, analogicamente, a aferição da culpabilidade, em relação aos crimes dolosos, sob a perspectiva do artigo 59 do Código Penal, tenha fundamentos baseados na gradação de dois dos elementos que, consoante a teoria limitada [20], a integram na sua função de pressuposto da pena, quais sejam, a "exigibilidade de conduta diversa" e o "potencial conhecimento da ilicitude" [21]. Ressalte-se, entretanto, que a adoção do critério "grau de exigibilidade de conduta diversa" deve ser feita com extrema cautela, em razão dos problemas a seguir apontados.
3.1.1Grau de exigibilidade de conduta diversa
A idéia da exigibilidade de conduta diversa como ente balizador da culpabilidade – repita-se: não no sentido de elemento de gradação da pena, mas como seu pressuposto –, de acordo com Juarez Cirino dos Santos [22], tem fundamento na doutrina alemã, sendo encampada, entre outros doutrinadores, por Hans Welzel e Arthur Kaufmann. Segundo os doutrinadores alemães, a reprovabilidade da conduta estaria fundada "no poder atribuído ao sujeito de agir de outro modo". Ou seja, a base interna do poder do autor seria a capacidade a ele atribuída de livre decisão.
Santos [23], entretanto, critica essa teoria por entender que, na prática, é indemonstrável a hipótese da liberdade de vontade e que, abstratamente, o poder de agir diferente não incide sobre o autor, mas sobre uma pessoa imaginária colocada em seu lugar.
Sob a ótica da gradação da exigibilidade de conduta diversa como parâmetro de aferição do grau de reprovabilidade da conduta, para fins de fixação da pena, a crítica de Santos [24] também é pertinente, pois, na prática, a fixação da pena-base, a partir do critério da gradação da exigibilidade de um agir de modo diverso, também é necessariamente pautada na hipótese de um sujeito imaginário colocado em lugar do agente, do qual se exigiria, em certo grau, uma conduta diversa. Ocorre que, na prática, o lugar desse sujeito hipotético é ocupado pelo próprio magistrado, o que, muito provavelmente, compromete sobremaneira o juízo acerca da reprovabilidade.
Esse comprometimento decorre do fato de que o grau de exigibilidade de conduta diversa e, conseqüentemente, o juízo de reprovabilidade da conduta são aferidos a partir da perspectiva psicossocial e dos valores do próprio magistrado. Entretanto, no mais das vezes, a realidade social do agente não coincide com a do magistrado, não sendo, por esse motivo, adotado um meio de aferição da exigibilidade de um agir de outro modo que seja capaz de contemplar essas diferenças ético-sociais de modo a adequar o juízo valorativo à realidade do autor do delito. [25]
A contraposição entre os valores do aplicador do direito e do agente, nesse caso, acaba por configurar um exercício de poder orientado por uma significativa carga ideológica [26], decorrente, sobretudo, da marcante oposição social entre ambos, que afeta sobremaneira o trabalho de avaliação da circunstância em comento.
Essa carga ideológica deriva da visão de mundo do magistrado, havendo, de acordo com José Luiz Fiorin [27], tantas visões de mundo numa dada formação social quantas forem as classes sociais. Cada uma dessas visões apresenta um discurso próprio, entretanto, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, da qual, em geral, faz parte o magistrado. Essa ideologia hegemônica, conforme elucida Fiorin [28], se sobrepõe às demais, o que, no âmbito das relações sociais, caracteriza-se como um exercício constante de poder.
Assim, há uma inegável dificuldade em se estabelecer um julgamento acerca do grau de reprovabilidade do ilícito, ou da conduta do agente em relação ao bem jurídico, que não seja contaminado por conteúdos ideológicos, por vezes desfavoráveis ao delinqüente. [29] Dificuldade essa, como se percebe, decorrente do fato de que há obstáculos, muitas vezes intransponíveis, no que diz respeito à possibilidade de o magistrado colocar-se como esse sujeito hipotético e, ao mesmo tempo, fazer uma avaliação da culpabilidade sob a ótica do agente, de modo a avaliar adequadamente em que grau ele poderia agir de outra maneira.
Em face da real impossibilidade de que o magistrado possa, nesses casos, efetivamente compreender a realidade e os valores ético-sociais do agente, é praticamente inevitável que os valores do magistrado comprometam a aplicação da pena, que pode acabar sendo injustamente mais rígida quando os valores ético-sociais do agente forem diferentes dos do magistrado, já que, como observa Baratta [30], a experiência tem apontado "diferenças de atitude emotiva e valorativa dos juízes" em relação a indivíduos pertencentes a segmentos sociais diversos.
Ainda que, para fazer uma adequada aplicação do comando, o magistrado conseguisse, até certo ponto, compreender os valores e o contexto social do réu – o que, sem dúvida, permitiria uma avaliação mais adequada da reprovabilidade da conduta –, restariam lacunas referentes aos fatores psicológicos que moldam o comportamento do agente [31]. Ou seja, a questão é ainda mais complexa do que parece, pois, além de envolver os fatores sociais inerentes a cada pessoa, envolve também fatores subjetivos que não podem deixar de ser considerados.
Os fatores subjetivos devem ser levados em consideração, porque, ainda que possa ser estabelecido um padrão médio de comportamento esperado, analisando-se diferentes sujeitos no interior de uma mesma realidade social, perceber-se-á, inevitavelmente, que cada qual terá um modo peculiar de assimilá-la, refletindo-se esse modo de assimilação naquilo que se pode ou não exigir de cada um deles e, conseqüentemente, nas condutas por eles praticadas e no possível grau de exigência de um agir distinto.
Assim, é muito provável que o magistrado encontre dificuldades em compreender a realidade ético-social do agente, bem como em assimilar a postura subjetiva do agente perante a realidade social a que pertence, já que tal postura deriva de fatores subjetivos, inclusive de cunho psicológico, que normalmente não estão ao alcance do juiz. Disso resulta a dificuldade em avaliar a medida da culpabilidade a partir desse critério. [32]
4.1.2 Grau de compreensão da ilicitude
No que concerne à compreensão do caráter ilícito da conduta como elemento da culpabilidade (ressalte-se novamente: a culpabilidade no seu papel de pressuposto da pena), Zaffaroni e Pierangeli [33] asseveram que a lei exige apenas o seu potencial conhecimento, ou seja, que exista a possibilidade de conhecimento da antijuridicidade, visto que a efetiva compreensão (que pressupõe a internalização da norma jurídica proibitiva) dificilmente ocorre.
Uma vez constatado o potencial conhecimento da ilicitude, configura-se a culpabilidade como pressuposto da pena. No entanto, Zaffaroni e Pierangeli [34] enfatizam que não é possível se exigir de todos "o mesmo grau de compreensão da antijuridicidade. Há casos em que a exigência é maior do que em outros", o que depende do esforço empenhado pelo sujeito para compreender e internalizar a norma.
Partindo dessa premissa, entendem os autores que "circunstâncias pessoais e sociais, ou mesmo uma combinação de ambas, nos revelarão o grau de esforço do sujeito, que estará sempre em relação inversa com a reprovabilidade: quanto maior for o esforço que o sujeito deva fazer para internalizar a norma, menor será reprovabilidade de sua conduta, e vice-versa". [35]
4.1.3 A gradação da culpabilidade nos crimes culposos
Com relação aos crimes culposos, em razão da sua estrutura distinta da dos crimes dolosos, a valoração da reprovabilidade da conduta deve adotar um critério diferenciado, adequado a essa estrutura, que, de acordo com Fragoso [36], agrega os elementos "conduta humana" e "falta do cuidado objetivo exigível".
Partindo-se desse pressuposto, para a gradação da culpabilidade, no contexto do artigo 59 do Código Penal, conforme Gomes [37], o critério deve ser "o grau de descuido frente ao bem jurídico", ou, em outras palavras, a gradação da falta de cuidado objetivo exigível.
Esse critério permite que cada agente seja punido "na medida da sua culpabilidade", uma vez que, "quanto mais intensa a culpa, isto é, quanto mais descuidado for o agente, mais censurável será seu fato". [38]
É preciso ressaltar, entretanto, que a análise do "dever de cuidado objetivo exigível" deve ser feita com a mesma cautela dispensada à análise do grau de exigibilidade de conduta diversa, visto que se trata, do mesmo modo, de uma avaliação feita a partir da perspectiva ideológica e psicossocial do magistrado, que será o "sujeito imaginário" [39] colocado em lugar do agente, de quem se exigiria um maior cuidado frente ao bem jurídico, havendo, por essa razão, as mesmas implicações já apontadas.
3.2 Os antecedentes
Antes da Reforma Penal de 1984, que introduziu o artigo 59 no Código Penal, entendia-se, que os antecedentes do réu abrangiam todo o seu passado, incluindo desde as condenações que eventualmente tivesse sofrido até relacionamentos familiares e conduta laboral. Hoje, no entanto, a conduta social é tratada de modo apartado, o que veio a circunscrever o alcance dessa circunstância judicial à folha de antecedentes. [40]
Embora a intenção do legislador ao introduzir o item antecedentes no artigo 59 do Código Penal tenha sido de que a ele fosse dada uma maior abrangência, devendo nele ser analisados, conforme assevera Nucci [41], outros aspectos que fossem além da folha de antecedentes, tais como conduta familiar, disposição para o trabalho e padrões éticos e morais, essa intenção é questionável.
Se o legislador optou introduzir outros dois itens, denominados conduta social e personalidade do agente, os quais, ao que parece, justamente contemplariam situações como a disposição para o trabalho, os relacionamentos familiares e outros aspectos do gênero, não parece acertado considerar os mesmos aspectos quando se analisam os antecedentes.
Considerar os mesmos elementos em duas circunstâncias distintas, como já dito, gera bis in idem, fazendo com que, por exemplo, numa hipótese em que fosse fixada a pena de um agente que não tivesse antecedentes criminais, mas que fosse um péssimo pai de família, este, em vez de ter apenas uma ou duas circunstâncias judiciais contra si, tivesse uma a mais (os maus antecedentes). Assim, entende-se inviável que os antecedentes congreguem outros elementos além das ocorrências criminais na vida pregressa do agente.
Luiz Regis Prado [42] faz um apontamento ilustrativo no sentido de que os antecedentes não devem estar adstritos à conduta social do agente. O autor diz o seguinte: "cumpre observar que um indivíduo portador de maus antecedentes, nem sempre será, necessariamente, portador de uma conduta socialmente desajustada, assim como não é regra que alguém que jamais tenha perpetrado delitos não possa ter uma vida social repleta de deslizes e infâmias".
Todavia, Capez [43], cujo posicionamento é de que os antecedentes devem se restringir às ocorrências criminais, chama atenção para o fato de que o Supremo Tribunal Federal tem proferido acórdãos no sentido de ampliar o conceito de maus antecedentes, levando em consideração as circunstâncias do crime e a personalidade do agente como fatores indicativos dos antecedentes. Exemplo dessa tendência é o acórdão que se lê a seguir, proferido pelo Supremo Tribunal Federal:
II - O juiz, na avaliação dos antecedentes do réu, não fica sujeito às informações sobre a sua vida pregressa, vale dizer, se já foi preso ou respondeu a inquéritos policiais ou processos judiciais anteriormente, podendo, à vista das circunstâncias do crime e de sua personalidade, medir seu grau de periculosidade e concluir não ter ele bons antecedentes, assim sem o direito de apelar em liberdade. Precedentes do STF. [44]
A despeito desse posicionamento, como já dito, entende-se mais acertado não considerar como maus antecedentes elementos diversos das ocorrências criminais, já que o dispositivo em comento apresenta outros itens apropriados para esse fim, quais sejam, a conduta social e a personalidade do agente.
Considerando-se que devem ser invocadas apenas as ocorrências criminais para pautar os antecedentes, a questão que surge no âmbito dos debates acerca do tema diz respeito à delimitação dessas ocorrências, ou seja, quais ocorrências devem ser consideradas para fins de caracterização dos maus antecedentes.
Capez [45] entende que, embora não devam ser levados em consideração outros elementos que não o passado criminal do agente, os inquéritos policiais, os processos-crimes e a absolvição por insuficiência de provas têm o condão de caracterizar maus antecedentes.
Há acórdãos do Supremo também nesse sentido:
1. Pena-base agravada em um ano de reclusão (1/12) em face dos maus antecedentes do paciente, comprovados por alentada folha onde constam diversos inquéritos em andamento e uma condenação ainda não trânsita em julgado, e, ainda, em face da conduta social, da personalidade voltada para o crime, pelos motivos do crime e sua forma de execução e pela evidente reprovabilidade. Concurso de três qualificadoras: uma utilizada para qualificar o homicídio e duas consideradas como circunstâncias judiciais para o aumento de 2 anos da pena de reclusão. "Habeas-corpus" conhecido, mas indeferido nesta parte; voto vencido do Relator, que anulava sentença do Juiz Presidente do Tribunal do Júri. 2. "Habeas-corpus" deferido em parte, à unanimidade, para anular o acórdão na parte em que exasperou a pena do paciente, determinando-se que outro seja lavrado, nesta parte, com observância do critério trifásico de aplicação da pena, previsto no art. 68 do Código Penal. [46]
Outra corrente doutrinária, da qual faz parte Nucci [47], considera que, para fins de fixação da pena-base, "antecedentes são apenas as condenações com trânsito em julgado que não são aptas a gerar reincidência. Todo o mais, em face do princípio da presunção de inocência não deve ser considerado".
No STF, há também decisões que adotam esse posicionamento:
HABEAS CORPUS - EMPATE. Verificado o empate no julgamento de habeas corpus, prevalece o entendimento da corrente mais favorável ao Paciente. PENA-BASE - CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS - MAUS ANTECEDENTES - PROCESSOS EM CURSO E PROCESSOS EXTINTOS PELA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA - CONSIDERAÇÃO - IMPROPRIEDADE. Conflita com o princípio da não-culpabilidade - "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal) - evocar processos em curso e outros extintos pela prescrição da pretensão punitiva a título de circunstâncias judiciais (artigo 59 do Código Penal), exacerbando a pena-base com fundamento na configuração de maus antecedentes. PENA-BASE - MAUS ANTECEDENTES - INEXISTÊNCIA. [48]
Essa corrente entende, acertadamente, ser inadmissível para caracterizar maus antecedentes levar-se em consideração inquérito policial, processo em curso ou processo em que o réu tenha sido absolvido. Isso porque o fato de existirem ações em curso, ou inquéritos, não implica, necessariamente, que deles vá resultar uma condenação futura. Considerar todo o passado criminal do agente é se valer de mera hipótese, pois o desfecho desses inquéritos ou processos pode vir a ser favorável ao réu.
Desse modo, conforme se depreende da análise desses julgados, tanto pode ocorrer que seja considerado todo o passado criminal do agente, como somente sentenças condenatórias transitadas em julgado que não sejam aptas a gerar reincidência. De acordo com o posicionamento adotado pelo julgador, dois sujeitos que se encontrem exatamente na mesma situação, tendo contra si um processo penal em trânsito, podem ter penas fixadas de modo diferente, já que um juiz pode, por exemplo, considerar o processo em tramitação como mau antecedente, e o outro não.
Para Salo de Carvalho [49], a consideração dos antecedentes representa "gravame penalógico de caráter perpétuo, em total afronta ao princípio constitucional da humanidade (art. 5º, XLVII, alínea ‘b’, CF)". Assim, defende o recurso à analogia, como imprescindível para fins de estabelecer, num primeiro momento, temporalidade à circunstância, fixando-lhe prazo idêntico ao do art. 64, I do CP (cinco anos), a fim de que, num segundo momento, seja possível negar sua aplicação, em função da sua incompatibilidade com inúmeras garantias fundamentais.
Quanto à temporalização dos maus antecedentes, Carvalho [50] aponta que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu do seguinte modo:
O artigo 61, I, do CP determina que, para efeito de reincidência não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração anterior houver decorrido período superior a cinco anos. O dispositivo se harmoniza com o Direito Penal e a Criminologia modernos. O estigma da sanção criminal não é perene. Limita-se no tempo. Transcorrido o tempo referido, evidencia-se a ausência de periculosidade, denotando, em princípio, criminalidade ocasional. O condenado quita sua obrigação com a Justiça Penal. Conclusão é válida também para os antecedentes. Seria ilógico afastar expressamente a agravante e persistir genericamente para recrudescer a sanção aplicada.
Carvalho [51] lembra que Francisco Bissoli Filho, com fundamento na teoria do Labeling Approach, identificou os institutos dos antecedentes e da reincidência com o modelo etiológico positivista de Lombroso e Ferri, concluindo que ambos eram "instrumentos de verdadeiro apartheid social, pois uma vez detentores de antecedentes criminais os indivíduos passariam a pertencer a um grupo especial de pessoas, diferentes dos demais cidadãos, diferenciados pelo seu estigma".
Os maus antecedentes constituem, segundo Bissoli Filho [52], "importante fator de diferenciação do criminoso com os demais seres humanos, de tal sorte que o indivíduo que registra alguma espécie de antecedentes negativos [...] acaba merecendo, da parte do sistema penal, um tratamento diferencial, sendo considerado, portanto, pertencente a uma categoria específica". Essa diferenciação, argumenta, "visa tornar nítida a linha que separa os ‘bons’ dos ‘maus’, confrontando-se, assim, com o princípio da igualdade".
A complexidade da avaliação dos antecedentes reside no fato de existir uma pluralidade de posicionamentos possíveis, aliada à ampla liberdade discricionária atribuída ao magistrado, o que, muitas vezes, pode resultar numa interpretação flagrantemente desfavorável ao réu. Assim, entende-se que a postura mais garantista é a defendida por Salo de Carvalho, que propõe a não-consideração da circunstância, por entender que a mesma atua como instrumento a serviço da moral e da restrição da autonomia individual.
3.3 A conduta social
De acordo com Nucci [53], conduta social "é o papel do réu na comunidade, inserido no contexto da família, do trabalho, da escola, da vizinhança". A essência do comando legal é fazer com que o magistrado informe-se sobre a pessoa que está julgando e sobre sua vida cotidiana, a fim de verificar se ela é merecedora de maior ou menor reprimenda.
A conduta social como elemento de fixação da pena-base é tratada de forma rápida pela doutrina, que em geral sustenta que o trabalho cognoscitivo do magistrado acerca da conduta social do agente funda-se basicamente nas perguntas feitas no interrogatório e nos depoimentos das testemunhas. [54]
Averiguar a conduta social do réu é uma tarefa complexa que, não raro, conduz a um juízo valorativo que acaba por estabelecer como parâmetros as condutas sociais concernentes à realidade do magistrado, muitas vezes, diametralmente oposta à do réu. [55]
Almeida [56] apresenta exemplos de alguns desses parâmetros obtidos a partir das provas dos autos que normalmente têm servido de supedâneo para o juízo acerca da conduta social, dentre os quais: a tendência do réu ao trabalho ou ao ócio, a sua afetividade ou desprezo para com os familiares, "o prestígio e a respeitabilidade de que goza perante as pessoas", "o seu entretenimento predileto", "se freqüenta clubes sociais, ou se prefere a companhia constante de pessoas de comportamento suspeito", freqüentando locais de concentração de delinqüentes ou lupanares, "seu grau de escolaridade", seu interesse pelos estudos, bem como seu "relacionamento com funcionários, professores e diretores do estabelecimento escolar" que freqüenta.
Note-se que alguns dos exemplos de atributos sociais considerados abonadores da conduta social do réu são típicos de um segmento social bem definido que, certamente, não é o dos menos favorecidos economicamente, que não freqüentam clubes sociais e têm, mais freqüentemente, um baixo índice de escolaridade e menor prestígio perante a sociedade (neste último caso, poder-se-iam incluir outros grupos que, independentemente de sua situação econômica, são historicamente discriminados – gozando, portanto, de pouco prestígio social –, como negros e homossexuais).
Tais considerações revelam, assim, com relação a esta circunstância, mais uma vez, a tendência a um condicionamento prévio que pode levar o julgador a ser mais rigoroso na fixação da pena-base dos réus pertencentes a determinados grupos sociais [57], o que é inadmissível, pois, como bem enfatiza Carvalho [58], o direito penal deve "restringir-se a proibição, comprovação e repressão de condutas lesivas a bens jurídicos concretos, imunizando o cidadão de qualquer ingerência na esfera de sua vida privada e de seus pensamentos – modo de ser –, e excluindo qualquer possibilidade de o direito penal atuar como instrumento de imposição ou reforço de determinada moral".
Ainda com relação aos exemplos de critérios de avaliação da conduta em comento, mesmo naqueles que independem do segmento social a que pertence o agente, há subjacente uma idéia de que esses atributos são encontrados muito mais comumente nas elites econômicas.
Desse modo, não é ilação afirmar que por trás do quesito conduta social do agente também há estereótipos que atingem determinadas classes sociais e não outras. Ou seja, há uma tendência em se conceber certos sujeitos como delinqüentes, em função, por exemplo, do meio social em que vivem. Habitar um bairro pobre da periferia pode resultar, assim, muitas vezes, num padrão de conduta social que diverge daquele entendido como adequado para os sujeitos economicamente mais favorecidos, dentre os quais, em geral, se inclui o magistrado.
Nesse sentido, é bastante ilustrativo o posicionamento de José Ricardo Ramalho [59]:
O delinqüente é identificado pelo fato de ser favelado antes de sê-lo pelo ato de que é acusado. Na favela habita boa parte das populações pobres dos grandes centros urbanos e que de forma alguma é composta por delinqüentes. Não se pode negar que a maior parte dos presos procede de periferias, favelas, bairros pobres, mas a sutileza da argumentação está no fato de que isto não significa que haja uma relação necessária e natural entre ser favelado e ser delinqüente: a relação é social. Na sua grande maioria, os moradores das favelas não são delinqüentes, mas são tratados enquanto tais pela polícia e pela justiça.
Baratta [60], por sua vez, enfatiza a dificuldade dos magistrados em compreender os valores sociais do acusado a partir de parâmetros outros que não aqueles que povoam o seu próprio imaginário. Para o autor, "o insuficiente conhecimento e capacidade de penetração no mundo do acusado, por parte do juiz, acaba por desfavorecer os indivíduos provenientes dos estratos inferiores da população", haja vista a "ação exercida por estereótipos e preconceitos".
Assevera ainda que pesquisas empíricas apontam para essas "diferenças de atitude emotiva e valorativa dos juízes, em face de indivíduos pertencentes a diversas classes sociais" [61]. Ou seja, há por parte dos magistrados uma tendência inconsciente de fazer juízos diversificados conforme a posição social dos acusados.
Assim, é temerário um juízo acerca da conduta social do réu que tome por parâmetros valores notadamente típicos dos segmentos sociais economicamente mais favorecidos, ou seja, aquele a que, em geral, pertence o próprio magistrado.
Para que houvesse uma razoável percepção da conduta social do acusado, aqui também seria preciso que o magistrado fizesse sua valoração a partir da perspectiva do réu, tentando entender, entre outras coisas, a realidade a que ele pertence, as suas dificuldades, em que condições vive, para então saber se, dentro das possibilidades que a realidade do acusado permite, a sua conduta social é considerada adequada ou não. Porém, conforme já se apontou, há inúmeros fatores que inviabilizam a efetivação prática dessa postura.
3.4 A Personalidade do agente
A personalidade do agente é critério dificilmente estimável, o que tem gerado inúmeras discussões doutrinárias. Em primeiro lugar, como bem lembra Almeida [62], "a personalidade do agente, como fator determinante da pena, não pode ser confundida com os maus antecedentes do réu".
De acordo com Zaffaroni e Pierangeli [63], a personalidade do agente cumpre uma dupla função, servindo para determinar o âmbito de autodeterminação do agente como fundamento da culpabilidade (o que os autores entendem como inadmissível) e, numa outra acepção, para cumprir uma função individualizadora da pena.
Quanto à segunda acepção do critério, os autores também a criticam, por entenderem que ela remonta à necessidade de um informe criminológico da pessoa do réu, o que viola o princípio da presunção de inocência. Isso porque, para obter-se tal informe, penetrar-se-ia "no âmbito de privacidade e intimidade de uma pessoa que a lei presume inocente, o que de modo algum autorizam os mais elementares princípios do Estado de Direito". [64]
Mesmo em face das dificuldades concernentes à avaliação de tal critério, a doutrina tem buscado de algum modo definir os contornos do elemento personalidade como circunstância judicial a ser considerada no trabalho discricionário de fixação da pena.
Assim, Almeida [65] define a personalidade do agente como "algo característico de cada indivíduo. Ela é sempre um dado particular de manifestação individual, que (embora possa ser semelhante) é impossível de se repetir em outra pessoa, exatamente da mesma forma e com igual intensidade".
Para Nucci [66], a personalidade é havida também como o conjunto de caracteres exclusivos de uma pessoa, parte deles herdada e parte adquirida. O autor cita como exemplos de caracteres determinantes da personalidade, entre outros, a agressividade, a preguiça, a frieza emocional, a bondade e a passionalidade.
Prado [67], por sua vez, conceitua a personalidade do agente como "a índole, o caráter do indivíduo, reveladora de suas qualidades e defeitos". Nesse quesito, seriam também verificados, além da índole, a sensibilidade ético-social e possíveis desvios de caráter.
Note-se que parte da doutrina aponta a possibilidade de uma tendência ao cometimento de crimes derivada de traços genéticos ou de desvios psicossociais. A questão é: será possível identificar traços genéticos ou psicológicos que sejam determinantes para caracterizar uma propensão à delinqüência?
É bem verdade, conforme aponta Gresham M. Sykes [68], que, assim como as teorias populares acerca da criminalidade têm colocado o ofensor como uma pessoa diferente dos homens comuns, "muitas teorias científicas do crime também tendem a considerar o criminoso como anormal".
De acordo com Sykes [69], Lombroso afirmava que a pessoa que violava as leis da sociedade recuava a uma forma mais primitiva de vida; Lange, por sua vez, ao realizar estudos com gêmeos idênticos e fraternais, concluiu que a criminalidade era uma questão de herança biológica defeituosa; Hooton, seguindo um raciocínio similar, chegou a argumentar que o criminoso era um ser biologicamente inferior.
Segundo Sykes [70], todas as teorias que sustentavam uma criminalidade de origem biológica "encontraram uma contrapartida na esfera psicológica na asserção de que o delinqüente era geralmente defeituoso mentalmente ou psicótico". Alguns estudiosos argumentavam que o defeito psicológico do criminoso era de ordem emocional e que a personalidade psicopática, entendida como aquela capaz de discernir entre bem e mal, mas permanecer indiferente ante esse discernimento, situava-se por trás de muitos comportamentos criminosos.
Ressalte-se que todas as teorias mencionadas em sua obra, conforme Sykes [71] "têm sido aguçadamente criticadas por sua escassez de evidências e falta de precisão no uso de conceitos; mas a falta mais comumente citada é que amostras representativas de criminosos e não criminosos são as mais difíceis".
Sykes [72] chama atenção ainda para o fato de que "diversos estudos têm indicado que presumíveis não criminosos algumas vezes apresentam uma quantidade espantosa de comportamento criminoso que passou despercebido". Assim, é inconcebível um juízo valorativo que venha a rotular indivíduos como potenciais delinqüentes tomando por base fundamentos dessa natureza.
Note-se que há pessoas com distúrbios psíquicos que vêm a cometer crimes, mas a identificação de uma pulsão para o crime derivada de uma eventual patologia mental do infrator não cabe ao magistrado. Tal conclusão acerca da personalidade do delinqüente depende, obrigatoriamente, do laudo de um especialista. Inclusive, nesses casos, se detectada alguma disfunção psíquica que venha a caracterizar o réu como inimputável ou semi-imputável, por exemplo, o procedimento é outro, pois, ou caberá uma medida de segurança em vez da pena, ou, em certos casos, poderá haver uma diminuição na reprovabilidade da conduta, em vista do discernimento reduzido do agente. [73]
A verdade é que, exceto nos casos em que há, efetivamente, um laudo médico comprovando algum tipo de distúrbio mental, parece tecnicamente inadequado imputar ao agente uma suposta personalidade tendente ao crime. Mais do que isso: a adoção de um posicionamento de tal natureza fatalmente conduziria o magistrado a valorações subjetivas de difícil sustentação por carecerem de fundamentação adequada, já que seriam motivadas tão somente em hipóteses e prognoses.
Ainda que fosse desconsiderada a evidente fragilidade das teorias biológica e psicológica da propensão à delinqüência, bastaria para inviabilizar a análise da culpabilidade a partir da personalidade do agente um argumento jurídico único: a existência de garantias individuais que impedem que uma pessoa seja punida por aquilo que é, em vez de sê-lo por aquilo que fez.
Muito acertadamente, Dotti [74] defende esse posicionamento, nos seguintes termos: "não se pode sustentar a existência de uma culpa jurídico-penal [75] fundada na personalidade (bem ou mal formada) do delinqüente, embora esse aspecto seja um dos elementos para a medição concreta da pena".
Dotti [76] sustenta que "somente a culpabilidade por um fato determinado poderá se justificar num regime penal de garantias individuais", pois "o homem não pode ser punido pelo que é", mas tão somente por aquilo que faz. Ou seja, "a sua conduta é a base e a razão da incriminação, máxime no sistema positivo que não admite a imposição de medida de segurança para o imputável".
Roxin, citado por Dotti [77], também enfatiza que, nos dias de hoje, a doutrina dominante rejeita, com fundamento em princípios do Estado de Direito, todas as teorias que extrapolam os limites da culpabilidade pelo fato concreto, ainda que para fins de fixação da pena.
Entendendo-se que o elemento personalidade do agente não é critério adequado de aferição da culpa jurídico-penal, mas que, no entanto, foi positivado com tal finalidade, o magistrado é obrigado a apreciá-lo – entretanto, como se vê, deve ter extrema cautela, a fim de que não recaia em teorias já superadas pela ciência, ou que extrapolam os limites da reprovabilidade pelo fato praticado, ou ainda, o que é mais grave, em afronta a garantias individuais constitucionais. Parece, portanto, mais apropriado que o julgador sempre considere tal circunstância como favorável ao réu, em vista da sua complexidade.
3.5 Os motivos
Os motivos constituem a fonte propulsora da vontade criminosa, pois, conforme lembra Bitencourt [78], não há crime sem motivo. Pedro Vergara, citado por Bitencourt [79], afirma que "os motivos determinantes da ação constituem toda a soma dos fatores que integram a personalidade humana e são suscitados por uma representação cuja ideomotricidade tem o poder de fazer convergir, para uma só direção, todas as nossas forças psíquicas". Assim, na dosagem da pena, é fundamental que sejam consideradas a natureza e a qualidade dos motivos que conduziram o agente à prática do delito. [80]
Para Capez [81] "a maior ou menor aceitação ética da motivação influi na dosagem da pena". Almeida [82], nesse sentido, acrescenta que "a valoração dos motivos não pode ser feita segundo as idéias morais do juiz, mas conforme normas ético-sociais".
Note-se, entretanto, que, quando há menção a normas ético-sociais ou aceitação ética da motivação, não há referência a outra coisa, senão às idéias morais do próprio magistrado, as quais, em regra, coincidem exatamente com as normas ético-sociais aceitas pela classe dominante, à qual o magistrado pertence.
Considerar, desse modo, que a aceitação ética dos motivos possa funcionar como parâmetro de gradação da pena é algo bastante complexo, haja vista a simples definição antropológica do termo. Por ética se entendem as categorias e valores utilizados na análise realizada por um observador e que não correspondem necessariamente àqueles que vigoram na sociedade ou cultura observados [83]. No caso concreto, entenda-se por observador o juiz e por observado o réu, e está estabelecida a dificuldade de utilização adequada da circunstância.
Como definir um padrão ético de conduta com base em certos parâmetros de aceitação, se, como já se apontou, há divergências entre os critérios éticos no âmbito das diferentes formações sociais a que pertencem, no mais das vezes, magistrado e réu?
Da adoção de um posicionamento dessa natureza em relação aos motivos que determinam a prática delituosa derivam problemas similares àqueles observados quanto à gradação de outras circunstâncias. É muito provável que a apreciação desse critério seja também, com freqüência, desfocada dos valores éticos concernentes ao universo do agente. O objetivo da aplicação da circunstância parece ser mesmo este: analisar o motivo segundo os padrões morais dominantes. Portanto, não é ilação imaginar que haja maior aceitação ética quanto aos motivos que impulsionam o agente se esse faz parte de determinado segmento social da classe dominante.
A par dessas questões, é importante, também, atentar para o cuidado que deve ter o julgador para não associar o motivo ao dolo ou culpa. Roberto Lyra [84] faz um apontamento importante a esse respeito:
O motivo, cuja forma dinâmica é o móvel, varia de indivíduo a indivíduo, de caso a caso, segundo o interesse ou o sentimento. Tanto o dolo como a culpa se ligam à figura do crime em abstrato, ao passo que o móvel muda incessantemente dentro de cada figura concreta do crime, sem afetar a existência legal da infração. Assim, o homicídio pode ser praticado por motivos opostos, como a perversidade e a piedade (eutanásia), porém a todo homicídio corresponde o mesmo dolo (consciência e vontade de produzir morte).
Lyra [85] chama atenção para o fato de que o motivo tem uma forma dinâmica, podendo variar de indivíduo para indivíduo, de acordo com seus interesses ou sentimentos em relação a uma determinada situação concreta. Por outro lado, o dolo e a culpa, diferentemente do motivo, estão relacionados à figura típica abstrata. Ou seja, dolo e motivo são figuras distintas que jamais se confundem.
Assim, se o dolo ou a culpa são sempre os mesmos, não variando de caso a caso, não é possível, de modo algum, ser atribuída uma intensidade a esses elementos. Nesse sentido, é perfeito o exemplo dado por Lyra: não importa se o agente matou por ódio ou por piedade, pois o dolo é o mesmo - matar. O que difere, de um homicídio para o outro, é a sua motivação.
Embora o critério intensidade do dolo tenha sido suprimido do Código Penal com a introdução da Nova Parte Geral [86], ainda há quem utilize esse critério como parâmetro de individualização da pena, o que, como dito, é inadequado. [87]
Se é certo que por trás de toda conduta criminosa há sempre um motivo, é importante ressaltar que motivo também não se confunde com objetivo ou escopo, que é a finalidade que o agente busca atingir com a prática do delito. [88]
Para que não se incida em erro, sugere-se a análise da diferença semântica entre motivo e objetivo. Enquanto motivo é o elemento psicológico que propulsiona a conduta, respondendo a um questionamento do tipo por quê?, objetivo é o fim a ser atingido pelo agente com a prática da conduta e que, por sua vez, responde a um questionamento do tipo para quê?
Sobre os motivos, também é importante ressaltar que, se eles vierem a configurar qualificadora, agravante ou atenuante genérica, causa de aumento ou diminuição da pena, não poderão ser considerados como circunstância judicial, a fim de que seja evitado o indevido bis in idem.
3.6 As circunstâncias do crime
Segundo Almeida [89], "as circunstâncias do crime são elementos ou dados tidos como acessórios ou acidentais (accidentalia delicti), que cercam a ação delituosa e, embora não integrem ou componham a definição legal do tipo", exercem influência sobre a gradação da pena.
Para David Teixeira de Azevedo, citado por Almeida [90], as circunstâncias do crime constituem-se num complemento ao tipo penal incriminador, ou seja, elas "não têm existência autônoma", na medida em que dependem de uma figura típica principal à qual aderem.
As circunstâncias têm natureza contingente, não interferindo, por essa razão, na qualidade do crime, mas tão somente na qualidade e quantidade da pena. [91] Em outras palavras, elas promovem uma mudança qualitativa e quantitativa na reprovabilidade da conduta, tornando o fato mais ou menos grave, o que, naturalmente, reflete-se na gradação da pena.
Um ponto importante mencionado por Bitencourt [92] é que "as circunstâncias referidas no art. 59 não se confundem com as circunstâncias legais relacionadas no texto legal (arts. 61, 62, 65, 66 do CP), mas defluem do próprio fato delituoso". Entre essas circunstâncias, poder-se-iam mencionar: "forma e natureza da ação delituosa, os tipos de meios utilizados, objeto, tempo, lugar, forma de execução e outras semelhantes". [93]
Bitencourt [94] chama atenção ainda para o fato de que "não se pode ignorar que determinadas circunstâncias qualificam ou privilegiam o crime, ou, de alguma forma, são valoradas em outros dispositivos, ou até mesmo como elementares do crime". Nesses casos, elas não devem ser avalidas por ocasião da fixação da pena-base a fim de que não ocorra uma dupla valoração.
Conforme Capez [95], as circunstâncias podem ser objetivas ou subjetivas, podendo, por exemplo, dizer respeito à duração do fato criminoso, ao local do crime ou à atitude do agente ante a prática do delito.
No que diz respeito às circunstâncias do crime, uma questão que merece atenção é a da comunicabilidade. Nos termos do artigo 30 do Código Penal, apenas se comunicam as circunstâncias objetivas. As subjetivas só se comunicam quando são elementares do tipo. Todavia, Almeida [96] aponta o fato de que, em virtude de construção doutrinária e jurisprudencial, tem havido entendimentos no sentido de que mesmo as condições ou circunstâncias de caráter objetivo só se comunicam se conhecidas dos co-autores ou partícipes. Há quem interprete esse preceito de forma ainda mais abrangente, sustentando que não se comunicam nem as circunstâncias objetivas e nem as subjetivas, caso não sejam do conhecimento desses agentes.
Esse entendimento, explica Almeida [97], deriva do fato de ser imprescindível o conhecimento da circunstância elementar pelo infrator, porque, de acordo com o artigo 29 do Código Penal, apenas o agente que concorre de algum modo para o delito incide nas penas a ele cominadas, na medida da sua culpabilidade.
3.7 As conseqüências do crime
O mais importante com relação às conseqüências do crime é que, em hipótese alguma, como bem lembra Bitencourt [98], as mesmas se confundam com a conseqüência natural tipificadora do ilícito praticado. Seria um equívoco absurdo, por exemplo, num homicídio, a alegação de que "as conseqüências foram graves porque a vítima morreu". A morte da vítima é o resultado inerente ao homicídio, sem o qual o crime não teria ocorrido.
Segundo Prado [99], as conseqüências do crime são "os desdobramentos, não necessariamente típicos, advindos da conduta do agente, reveladores da danosidade decorrente do delito cometido". Nucci [100], no mesmo diapasão, as define como "o mal causado pelo crime, que transcende ao resultado típico".
Almeida [101], invocando Magalhães Noronha, afirma que as conseqüências do crime dizem respeito ao "maior ou menor vulto do dano ou perigo de dano, que é sempre inerente ao delito, não só para a vítima como para a sociedade", bem como ao "sentimento de insegurança provocado nesta e outros efeitos ainda que afastados". Em face desses argumentos, relaciona as conseqüências do crime ao clamor público e à repercussão social por ele provocados.
Note-se que a repercussão social do crime e o clamor público por ele gerado não poderiam legitimar a imposição de penas mais severas, pois, além de serem conseqüências que extrapolam a esfera do ofendido, são situações que não apresentam uma conexão direta com o fato criminoso.
O entendimento de que deve ser atribuída uma penalização mais severa ao agente que comete delitos com maior repercussão social ou que gerem maior clamor público deriva das funções retributiva e de prevenção geral da pena, as quais se fundam, respectivamente, na satisfação do sentimento de vingança coletivo, ao qual se vincula o caráter retributivo da pena e no caráter simbólico da prevenção ao cometimento de práticas delituosas similares, por outros integrantes da sociedade, em função do temor de serem apenados de forma igualmente grave. Isso nada mais representa, senão a afirmação de políticas de terror, cujo fundamento é sacrificar um único indivíduo com o escopo simbólico de coibir as práticas delituosas de outros indivíduos.
Assim, entende-se que devem ser consideradas como graves, segundo Bitencourt [102], conseqüências do tipo "a vítima, arrimo de família, deixou ao desamparo quatro filhos menores, cuja mãe não possui qualificação profissional". Ou seja, a maior ou menor danosidade decorrente da ação delituosa praticada, para que gere efeitos sobre a penalização, deve, necessariamente, guardar tenha conexão direta com o fato criminoso e estar adstrita à esfera jurídica do ofendido.
Ainda com relação às conseqüências do crime, deve, também em relação a elas, haver especial cuidado para que não coincidam com aquelas elencadas como circunstâncias legais, situação em que não poderão ser analisadas como circunstâncias judiciais, evitando-se que haja, também nesse caso, a possibilidade de dupla valoração do mesmo critério.
3.8 O comportamento da vítima
Estudos de vitimologia, de acordo com Bitencourt [103], demonstram que, muitas vezes, as vítimas contribuem decisivamente na consecução do crime. "Esses comportamentos são, não raro, verdadeiros fatores criminógenos, que embora não justifiquem o crime, nem isentem o réu de pena, podem minorar a censurabilidade do comportamento delituoso".
Conforme Prado [104], "o comportamento da vítima poderá aumentar ou diminuir a reprovabilidade da conduta típica e ilícita, uma vez que muitas vezes a vítima contribui decisivamente para a prática do ato".
Nesse sentido, Manzanera [105] aponta diferentes gradações para o comportamento da vítima, que pode ser, em relação ao fato criminoso: totalmente inocente, menos culpada que o criminoso, tão culpada quanto o criminoso ou totalmente culpada.
Todavia, como bem enfatiza Capez [106], "não existe compensação de culpa em Direito Penal", ou seja, se há substancial contribuição da vítima para a ocorrência do ilícito penal, tal circunstância é levada em consideração apenas com o fito de gerar o abrandamento da pena a ser aplicada.
Capez [107] lembra ainda que há menções ao comportamento da vítima em outros dispositivos do Código Penal, quais sejam, o artigo 65, III, "c", última parte; o artigo 121, parágrafo 1º, 2ª parte; e artigo 129, parágrafo 4º. Em todos esses casos, há referência a uma "injusta provocação da vítima". Assim, se determinado comportamento da vítima está previsto expressamente em outro dispositivo, não há que ser considerado para efeito de fixação da pena-base, tal como em relação às demais circunstâncias já analisadas, para que não haja indevidamente bis in idem.
Ainda em relação ao comportamento da vítima, de acordo com Almeida [108], um fato que deve ser considerado é o seu eventual consentimento, que tem relevo sobretudo nos crimes sexuais, porque, se essa aquiescência é evidente, exclui-se não apenas a ilicitude, mas a tipicidade da conduta, não havendo, nesse caso, delito a punir.
A verdade é que, como bem lembra Almeida [109], a participação da vítima como coadjuvante na gênese de muitos crimes, hoje, é uma realidade inconteste, de modo que o magistrado não pode se furtar em considerar esse fato. Do contrário, "poderá incidir em incorrigível erro judiciário e encarnar a figura do juiz inexorável, empedernido, leguleio, misoneísta, ermitão, arredio ao progresso da ciência e alheio à evolução dos costumes sociais do seu tempo".