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A crise global dos refugiados: uma reflexão ética necessária

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fato é que, do ponto de vista estritamente ético-normativo, uma visão que privilegie uma ética da virtude, no modelo clássico grego, não contribui para a resolução da situação atual dos refugiados no mundo. Pelo contrário, essa visão apenas acentuaria as discriminações por uma suposta naturalidade da condição, ainda que temporária, de vulnerabilidade econômica e social desses migrantes.

Da mesma forma, não nos socorrem, para apontar solução à questão dos refugiados, os argumentos consequencialistas, sejam eles de caráter pragmático ou utilitarista, pelo simples fato de que o argumento econômico (deterioração do mercado de trabalho interno) ou cultural (erosão dos valores eurocêntricos) tornaria insuperável a construção de um consenso que estabeleça um mínimo razoável aceito e suportável por todas as nações, que de forma colaborativa contribuiriam para a solução do problema.

Acreditamos que uma postura ética, de caráter deontológico, todas de inspiração kantiana, esteja mais vocacionada para trazer luz ao complexo problema dos grandes deslocamentos humanos migratórios experimentados na contemporaneidade. Seja ela uma proposta de reconstrução dos direitos humanos, pautada no diálogo e no respeito às diferenças, como o entendimento acima esposado de Hannah Arendt; seja uma proposta que tenha como base uma teoria da justiça igualitária, como a de John Rawls, onde todos tragam para a discussão dos princípios aplicáveis a consciência de que em uma posição original, mediada pelo véu da ignorância, poderão ocupar qualquer uma das posições dos atores sociais, inclusive a posição de refugiados; seja, anda, uma condição procedimental universalista que privilegie um diálogo franco, aberto, livre e responsável, onde os Estados e organismos internacionais possam escolher com responsabilidade os princípios que serão aceitos e respeitados por todos na aldeia global, que encontra fundamento na ética do discurso habermasiana como teoria moral.

Voltemos, então, ao questionamento inicial: Qual o agir justo do Estado diante da questão dos refugiados? O Estado deve ampará-los, expulsá-los ou ignorá-los? Que medidas o sistema de direito internacional coloca à disposição dos Estados soberanos para a resolução da questão?

No ano de 20015, o filósofo alemão Jürgen Habermas foi agraciado com o prêmio John W. Kluge, considerado o Prêmio Nobel das Ciências Humanas. No momento a que se seguiram as homenagens, Habermas fora entrevistado pelo canal de comunicação alemão Deutsche Welle, oportunidade em que fora dirigida o mesmo questionamento inicial deste trabalho.

Pela linha que adotamos, já de se esperar que não podemos nos furtar a adotar o argumento de autoridade habermasiano, quando respondeu: “o direito de asilo é um direito humano e qualquer pessoa que pede asilo deve ser tratada de forma justa e, se for o caso, deve ser acolhida com todas as consequências”[5].

Em Habermas, a racionalidade comunicativa, para além de estabelecer uma dimensão reflexiva com o mundo da vida, favorece os processos de aprendizagem com potencial para transformar esse mesmo mundo da vida:

Assim, o agir comunicativo é a forma de ação que tem o maior potencial para encadear processos de aprendizagem, tanto no nível individual quanto no nível coletivo. É por meio desse tipo de ação social que a racionalização da sociedade alcança seu nível mais avançado e que, portanto, a razão se manifesta na história (BANNELL, 2006, p. 48).

E o que se deve levar como aspecto de aprendizagem e argumento de discussão para o espaço público, em torno de se criarem as condições de possibilidade de um consenso mundial sobre a questão dos refugiados? Deve-se levar em consideração que muitas dessas migrações são reflexos, ainda que tardios, da imposição de um arbitrário cultural disseminado com o colonialismo das nações europeias, assim como das políticas externas, quase sempre intervencionistas, por interesses na maioria das vezes econômicos, das potências ocidentais:

Esse imperativo moral advém da responsabilidade histórica pelo legado negativo do colonialismo. Não é possível eximir-se dessa responsabilidade moral no momento em que as vítimas de tais ações acorrem às fronteiras. A busca por um diálogo que leve a um consenso é fundamental partindo de uma lógica multilateral. (SABER EM DEBATE, 2015).

A razão comunicativa habermasiana traz a lógica de uma ética universalista, com potencial de resolução de uma questão geopolítica que tem sido tratado como questão puramente humanitária. A solução está no fato de que o fortalecimento dos Estados e dos organismos internacionais propiciará o estabelecimento de valores objetivos, universalizáveis e exigíveis, pactuados e aceitos por todos de modo livre, de uma forma que preserve os interesses de todas as nações.

A resposta ao questionamento inicial em relação aos refugiados é que os Estados devem sim ampará-los, acolhê-los e inseri-los em uma situação de dignidade, com forte proteção do direito internacional. Há para isso importante instrumento no sistema de direito internacional, o Pacto Global sobre Refugiados[6] aprovado pela ONU em dezembro de 2018[7], cujo objetivo é promover uma resposta internacional adequada aos fluxos em massa e situações prolongadas de refugiados, com quatro eixos principais de atuação:

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  • Diminuir a pressão em países de acolhimento;
  • Aumentar a autossuficiência dos refugiados;
  • Expandir o acesso à soluções de países terceiros;
  • Apoiar condições nos países de origem para retorno com segurança e dignidade.           

O documento, que promove a cooperação entre as nações em matéria de refugiados, divide a responsabilidade ente todos os países e tem como fundamento toda a legislação internacional sobre direitos humanos, como expressão de um senso comum universal pautado na ética da discussão.


REFERÊNCIAS

AQUINO, Júlio Groppa; REGO, Teresa Cristina. Hannah Arendt pensa a educação: a educação em tempos sombrios. São Paulo: Editora Segmento, 2014.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. (Os pensadores ; v. 2): tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D. Ross 4. ed. — São Paulo: Nova Cultural, 1991

OLIVEIRA, Daniela Cristina Neves de. A atual crise migratória europeia à luz do pensamento de John Rawls. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos. Bauru, v. 4, n. 2, p. 201-222, jul./dez., 2016

CALFAT, Natalia Nahas. O Estado Islâmico do Iraque e do Levante: fundamentos políticos à violência política. Revista Conjuntura Austral, Porto Alegre, v.6, n.31, p. 6-20, ago./set. 2015.

GARGARELA, ROBERTO. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política; tradução Alonso Reis Freire. São Paulo. WMF Martins Fontes, 2008

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Título original: Kritik der reinen Vernunft. In: KANT, 1ª. edição, Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo, 1974 (Coleção Os Pensadores, Vol. XXV).

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 (5ª reimpressão).

PAVIANI, Jayme; SANGALLI, Idalgo José. Ética das Virtudes. In: TORRES, João Carlos Brum (org). Manual de Ética: questões de ética teórica e aplicada. Petrópolis, RJ: Vozes; Caxias do Sul, RS; Universidade de Caxias do Sul; Rio de Janeiro: BNDES, 2014

PINZANI, Alessandro. A Ética do Discurso. In: TORRES, João Carlos Brum (org). Manual de Ética: questões de ética teórica e aplicada. Petrópolis, RJ: Vozes; Caxias do Sul, RS; Universidade de Caxias do Sul; Rio de Janeiro: BNDES, 2014

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Nova tradução, baseada na edição americana revista pelo autor, Jussara Simões. 3º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA, Refúgio em números, 3ª edição, 2018. https://www.justica.gov.br/news/de-10-1-mil-refugiados-apenas-5-1-mil-continuam-no-brasil/refugio-em-numeros_1104.pdf


[1] Tendo em vista a crise humanitária gerada pelo grande fluxo de refugiados oriundos da Venezuela, a Secretaria Nacional de Justiça fez uma apresentação, em 11/04/2018, sobre a situação dos refugiados no país, em números, concedendo entrevista coletiva onde indicou as ações do governo brasileiro para o enfrentamento do problema. http://www.justica.gov.br/news/de-10-1-mil-refugiados-apenas-5-1-mil-continuam-no-brasil

[2] Dados atuais da Agência da ONU para refugiados – ACNUR dão conta de 79,5 milhões de pessoas forçadas a se deslocar no mundo até o final de 2019. Nessa nova configuração a Venezuela  aparece como o país de origem com o segundo maior número de refugiados no mundo – 3,7 milhões. https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/

[3] Conforme publicado na edição 208 da revista Cult: aos 24 anos de idade, Celso Lafer foi aluno da filósofa alemã Hannah Arendt no curso de pós­‑graduação em Ciência Política na Universidade de Cornell, nos EUA.

[4] Quando pensamos na questão atual dos refugiados, não conseguimos deixar de lembrar do fato de que, pouco antes do início da segunda guerra mundial, mais de 100 mil judeus tiveram a recusa do visto de entrada nos Estados Unidos. Esses mesmos 100 mil judeus recusados acabaram por perecer nos campos de concentração.

[5] "Direito de asilo é direito humano", diz Habermas. https://www.dw.com/pt-br/direito-de-asilo-%C3%A9-direito-humano-diz-habermas/a-18754106

[6] As Nações Unidas aprovaram o pacto global sobre refugiados. Ao todo, 181 países votaram a favor do documento, enquanto Estados Unidos e Hungria foram contrários. República Dominicana, Eritreia e Líbia se abstiveram. https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-12/onu-aprova-pacto-global-sobre-refugiados

[7] O Brasil Aderiu inicialmente ao Pacto Global sobre Migração, aprovado pela ONU na mesma época, no entanto o governo brasileiro, a exemplo de Polônia, Hungria, República Checa, Chile e Áustria, posteriormente anunciou que ira se dissociar do acordo, por entender que imigração deveria ser tratada de acordo com a “realidade e a soberania de cada país. https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-12/onu-aprova-pacto-global-sobre-refugiados

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Sobre o autor
Roberto Carlos Fernandes de Oliveira

Bacharel em Direito - UFC; Especialista em Direito Público - PUC/MINAS; MBA Executivo em Gestão Pública - FGV; Especialista em Filosofia e Teoria do Direito - PUC/MINAS; Mestre em Sociologia - UECE; Procurador Federal; Professor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Roberto Carlos Fernandes. A crise global dos refugiados: uma reflexão ética necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6547, 4 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90561. Acesso em: 23 abr. 2024.

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Artigo elaborado no âmbito da pós-graduação em Filosofia e Teoria do Direito na PUC Minas

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