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Direito adquirido em matéria eleitoral:

a inaplicabilidade da cláusula de barreira aos atuais vereadores

18/10/2006 às 00:00
Leia nesta página:

Somente os partidos políticos que alcançaram, nas eleições para deputado federal de 2006, a cláusula de barreira, poderão indicar nomes para as eleições das mesas diretivas das Câmaras Municipais?

INTRODUÇÃO

A chamada cláusula de barreira, ou cláusula de exclusão, ou ainda cláusula de desempenho, foi introduzida pela Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096, de 19.09.1995), para vigorar a partir das eleições gerais de 2006.

Referido dispositivo determina que tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas do Legislativo para as quais tenha elegido representante, o partido que, na eleição para a Câmara dos Deputados, obtenha no mínimo 5% dos votos apurados, distribuídos em pelo menos 1/3 dos estados, com um mínimo de 2% do total de cada um deles.

Significa dizer que o direito ao funcionamento parlamentar, conceituado como conjunto de regras que definem a atuação dos partidos na Casa, como o direito à composição das Mesas, participação nas comissões, etc., fica jungido ao partido político que ultrapassar a cláusula de barreira.

Como a norma se aplica a partir das eleições de 2006, o critério por ela trazido entrou em vigor quando em curso mandatos legislativos municipais dos vereadores eleitos em 2004 e com legislatura a partir de 2005, até 31 de dezembro de 2008.

E é exatamente com relação a estas legislaturas já iniciadas que se aproxima o primeiro grande embate quanto a aplicação da norma em comento: somente os Partidos Políticos que alcançaram, nas eleições para Deputado Federal de 2006, a cláusula de barreira, poderão indicar nomes para as eleições das Mesas diretivas das Câmaras Municipais?

Talvez as reflexões aqui trazidas, quando publicadas sequer alcancem destinatário. Na república do vale tudo, é intensa a movimentação entre os partidos que não alcançaram referida cláusula para, com coligações meramente casuísticas, afastarem os efeitos da norma e garantir-lhes o direito à composição das Mesas, participação nas comissões, etc.

Mas pelo eterno amor ao debate, ao final concluiremos que, no que se refere ao Legislativo municipal e, principalmente, no que diz respeito às eleições para a Mesa Diretora e para as diversas Comissões, tais coligações casuísticas são absolutamente desnecessárias para a garantia do funcionamento parlamentar aos partidos atingidos pela cláusula de barreira.


1 A CLÁUSULA DE BARREIRA

A cláusula de barreira nada mais é do que a disposição prevista na lei (princípio da legalidade) proibindo, ora sob a modalidade da própria existência partidária, ora sob a modalidade de funcionamento parlamentar, ao partido que não tenha alcançado um determinado número ou percentual de votos nas eleições para a Câmara dos Deputados.

Entre nós, as investidas constitucionais na tentativa de aplicação da cláusula de barreira, na modalidade de exclusão da existência de partidos políticos, começaram sob o regime ditatorial da Carta de 1967. Em seu art. 149, que cuidava da organização, funcionamento e extinção dos partidos políticos, dentre os princípios a serem observados em seus oito incisos, o insculpido no inciso VII que observava a:

VII - exigência de dez por cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos em dois terços dos Estados, com o mínimo de sete por cento em cada um deles, bem assim dez por cento de deputados, em, pelo menos, um terço dos Estados, e dez por cento dos senadores.

Quando do advento da Carta constitucional de 1969 (Emenda Constitucional nº 1/69), o seu art. 152, inciso VII, passou a exigir para a sobrevivência do partido político, cinco por cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos, pelo menos, em sete Estados, com o mínimo de sete por cento em cada um deles.

A Emenda Constitucional nº 11, de 17.10.1978, altera o art. 152 acima mencionado, e passa a exigir que o funcionamento dos partidos políticos fique vinculado ao apoio, expresso em votos, de cinco por cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos, pelo menos, por nove Estados, com o mínimo de três por cento em cada um deles.

Por fim, a Emenda Constitucional nº 25, de 16.05.1985, que estabelecia normas constitucionais de caráter transitório, dispunha, em alteração à antiga redação do art. 152, da Constituição de 1969, que:

Art. 152.

§1º. Não terá direito a representação no Senado Federal e na Câmara dos Deputados o Partido político que não obtiver o apoio, expresso em votos, de três por cento do eleitorado, apurado em eleição geral para a Câmara dos Deputados e distribuídos em, pelo menos, cinco Estados, com o mínimo dois por cento do eleitorado de cada um.

E no § 2º, do mesmo dispositivo acima visto, a advertência de que os eleitos por Partidos que não obtiverem os percentuais exigidos pelo parágrafo anterior, terão os seus mandatos preservados, desde que optem, no prazo de sessenta dias, por qualquer dos Partidos remanescentes.

Já sob a égide da Constituição de 1988, a cláusula de barreira se apresentou não sob a modalidade de regra proibitiva da existência do Partido Político, mas sob a vertente da proibição quanto ao funcionamento parlamentar.

É o que se verifica da leitura do art. 17, da Constituição, que, reportando aos Partidos Políticos, resguarda que o funcionamento parlamentar será de acordo com a lei (inciso IV).

Tal norma constitucional foi integrada pelo advento da Lei nº 9.096, de 19.09.1995, denominada Lei dos Partidos Políticos, que, em seus arts. 12 e 13, cuida do funcionamento parlamentar nos seguintes termos:

Art. 12. O partido político funciona, nas Casas Legislativas, por intermédio de uma bancada, que deve constituir suas lideranças de acordo com o Estatuto do partido, as disposições regimentais das respectivas Casas e as normas desta Lei.

Art. 13. Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas para as quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados obtenha o apoio de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles.

Junto às disposições finais e transitórias da Lei 9.096/95, e com o nítido propósito de servir de critérios de transição entre as eleições que se avizinhavam para 1996 até as eleições gerais para a Câmara dos Deputados de 2006, o legislador infraconstitucional assegurou, para os pleitos deste período de transição, os seguintes critérios:

Art. 57. No período entre o início da próxima Legislatura e a proclamação dos resultados da segunda eleição geral subseqüente para a Câmara dos Deputados, será observado o seguinte:

I - direito a funcionamento parlamentar ao partido com registro definitivo de seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral até a data da publicação desta Lei que, a partir de sua fundação tenha concorrido ou venha a concorrer às eleições gerais para a Câmara dos Deputados, elegendo representante em duas eleições consecutivas:

a) na Câmara dos Deputados, toda vez que eleger representante em, no mínimo, cinco Estados e obtiver um por cento dos votos apurados no País, não computados os brancos e os nulos;

b) nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores, toda vez que, atendida a exigência do inciso anterior, eleger representante para a respectiva Casa e obtiver um total de um por cento dos votos apurados na Circunscrição, não computados os brancos e os nulos;

Assim, o problema é de ordem temporal. É saber qual o termo inicial da vida do novo percentual exigido no acima descrito art. 13 para o funcionamento parlamentar, observado que a partir da publicação da lei e até as eleições de 2006, aplica-se, como cláusula de barreira para o funcionamento parlamentar nas Câmaras Municipais, a norma de transição contida na alínea b, do inciso I, do art. 57, da Lei 9.096/95.

O percentual do art. 13, da referida lei, que deverá ser aplicado a partir das eleições de 2006, é lei nova. O conflito entre suas disposições e a norma de transição que vem sendo aplicada para regular o funcionamento parlamentar nas Câmaras Municipais (alínea b, do inciso I, do art. 57, da Lei 9.096/95) é o que se costuma chamar de conflito das leis no tempo.

A solução para tal conflito, conforme adiante se verá, se encontra nos postulados da irretroatividade da lei e no respeito ao direito adquirido.


2 DIREITO ADQUIRIDO EM MATÉRIA ELEITORAL

Do cotejo entre os arts. 13 e 57, da Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95), vê-se claramente duas situações: a primeira, quanto ao funcionamento parlamentar na Câmara e no Senado Federal a partir da proclamação oficial dos resultados das eleições gerais para a Câmara dos Deputados, aplicando-se os novos critérios da cláusula de barreira previstos no art. 13, da Lei, para os parlamentares empossados a partir de 1º de fevereiro de 2007, nos termos do § 4º, do art. 57, da Constituição Federal; a segunda, quanto a continuidade do funcionamento parlamentar junto às Câmaras Municipais, cujos mandatos se iniciaram em 1º de janeiro de 2005, e que, portanto, são regulados pela norma de transição do art. 57, I, b, da referida lei.

Na primeira situação, fácil observar que a lei nova tem incidência imediata, regulando as relações e o funcionamento parlamentar a partir dos novos critérios por ela trazidos.

Na segunda situação, entretanto, outra será a solução. E assim o será em respeito à garantia constitucional da irretroatividade da lei em respeito ao direito adquirido (art. 5º, XXXVI).

Direito adquirido é conquista da humanidade, e, nos dizeres de Limongi França, fruto de "longa e extraordinária sedimentação histórica, trabalhada pelo desejo de justiça dos legisladores lúcidos, castigada pelos percalços dos embates políticos e das próprias revoluções, polida pela celebração dos maiores doutos da Ciência Jurídica de todos os tempos." [01]

Para a doutrina clássica do mestre italiano Carlo Francesco Gabba [02],

é adquirido todo direito que: a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato foi consumado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo; e que b) nos termos da lei sob cujo império se entabulou o fato do qual se origina, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu.

No Brasil, a questão do direito adquirido não pode ser estudada sem as observações e definições de Rubens Limongi França [03], para quem o direito adquirido

é a conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; conseqüência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto.

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José Afonso da Silva [04], lembrando que a definição de direito adquirido prende-se à definição de direito subjetivo, aquele possível de ser exercitado a qualquer momento, assim o define:

Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se no seu patrimônio, para ser exercido quando lhe conviesse. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato do titular não o ter exercido antes.

Aliás, o conceito e os contornos dos direitos adquiridos decorrem de lei, sendo a questão objeto do § 2º, do art. 6º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657, de 04.09.42) que assim o define: "Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem".

Assim, direito adquirido é aquele que, já integrante do patrimônio de seu titular, pode ser exercido a qualquer momento, não podendo lei posterior, que tenha disciplinado a matéria de modo diferente, causar-lhe prejuízo.

As Constituições Brasileiras sempre trataram do tema, com exceção da Carta de 1937, que nada dispunha sobre o assunto, havendo a edição de leis retroativas durante a sua vigência.

O tratamento constitucional da matéria, aliás, pode ser feito em dois grandes períodos, conforme lição de Raul Machado Horta [05], que assim destaca:

No primeiro, consagra-se o princípio da irretroatividade ampla das leis, sendo o direito adquirido um preceito reflexo daquele, posteriormente disciplinado na legislação ordinária. Foi o que se observou nas Cartas de 1824 (art. 179, § 3º) e de 1891 (art. 11, § 3º). No segundo, a irretroatividade foi absorvida pelo direito adquirido, que passa expressamente a ser inscrito como princípio constitucional, conforme se verifica nos Textos de 1934 (art. 113, § 3º), 1946 (art. 141, § 3º), 1967/69 (art. 153, § 3º) e de 1988, alhures já mencionado (art. 5º, inciso XXXVI).

A Constituição de 1988, em seu art. 5º, inciso XXXVI, descreve o direito adquirido como uma garantia individual. E, adiante, nos termos do art. 60, § 4º, os direitos e garantias individuais não podem ser abolidos sequer através de emenda, demonstrando, de forma clara, a impossibilidade do Poder de Reforma violar tal preceito.

Assim é que em matéria eleitoral, notadamente quanto ao funcionamento parlamentar junto às Câmaras Municipais, cujos mandatos se iniciaram em 1º de janeiro de 2005 (legislatura 2005/2008), os critérios de composição das comissões e da própria Mesa Diretora são, portanto, aqueles regulados pela norma de transição do art. 57, I, b, da lei 9.096/95.

As atuais legislaturas municipais não são – e nem podem ser – alcançadas pelos novos critérios de cláusula de barreira pela votação alcançada pelos partidos políticos nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2006.

Próximo das eleições para a composição das Mesas Diretoras e das diversas Comissões existentes junto às Câmaras Municipais, não se pode admitir sejam impedidos de disputar os cargos, os Vereadores cujos partidos não alcançaram, nas eleições para Deputado Federal de 2006, o percentual exigido de cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles (art. 13, da Lei 9.096/95).

Estes novos percentuais somente poderão ser exigidos a partir da próxima legislatura municipal (2009/2012).


CONCLUSÕES

Do exposto, verifica-se que as atuais legislaturas municipais não podem ser alcançadas pelos novos critérios de cláusula de barreira trazidos pela votação dos partidos políticos nas eleições para a Câmara dos Deputados em 2006.

Desta forma, para as próximas eleições para a composição das Mesas Diretoras e das diversas Comissões existentes junto às Câmaras Municipais, não se pode admitir sejam impedidos de disputar os cargos, os Vereadores cujos partidos não alcançaram, nas eleições para Deputado Federal de 2006, o percentual exigido de cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles (art. 13, da lei 9.096/95).

As legislaturas municipais estão em curso, aplicando-se quanto a continuidade do funcionamento parlamentar junto às Câmaras, cujos mandatos se iniciaram em 1º de janeiro de 2005, a norma de transição do art. 57, I, b, da referida lei.

Admitir, para a continuidade do funcionamento parlamentar junto às Câmaras Municipais, os novos critérios do art. 13, da lei 9.096/95, seria o mesmo que admitir a retroatividade da lei, em prejuízo dos direitos já adquiridos pelos Vereadores, de plenamente concorrer para a constituição das Mesas e das comissões segundo os critérios verificados na lei do momento em que se elegeram para o Legislativo municipal.


Notas

01 FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 196.

02 GABBA, Carlo Francesco. Teoria della retroatività delle leggi. 3. ed. Torino: UTET, 1891. v. I. p. 191.

03 FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 231.

04 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 6. ed. São Paulo: RT, 1990. p. 374.

05 HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 274-6.

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Sobre o autor
Marcos César Minuci de Sousa

advogado em São Paulo, consultor legislativo, professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, mestre em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Marcos César Minuci. Direito adquirido em matéria eleitoral:: a inaplicabilidade da cláusula de barreira aos atuais vereadores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1204, 18 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9056. Acesso em: 18 nov. 2024.

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