3. Hannah Arendt e a reconstrução dos Direitos Humanos
É claro que a aplicação de concepções ético-normativas ao plano dos fatos concretos nos leva a uma reflexão, não menos importante, do estágio atual da efetividade dos direitos, tidos como valores positivados nas constituições do segundo pós-guerra.
Hannah Arendt faz uma interessante reflexão nesse aspecto, que julgamos esclarecedora para a resolução da questão a que nos propomos: A questão dos refugiados.
Um dos fiadores da introdução da obra de Hannah Arendt no Brasil, Celso Lafer3, em livro clássico sobre a temática dos direitos humanos – “A Reconstrução dos Direito Humanos”, veicula sua tese fazendo declaradamente uma aproximação com o pensamento de Hannah Arendt. Utilizando o método dicotômico de aproximações sucessivas, tão presente na obra de Norberto Bobbio, de quem sofreu forte influência intelectual, aborda a temática dos direitos humanos que de maneira dispersa é tratada na obra de Hannah Arendt.
Interessante destacar que Celso Lafer (2003) traz a proposta Arendtiana de conceituar a cidadania como o direito a ter direitos, cuja proteção há de ser pensada no âmbito universal. Vale dizer, um sistema universal de proteção dos direitos fundamentais seria a única forma de prevenir o ressurgimento de regimes totalitários e uma nova ruptura com a dignidade humana. A obra de Celso Lafer (2003), ao propor um diálogo com as ideias de Hannah Arendt nos oferece uma reflexão positiva que viabilize a estabilidade das relações entre os homens através da mediação necessária dos direitos humanos.
Essa perspectiva de reflexão, do ponto de vista local, pode nos remeter ao problema da violência em todas as suas modalidades, que de certa forma, e por outra via que não a da nacionalidade e a quebra do paradigma da filosofia do direito, mas pelas atuais condições sociais, políticas e econômicas, também promove uma ruptura com o princípio da dignidade humana. O mesmo raciocínio vale para a análise da conjuntura nacional, acrescido do fato de que hoje observamos uma verdadeira guinada neoconservadora que tem, de forma escandalosamente explícita (como nunca antes se viu na história desse país), tentado a todo custo subtrair conquistas fundamentais reconhecidas na Constituição Cidadã e que repercutem de forma direta na fruição dos direitos fundamentais.
No plano internacional, e que mais de perto diz respeito a este trabalho, chama atenção o problema dos refugiados, na ordem do dia da imprensa internacional, pois a humanidade tem assistido passiva à tragédia humana dia a dia refletida no sofrimento desses deslocados do mundo4. Para além do reflexo das atuais condições sociais, políticas e econômicas, é uma situação que nos remete inclusive ao fundamento Arendtiano da relação entre nacionalidade e acesso aos direitos humanos. Tal circunstância nos força à reflexão de que há necessidade premente de fortalecer mais e mais o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, a fim de que esse flagelo não nos deixe a todos envergonhados pela incapacidade de enfrentar e dar solução a um problema que, de tempos em tempos, volta a assombrar a humanidade, trazendo a tiracolo o medo do horror e a presença assustadora do fantasma do totalitarismo.
O fato é que as reflexões de Hannah Arendt sobre o fenômeno do totalitarismo marcaram profundamente o pensamento jurídico, notadamente pelo desenvolvimento no pós-guerra da teoria dos direitos humanos como materialização jurídica da dignidade do ser humano e o “direito a ter direitos” pautado no respeito à liberdade, como um espaço que abriga a pluralidade e, a partir dela, constitui esfera política e cria uma realidade compartilhada (CARVALHO in AQUINO; REGO, 2014).
4. A Teoria da Justiça de John Rawls e a negação do utilitarismo na aplicação ao problema dos refugiados
De matriz nitidamente kantiana e que tem na ação, e não no resultado, o valor moral da conduta, considerada de postura contratualista e com um forte apelo igualitário, a Teoria da Justiça de Rawls assume declaradamente seu intuito de contraposição ao pensamento utilitarista e, de certo modo, intuicionista. Ele mesmo assevera que seu propósito é “elaborar uma teoria da justiça que seja uma alternativa viável a doutrinas que dominaram por muito tempo nossa tradição filosófica” (RAWLS, 2008, p. 3).
Uma das mais influentes versões da teoria moral consequencial é a filosofia do utilitarismo, que goza de muitos adeptos na cultura anglo-saxônica. Jeremy Bentham, o filósofo político inglês do século 18 deu primeira expressão clara e sistemática da teoria moral utilitarista no livro Introdução aos Princípios da Moral e Legislação (1789). Segundo Bentham, o critério para julgar se uma ação humana é boa ou má, justa ou injusta, certa ou errada deveria se basear no princípio da utilidade, ou princípio da maior felicidade.
Bentham concebe a natureza humana como governada por dois senhores soberanos: a dor e o prazer. O homem busca sempre o prazer e evita sempre a dor, o motivo de nossas ações, portanto, é sempre a busca pelo bem-estar. Assim, a utilidade seria o saldo de prazer sobre a dor, de felicidade sobre sofrimento. Uma ação estaria em conformidade com a utilidade quando a tendência que ela tem a aumentar a felicidade for maior que qualquer tendência que tenha a diminuí-la. Então a coisa certa ou justa a fazer é maximizar a utilidade, o bem-estar, o princípio mais elevado de moralidade é maximizar o nível geral de felicidade. O justo será aquilo que promover o bem-estar ou a felicidade do maior número de pessoas. "O bem maior para o maior número".
Essa lógica utilitária muitas vezes é chamada análise de custo-benefício. Ela é usada por empresas e por governos a toda hora. O que ela envolve é colocar um preço para simbolizar a utilidade nos custos e benefícios de várias propostas. Da mesma forma é utilizada, às vezes de forma velada, às vezes nem tanto, para obstar o acolhimento dos refugiados, quando se alegam problemas de ordem econômica, como a desintegração do mercado de trabalho; ou culturais, como a erosão dos valores predominantes na Europa Ocidental
A teoria utilitarista sofreu algumas objeções, como a alegação de que o utilitarismo por se preocupar com o bem maior para a maioria não respeita adequadamente os direitos individuais ou das minorias. Para os críticos, o utilitarismo não veria problemas no sacrifício imposto sobre alguns a fim de proporcionar vantagens à maioria, caso isso fosse necessário para atingir o máximo de satisfação possível. Ao estender algo que seria racional que um indivíduo desejasse, como a maximização de sua felicidade ou de seu bem-estar, para o conjunto dos indivíduos, que é a sociedade, faz com que seja permitido o sacrifício da liberdade de alguns de modo a satisfazer o critério de utilidade.
Outro ponto criticado é que para Bentham as preferências de todos contam, não importa o que as pessoas querem, não importa o que faz cada pessoa feliz. Ele não faz distinção entre prazeres melhores do que outros. Segundo ele, os interesses do agente não têm, na verdade, mais importância do que os interesses de quaisquer outros indivíduos, sejam eles quem forem. Deste modo, o utilitarista advoga uma estrita igualdade na consideração dos interesses, a promoção imparcial da felicidade. Para ele, é presunção julgar quais os prazeres intrinsecamente mais elevados, valiosos ou melhores.
John Stuart Mill tentou responder a essas objeções, e tentou humanizar o utilitarismo. Stuart Mill foi educado pelo pai, James Mill, discípulo de Bentham com a assistência do próprio Bentham. Foi-lhe dada uma educação muito rigorosa com objetivo explícito criar um gênio intelectual que iria assegurar a causa do utilitarismo e a sua implementação após a morte dele e de Bentham.
Mill tentou descobrir se o cálculo utilitário poderia ser expandido e modificado para acomodar preocupações humanitárias como o respeito aos direitos individuais e também a distinção entre prazeres elevados e baixos.
Em 1859 escreveu um livro famoso "A liberdade", cujo assunto principal era a importância de se defender os direitos individuais e das minorias, e em 1861, perto do fim da vida, ele escreveu o livro "Utilitarismo", que se tornou a obra emblemática da tradição utilitarista, sendo hoje um dos clássicos da filosofia moral mais lidos e discutidos.
Ele deixa claro que a utilidade é a única medida da moralidade em sua opinião, portanto ele não discute a premissa de Bentham, ele a confirma. Mas argumenta que é possível para um utilitário distinguir entre prazeres elevados de prazeres baixos. Essa distinção seria possível quando entre dois prazeres, se há um para o qual todos ou quase todos que experimentaram ambos dão decididamente preferência sem levar em conta qualquer obrigação moral para preferi-lo, então esse é o prazer mais desejável.
De forma geral, o utilitarismo de Bentham é configurado como hedonismo quantitativo, pois pra ele quanto maior a duração e intensidade dos prazeres gerados por uma ação, mais felicidade tendia a ser gerada por essa ação. Já Stuart Mill aproxima-se de um hedonismo qualitativo, pois durante a avaliação de uma ação, além da intensidade e duração dos prazeres, deve-se levar em conta a qualidade dos prazeres gerados por ela. Mill os distingue como superiores ou inferiores, de acordo com a sua natureza intrínseca. São superiores os prazeres do intelecto, das emoções, da imaginação e dos sentimentos morais e são inferiores os prazeres corporais. Confrontados por indivíduos que tenham experiência de ambos, os do tipo superior sobressaem-se como preferíveis, sendo então considerados melhores do que os outros.
Mill tenta demonstrar que o utilitarismo não é incompatível com a justiça. Defende que a justiça não está dissociada da felicidade e que a promoção da felicidade passa pela justiça. A relação da justiça com o utilitarismo consiste no fato de as regras morais da justiça estarem diretamente relacionadas ao que há de essencial na promoção da felicidade humana. São elas que proíbem os homens de se prejudicarem, preservam a paz entre eles e os pune quando as desrespeitam. A imparcialidade e a igualdade, virtudes ou obrigações da justiça, são partes essenciais da utilidade. Por tudo isso, as regras morais da justiça são mais imperativas do que as outras, embora a sua observação admita exceções.
Portanto, o utilitarismo, como postura que considera um ato correto quando maximiza a felicidade geral, é rejeitado por Rawls justamente por esse seu aspecto teleológico ou consequencialista. Ele, como outros liberais, defende uma postura não-consequencialista (deontológica), vale dizer, uma postura onde a correção moral de um ato depende das qualidades intrínsecas da ação.
Já o intuicionismo, de acordo com a visão do próprio Rawls, tem por característica a existência de uma pluralidade de princípios de justiça, que permitem certo conflito uns com os outros, chegando Jonathan Dancy a afirmar que em certo momento o intuicionismo era sinônimo de pluralismo de princípios morais (GARGARELLA, 2008 apud DANCY, 1991). De outra banda, o intuicionismo também peca, na visão de Rawls, por não dispor de um método objetivo para a escolha dos princípios no caso concreto, muito menos um critério que determine a prioridade de princípios em cada caso. Dessa forma, nos resta apenas avaliar a aplicação dos princípios de justiça no caso concreto pelo uso da intuição. É por essa razão que Rawls também se opõe ao intuicionismo, por entendê-lo incapaz de hierarquizar as intuições nos casos de conflito de sua aplicação nos casos concretos, muito embora “admita a necessidade de reconhecer um lugar importante para as nossas intuições, na tarefa de buscar uma teoria sobre a justiça” (GARGARELLA, 2008, p. 3).
Ao abrir a primeira parte de sua monumental obra Uma Teoria da Justiça, Rawls apresenta, sem cerimônia, “a ideia central da justiça como equidade, uma teoria da justiça que generaliza e eleva a um nível mais alto de abstração a concepção tradicional do contrato social” (RAWLS, 2008, p. 3). Isso deixa claro que o contratualismo vem ocupar um lugar significativo na teoria de Rawls, assim como ocupa de uma forma geral em toda a tradição política e filosófica liberal, em face do destaque que reserva ao valor da autonomia do ser humano.
Em sua teoria da justiça Ralws faz alusão a um modo particular de contrato social, na verdade um contrato hipotético, pois na sua visão trata-se de um acordo que firmaríamos, sob certas condições ideais, com o necessário respeito de nossa condição de seres livres e iguais. Esse contrato hipotético, por sua vez, em vez de preocupar-se com a questão da distribuição do poder político, tem por finalidade específica estabelecer certos princípios básicos de justiça aplicados à estrutura básica da sociedade. Sua tese principal é a de que não é possível encontrar os princípios capazes de ordenar a estrutura básica da sociedade, a não ser quando partimos de uma posição original, através do véu da ignorância. A originalidade de Rawls está no método e no conteúdo de sua teoria.
John Rawls elabora sua teoria da justiça alicerçado em três pressupostos básicos: a escassez moderada de recursos; o fato do pluralismo; e o fato de que as capacidades morais dos indivíduos estão ordenadas segundo princípios de racionalidade e razoabilidade. A partir daí, pode-se dizer que Rawls estrutura seu trabalho ancorado em também três elementos fundamentais.
O primeiro elemento estruturante da teoria rawlsiana diz respeito ao objeto de sua teoria, a saber, a estrutura básica da sociedade. Em suas palavras, o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade ou, mais exatamente, o modo como as instituições sociais mais importantes distribuem os direitos e deveres fundamentais, e determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes, entendo a constituição política e as principais disposições econômicas e sociais” (RAWLS, 2008, p. 8).
Também não é bom esquecer que os princípios de justiça decorrentes do contrato hipotético de Ralws são aplicáveis a sociedades bem organizadas, consideradas aquelas onde vigoram as circunstâncias de justiça e devotadas à promoção do bem de seus membros. Vale dizer, “uma sociedade na qual todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça; e as instituições sociais fundamentais geralmente atendem, e em geral se sabe que atendem, a esses princípios” (RAWLS, 2008, p. 5).
Ou seja, a estrutura básica da sociedade referida por Rawls vem a constituir as principais instituições sociais e econômicas, cuja finalidade está ligada à distribuição de direitos e deveres, à repartição dos bens e dos ônus em sociedade.
O segundo elemento fundamental da teoria de Rawls está ligado ao seu método de justificação, denominado por ele de “posição original”, como uma nova forma de contrato social hipotético, onde os participantes decidem os princípios da organização básica da sociedade, sob certas condições que chamou de “véu da ignorância”, assim concebida a condição de total desconhecimento das posições da vida real, atributos naturais, físicos e psicológicos, condições socioeconômicas e concepções de bem e projetos de vida, não sendo ignorada, apenas, a existência de bens primários, sejam de natureza social – direitos, oportunidades, riquezas, seja de natureza natural – saúde, talento, inteligência, ainda que se possa divergir dessa classificação. No caso, a justiça manifesta-se em face do procedimento adotado.
O terceiro elemento fundamental da teoria da justiça de Rawls está em colimação com o conteúdo da concepção política de justiça, mais precisamente com papel da justiça e os princípios que seriam escolhidos em uma posição original, sob o véu da ignorância.
Para Rawls, “a Justiça é a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento; (...) as leis e as instituições, por mais eficientes e organizadas que sejam, devem ser reformuladas e abolidas se forem injustas” (RAWLS, 2008, P. 4).
Assim, tendo a justiça com a primeira das virtudes das instituições sociais, o conteúdo de sua teoria completa-se com a escolha dos princípios na posição original, sob o véu da ignorância. Esses seriam o princípio de igual liberdade para todos e o princípio da diferença.
O primeiro princípio está umbilicalmente ligado ao valor liberdade e pode ser materializado na expressão dos direitos individuais de liberdade de expressão, liberdade de pensamento e liberdade de reunião, dentre outros de mesma natureza, que constituem um não fazer do Estado em relação ao cidadão. O segundo princípio, o da diferença, de forte apelo igualitário, traz implícito dois subprincípios, na medida em que esse princípio da diferença somente se justifica quando propiciar maiores benefícios aos menos favorecidos (o máximo do mínimo) e que viabilize a justa igualdade de oportunidades, como manifestação da igualdade material, no ponto em que iguala igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.
Nesse pronto, e isso é importante para o entendimento da teoria de Rawls, ele prioriza o primeiro princípio, ligado ao valor liberdade, em relação ao segundo, ligado ao valor igualdade. No segundo princípio, Rawls prioriza o da justa igualdade de oportunidades em relação ao de maiores benefícios aos menos favorecidos.
Formulando esses princípios nas palavras do próprio Rawls:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoalvelmente esperar que se estabelecam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos (RAWLS, 2008, p. 73).
Ao fim e ao cabo, o que Rawls prende é promover a compatibilização entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade, sem que haja sacrifício de um pelo outro, o que em toda a tradição liberal se julgou um problema difícil, que dirá impossível, de equacionar.
A concepção de justiça igualitária rawlsiana traz uma luz à solução do problema dos refugiados, na medida em que, ao partir da posição original, sem que saibamos qual posição (inclusive a de refugiado) ocuparemos nessa sociedade hipotética, adotaríamos uma postura de acolhimento e de respeito às normas internacionais do direito de silo.