Ainda sobre a (in) constitucionalidade da delação premiada.

Análise a partir da denominada “operação da Lava Jato”

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A colaboração premiada é totalmente adequada ao nosso sistema constitucional? Quais os principais pontos de inconstitucionalidades que podem ser apontados e corrigidos?

Nos últimos quatro anos, o Brasil tem passado por diversas conturbações, crises e incertezas no âmbito político e jurídico. Com o surgimento da denominada “Operação Lava Jato”, crimes diversos e organizações criminosas atuantes no centro do poder, em estatais e grandes empresas nacionais e estrangeiras foram sendo desveladas, configurando os famigerados “Crimes de Colarinho Branco”. O dinheiro público foi tungado, por muitos anos. A principal vítima dos ilícitos foi a sociedade, por se tratar de crimes cometidos contra patrimônios públicos.

Diante desse quadro de eventos criminosos múltiplos, sistêmicos e transnacionais, bem como do grande número de investigados dentro da Operação Lava Jato, da complexidade dos crimes perpetrados, assim como do poder econômico, social e político de grande parte dos envolvidos, o titular da persecução penal adotou a estratégia de firmar diversos acordos de colaboração com os sujeitos passivos, as conhecidas “delações premiadas”, regidas pela Lei de Organização Criminosa (Lei 12.850/2013).

Assim, tomando como base a importância do tema, este artigo parte do seguinte questionamento: a prática da colaboração ou delação premiada vigente é totalmente adequada ao nosso sistema constitucional? Caso contrário, quais os principais pontos de inconstitucionalidades que podem ser apontados e corrigidos?

Para que se alcance a tal objetivo, o presente artigo tem por objeto os denominados “Crimes de Colarinho Branco”; apresentará as características da Colaboração Premiada e a sua origem no direito brasileiro, e por fim, irá expor, a título de exemplos, as prisões que foram efetuadas durante as fases da Operação Lava Jato.

Portanto, entendemos necessário e pertinente o estudo destes casos para que possamos saber quais os limites a serem obedecidos no momento da formação desses negócios jurídicos processuais, sem esquecer, em qualquer hipótese também no que diz respeito ao uso indevido de prisões, medida que vem sendo utilizada para forçar o investigado a delatar, de forma a violar indubitavelmente direitos e garantias fundamentais asseguradas constitucionalmente.

É importante destacar que no Brasil, de acordo com Arruda (2014), a população voltou seus olhos para os crimes de colarinho branco a partir da ação penal 470 do STF, mais conhecida como “Mensalão”, em que protagonizavam neste processo, que estava sendo apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, pessoas de grande importância na história do país.

Hoje, quase quinze anos depois, o tema é cada vez mais recorrente. Pululam, diariamente, nos noticiários dos telejornais, jornais, revistas, meios eletrônicos de todo país é escândalos envolvendo pessoas físicas e jurídicas de alto poder politico, econômico e social, como no caso da “Operação Lava Jato”, que foi considerada a maior investigação policial que gira em torno de condutas criminosas de corrupção e lavagem de dinheiro por parte de grandes empresários e políticos brasileiros

Nesse contexto de atenção, revolta social e persecução acentuada dos reprováveis “crimes de colarinho branco”, em que investigações importantes vêm sendo desenvolvidas nos processos criminais do Brasil, ganhou proeminência a colaboração premiada. Em se tratando de crimes altamente complexos, tornou-se necessário fazer uso de meios modernos e eficazes de combate aos crimes organizados, atuando de maneira mais célere e sofisticada. Porém, não deixou de ensejar diversas polêmicas, críticas e até acusações de abuso evidenciado na sua aplicação.

A colaboração premiada é um meio de obtenção de prova, que de acordo com o art. 3º da Lei de Organização Criminosa pode ser admitida em qualquer fase do processo criminal, onde se têm como espécies a delação premiada, sendo este um instituto de natureza processual que consiste em estabelecer um contrato, ou seja, um negócio jurídico, elegendo um delator para confessar o(s) crime(s), bem como apontar os seus comparsas e os meios utilizados para a empreitada criminosa.

Atendidos os requisitos trazidos na legislação brasileira, o acordo firmado entre o delator e a justiça pode trazer benefícios àquele, determinados pelo art. 4º da Lei 12.850/2013, como por exemplo, ensejar na redução de até 2/3 da pena privativa de liberdade, substituição de pena, em que invés de se aplicar a pena privativa de liberdade se aplicará a restritiva de direito, ou até mesmo na extinção de punibilidade do agente.

Importante frisar ainda, que há possibilidade de se firmar o acordo de colaboração premiada mesmo depois de uma sentença penal condenatória, que, de acordo com o art. 4º, parágrafo 5º da Lei 12.850/2013, pode ser concedido ao agente condenado à redução de pena até a metade ou a progressão de regime.

Contudo, ainda traz a hipótese no seu parágrafo 4º, incisos I e II, do art. 4º, que poderá deixar o Ministério Público de oferecer a denúncia se o colaborador não for o chefe da quadrilha, e/ou, prestar efetiva colaboração, nos termos da referida lei.

Com efeito, partir do momento que se trata de crimes altamente complexos, muitas vezes, torna-se mais vantajoso que se conceda determinados benefícios ao colaborador que está contribuindo com a justiça, do que deixar escapar uma oportunidade de desvendar a “entranhas” de delitos graves como os executados nos crimes organizados.

Cabe ressaltar ainda que esses depoimentos somente serão válidos se forem prestados sem qualquer tipo de coação, ou seja, de maneira voluntária, por força do art. 4º caput, da Lei 12.850/2013, de modo que, as informações obtidas sem total espontaneidade do indiciado, acusado, investigado ou condenado, tornar-se-ão ilícitas, devendo assim, serem decretadas nulas, já que há presença de vícios no negócio jurídico firmado.

Por sua vez, Vasconcelos (2017) afirma que o instituto da colaboração premiada se trata de um instrumento jurídico altamente complexo, consistindo em um meio de obtenção de provas. Ou seja, a colaboração premiada não é uma prova em si mesmo, ela representa apenas uma forma para se chegar à determinada prova que, por sua vez, na visão do aludido autor, não dão ensejo a uma condenação, mas apenas tem natureza de prova colhida no meio do processo, devendo assim, estar confirmada com outros meios de prova, que pode ser

Podem propor a colaboração premiada, em regra, o Ministério Público e o Delegado de Polícia. Mas, não há nenhum tipo de impedimento trazido pela lei do acusado ou investigado na persecução penal propor também, já que este tem interesse direto nos benefícios que poderão ser concedidos. O único impedimento que traz a lei, está no art. 4, parágrafo 6º da Lei 12.850/2013, que determina que o juiz não poderá participar das negociações que ocorrerão entre delegado de polícia, o investigado e o seu defensor, onde, neste caso deve-se ter a manifestação do Ministério Público, ou, no caso de negociações entre Ministério Público, o investigado e o seu defensor.

No que diz respeito ao juiz a sua função será de homologar, ou seja, convalidar o acordo firmado pelas partes acima citadas, como preceitua o art. 4º, parágrafo 7º, devendo ele analisar a regularidade, legalidade e voluntariedade, que conforme as palavras de Aury Lopes Jr. (2014, p. 110) “[...]a função do juiz é atuar como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal.”, podendo ouvir, de forma sigilosa o acusado ou investigado, e como dito antes, sempre na presença do seu advogado ou defensor, sendo este um direito irrenunciável do delator, de modo que o mesmo não pode resistir a esta imposição.

Cabe destacar que, durante as negociações de colaboração premiada é indispensável a presença do defensor ou advogado, de forma que o mesmo deve estar presente em todos os atos desse negócio jurídico, conforme parágrafo 15 da referida lei. Na visão de Vasconcelos (2017, p. 87) “Com intuito de assegurar a regularidade do mecanismo negocial[...]”. Deste modo, qualquer prova que provenha de delação tem que estar devidamente submetida a apuração da defesa, onde, caso não aconteça, considerar-se-á mera informação.

O instituto da delação premiada foi criado para auxiliar ao Estado e dar mais eficácia e celeridade no processo penal no combate à criminalidade organizada, de forma a se premiar um integrante de suposta OCRIM, para que este facilite e ajude nas investigações trazendo informações relevantes. Isso se dá em razão do discurso da falência do Estado, por si só não consegue prevenir o cometimento de tais delitos, onde, nas palavras de Pereira; Simões (2016, p. 10) “[...] É típica de países com falhas e em momentos de crise[...]”, de modo a ensejar diversas críticas a tal regulação.

Uma das maiores delações que podemos citar como exemplo no caso da Lava Jato foi o de Paulo Roberto Costa, que é ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás, entre 2004 e 2012, que ficou conhecido por seu envolvimento no esquema de corrupção estatal investigado pela Lava Jato, e que se tornou o primeiro delator capaz de apontar as empresas corruptoras, dezenas de políticos que sustentavam o esquema e de decifrar as anotações de pagamentos de propina feitas em códigos, onde após intensas negociações, assinou o acordo que estabelecia as regras da colaboração e os benefícios que o ele poderia alcançar (Dallagnol, 2017).

Já para Bitencourt (2015), a delação premiada no ordenamento jurídico brasileiro é considerada inadmissível, uma vez que não existe fundamento ético na premiação de um delator e na atenuação de sua responsabilidade criminal, já que esse procedimento não leva em consideração, sem fazer qualquer questionamento prévio sobre o motivo que deu causa a esta delação, ainda que esteja em conjunto com outras provas, a fim de confirmar o que foi declarado.

Assim como Bitencourt, Vasconcelos (2017), em sua obra, faz menção ao art. 4º, parágrafo 14 da Lei 12.850/2013, afirmando que o colaborador que firma este tipo de acordo com a justiça deve abrir mão do direito ao silêncio, se comprometendo a dizer a verdade durante a investigação criminal, mas que, ainda que se tenha esse compromisso estabelecido em lei é completamente questionável, uma vez que o colaborador tem interesse direto com o julgamento, de forma que teria como consequência “a fragilização da sua confiabilidade, impondo uma necessidade reforçada de corroboração.” (VASCONCELOS, 2017, p. 68).

Sendo assim, os referidos autores concluem que essa “verdade” trazida pelo delator, tem que estar sempre confirmada por provas documentais, não bastando apenas os seus dizeres, devendo sempre desestimular as possíveis mentiras que possam surgir, já que é óbvio que ele pode não cumprir sua promessa de veracidade, pois ele tem interesse total num julgamento mais brando e favorável para si.

Fazendo uma análise à Lei 12.850/2013, é possível notar que o seu texto normativo pode confrontar a Constituição Federal. Bitencourt (2015) faz um levantamento de diversos direitos e garantias fundamentais que foram afrontados com os acordos estabelecidos na Lava Jato, dentre eles: Ampla Defesa, Devido Processo Legal, Direito ao Silêncio, não produzir provas contra si mesmo, Direito de não se autoincriminar e o Direito de Ação:

  • 1) o delator tem que desistir de todos os habeas corpus impetrados;

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  • 2) deve desistir, igualmente, do exercício de defesas processuais, inclusive de questionar competência e outras nulidades;

  • 3) deve assumir compromisso de falar a verdade em todas as investigações (contrariando o direito ao silêncio, a não se auto-incriminar e a não produzir prova contra si mesmo);

  • 4) não impugnar o acordo de colaboração, por qualquer meio jurídico;

  • 5) renunciar, ainda, ao exercício do direito de recorrer de sentenças condenatórias relativas aos fatos objetos da investigação.

Reconhecem que o colaborador tem direito constitucional ao silêncio e a garantia contra a auto-incriminação. Mas invocam o disposto no artigo 4º, parágrafo 14, da Lei 12.850/2013, para exigir a renúncia do colaborador nos depoimentos em que prestar. Em outros termos, invertem a ordem natural da hierarquia de nosso ordenamento jurídico, e, com um simples acordo, “revogam” a Constituição Federal.

Menos mal que o digno e culto ministro Teori Zavascki, ao homologar o acordo de delação, excluiu todas aquelas restrições que visavam afastar a jurisdicionalidade, que também é uma garantia de todo cidadão, em outros termos, assegurou-se o amplo de direito de ação. (BITENCOURT, 2015, p. 04).

Assim, a colaboração precisaria respeitar tais garantias na sua aplicação ao caso concreto, para que seja considerada um ato juridicamente válido, sem vício de constitucionalidade.

Por sua vez, Vasconcelos (2017) faz menção a diversos direitos fundamentais que os colaboradores tiveram que renunciar, chamando atenção para o direito de acesso à justiça e o direito ao recurso no processo penal, bem como a renúncia do direito de não autoincriminação e dever de veracidade, no caso da “Operação Lava-jato”. No tocante a renúncia do direito de acesso à justiça e ao direito de interpor recurso no processo penal diz-se:

[...]a renúncia ao direito ao recurso deve ser rechaçada, pois, além de impor o aceite a eventual prejuízo desconhecido pelo imputado, inviabiliza por completo o controle dos acordos pelos tribunais, fomentando práticas ilegais e acordos informais.[...].

[...]Além disso, é determinada a desistência de todos os habeas corpus e recursos em tramitação[...]. Tais dispositivos também poderiam ser criticados, ao passo que, como postula Silva Jardim, “seria nula qualquer cláusula que vedasse ao indiciado o direito de exercer, futuramente, o seu direito de ação, mormente em se tratando de Habeas Corpus, como seria também inválida a renúncia prévia ao duplo grau de jurisdição.” (VASCONCELOS, 2017, p. 163).

Contudo, em larga medida, nos acordos firmados impõem ao delator que abra mão de direito fundamental irrenunciável assegurado pela Constituição Federal, como o de acesso à justiça e o de recorrer.

Outra inconstitucionalidade apontada é no que ao art. 129 da Constituição Federal, que trata das atribuições do Ministério Público, onde no seu inciso I, afirma que é função desse órgão promover a ação penal pública na forma da lei, de maneira a se excluir a atribuição dada ao delegado de polícia, “Em razão da titularidade exclusiva da ação penal pública ao Ministério Público, por imposição da CF (art. 129, I), há quem aponte a inconstitucionalidade desses trechos dos referidos dispositivos, ao passo que somente o MP poderia negociar e propor acordos que envolvam a persecução penal”. (VASCONCELOS, 2017, p. 91). Contudo, como já sedimentado pelo STF, neste particular é possível notar que não existe qualquer tipo de violação a este preceito constitucional, uma vez que é função institucional do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, o que não se confunde com a possibilidade jurídica de outra autoridade competente, autorizada por lei, firmar um instrumento de produção de prova atípico, como o caso da delação.

Ponto critico é o suposto uso de prisões como forma de obtenção de informação, artimanha que vem sendo muito utilizada e considerada válida pelos acordos de colaboração premiadas nos processos de investigações da Lava Jato para “obrigar” os delatores a confessar e a falar quem são os demais envolvidos nos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro. Como já foi dito anteriormente, qualquer meio que for utilizado com o objetivo de trazer mais celeridade às investigações que não se valer da livre manifestação de vontade do réu devem ser invalidadas por violar diretamente as garantias do investigado de não produzir provas contra si mesmo e do direito ao silêncio, conforme apontamentos feitos por Pereira; Simões (2016).

Ou seja, se caracteriza como violação a estes princípios, uma vez que, durante o andamento do processo, as autoridades estatais se utilizem de violências, seja moral ou física. Se ainda assim forem obtidas colhidas informações com o uso desses meios, deve essa prova ser considerada ilícita, e obrigatoriamente invalidada, já que a Constituição de 1988 determina em seu art. 5º, inciso LVI, que devem ser inadmitidas as provas que são obtidas de forma ilícita, onde, “Tal teoria encontra eco, principalmente, nos casos em que na obtenção da prova (ilícita) são violados direitos constitucionalmente assegurados.” (LOPES JR., 2014, p. 429)

Na lição de Rodas, Canotilho e Brandão concluíram que os compromissos “padecem de tantas e tão ostensivas ilegalidades e inconstitucionalidades que de forma alguma pode admitir-se o uso e a valoração de meios de prova através deles conseguidos”. Dessa forma, as provas obtidas por meio dos acordos de delação seriam ilícitas, apontaram os juristas. Portanto, inadmissíveis em processos, conforme determina o artigo 5º, LVI, da Constituição brasileira. (RODAS, 2017, p. 02). Desta forma, forçoso concluir que qualquer meio de prova que seja colhida sem a devida manifestação de vontade livre do acusado ou investigado faz com que a prova se torne ilícita, devendo ser declarada a nulidade do ato e todas as demais que derivarem dele, em razão de violação de preceito legal. Se considerada ilícita, deverá ser desentranhada dos autos e destruída por meio de incidente processual.

De acordo com Vasconcelos (2017, p. 137) afirma-se que: “[...] o seu consentimento ‘não pode ser fruto de coação, seja física ou psíquica, ou de promessa de vantagens ilegais não previstas no acordo’”. Por isto, não basta apenas a coação moral e física propriamente dita. Qualquer tipo de promessa de vantagem futura ao colaborador, se não estiver constando no acordo, no momento do seu depoimento deve ser considerado ilícita, uma vez que isso pode influenciar na sua liberdade e voluntariedade, de modo que ele deve saber quais são os benefícios, ou se for o caso, os malefícios que lhe serão concedidos com sua ajuda ao Estado desde que sejam eficientes, trazendo um resultado significativo para o processo criminal.

No que tange a concessão desses benefícios, é preciso se respeitar a legalidade, sendo esta considerada a guia de todo o processo, de modo que não se pode conceder a mais ou a menos, ou coisa diversa do que trazido em lei e firmado no acordo de colaboração premiada.

Fazendo uma breve analogia com o Direito Civil, no art. 104 desde código, determina em seus incisos (I a III), que para ter-se validade a determinado negócio jurídico, requer que o agente seja capaz; que o objeto seja lícito e possível; e, que seja por forma prescrita ou não defesa em lei.

É pressuposto de validade de acordo de colaboração premiada que o colaborador deva estar totalmente ciente, e que, acima de tudo o objeto do negócio jurídico firmado seja possível e determinado, devendo se observar a lei e a não proibição de tal medida, de modo que a autoridade estatal competente não pode prometer algo que não pode cumprir. Novamente com Rodas:

“É terminantemente proibida a promessa e/ou a concessão de vantagens desprovidas de expressa base legal”, ressaltaram os professores. Assim, eles declararam que não é possível reduzir uma pena em mais de dois terços ou conceder perdão judicial a um crime não mencionado pela Lei das Organizações Criminosas.

“Em tais casos, o juiz substituir-se-ia ao legislador numa tão gritante quanto constitucionalmente intolerável violação de princípios fundamentais do (e para o) Estado de Direito como são os da separação de poderes, da legalidade criminal, da reserva de lei e da igualdade na aplicação da lei”, avaliaram. (RODAS, 2017, p. 02).

No que diz respeito às provas, todas que vierem a ser obtidas, tanto no processo penal como em qualquer outro ramo do direito, deve ser colhida de forma voluntária ou por meio de investigações, de forma que a utilização da pessoa do investigado para chegar a este fim viola diretamente o princípio da não produção de provas contra si mesmo, sendo que esta garantia é um direito mínimo de todo e qualquer acusado. É a lição de Vasconcelos:

Certamente, ao conformar-se com a acusação e cooperar com a persecução penal, o imputado adota postura ativa incompatível com o exercício do seu direito ao silêncio, ou seja, “[é] lógico perceber que qualquer eventual contribuição probatória do imputado, para que se possa ser utilizável pela acusação, deve se dar por meio de uma renúncia ao direito de não autoincriminação, ocasionando a caracterização da colaboração como um substancial sacrifício de uma garantia fundamental”. (VASCONCELOS, 2017, p. 164).

Dando continuidade sobre este assunto, o referido autor traz o posicionamento de mais três doutrinadores:

[...]o imputado não se torna obrigado a se auto incriminar, pois pode deixar de colaborar, tendo como consequência somente o não recebimento dos benefícios propostos no acordo. Nas palavras de Bitencourt e Busato, “o réu simplesmente não está obrigado a fazer prova contra si em circunstância nenhuma, mesmo a pretexto de ‘colaborar’ com a Justiça”. Segundo Gilson Dipp, “mesmo tendo a parte admitido deixar de silenciar não poderia a lei exigir essa renúncia para condicionar a vantagem processual legítima.” (VASCONCELOS, 2017, p. 166).

Contudo, ainda que o acusado possa desistir do acordo, isso se afigura coativo, tendo em vista que ele tem direito de colaborar e ao mesmo tempo de não se autoincriminar, fazendo com que ele, ao aceitar o acordo de colaboração, obrigatoriamente tem que renunciar do seu direito ao silêncio, violando a sua garantia constitucional de não se autoincriminar e de não ser obrigado a produzir provas contra si mesmo, onde sabe-se que no Processo Penal, determinado pelo seu art. 186 do referido código, o acusado tem direito de permanecer em silêncio, e isso não pode ser usado contra ele.

Trata-se de um direito que deve ser assegurado sob qualquer situação, ainda que se encontre na condição de privação de liberdade, tendo como base constitucional o art. 5º, inciso LXIII:

O direito ao silêncio ganha espaço no Estado Democrático, promove a segurança da sociedade contra arbitrariedades ditatoriais e foi disposto no artigo 5º, inc. LXIII, da Constituição Federal. Atrelado a esse direito, está o princípio da presunção de inocência, o qual transfere ao agente estatal o ônus da prova para a condenação, bem como impõe que o acusado seja visto como inocente no decorrer do processo até o trânsito em julgado da sentença condenatória. (FILOMENO, 2017, p. 117).

No que diz respeito ao uso de prisão, seja ela temporária ou preventiva, como instrumento para necessária obtenção de informações deve ser considerado procedimento ilegal, uma vez que o sujeito se encontra numa situação, digamos que de vulnerabilidade, onde será mantido nessa situação até que se “abra a boca” e dê noções esclarecedoras do que vem aconteceu antes, durante, e até mesmo do desfecho da empreitada criminosa.

Determinada perspectiva sustenta que não se pode admitir a colaboração de pessoa em situação de restrição de liberdade, ao passo que se agrava exponencialmente a coação a ela imposta, impedindo, por completo, a tomada de uma decisão com voluntariedade. (VASCONCELOS, 2017, p. 138).

Sabe-se que a regra no direito brasileiro é que o acusado responda ao processo penal que corre contra si em total liberdade, de modo que a prisão preventiva e a temporária devem ser decretadas apenas nos casos em que a lei permitir, obedecendo ao seu caráter subsidiário e excepcional, sendo chamada também de Ultima Ratio.

Desta maneira, a prisão que for decretada com o objetivo, único e excluso, de colher o maior número de informações deve ser considerada ilegal, sendo prática vedada pela Lei de Tortura (Lei 9.455/1997), uma vez que a prisão se mostra totalmente fora dos requisitos estabelecidos pela lei, havendo vedação pela Lei 4.898/1965 (Lei de Abuso de Autoridade), em seu art. 4º, “a”, de forma que submete o acusado a um grande constrangimento, podendo até se equiparar ao uso de uma tortura “sofisticada”, que, de acordo com entendimento de Gilmar Mendes (Ministro do Supremo Tribunal Federal), afirmando ele que: “Uso da prisão preventiva para obter delação não encontra guarida no texto constitucional brasileiro. Pode até encontrar guarida no texto constitucional de Curitiba. Mas usar prisão provisória para obter delação é tortura”[...]. (CURY; MOURA; PUPO, 2018, p. 02).

Neste sentido, pertinente a seguinte reflexão:

Compreender a prisão provisória como medida cautelar é uma exigência inexorável da presunção de inocência, consagrada no art. 5º, LVIII, da Constituição Federal, a qual é reconhecida por Ferrajoli (2006, p. 505) como um “corolário lógico do fim racional consignado ao processo”, quer dizer “a primeira e fundamental garantia que o procedimento assegura ao cidadão: presunção júris”. Em síntese, o que convencionou chamar de “princípio fundamental de civilidade”. É por essa razão que “a presunção de inocência não é apenas uma garantia de liberdade e verdade, mas também uma garantia de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da específica “segurança” fornecida pelo Estado de direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica “defesa” destes contra o arbítrio punitivo” (Ferrajoli, 2006, p. 506). (CERQUEIRA; NEVES, 2018, p. 109).

Assim, pode-se concluir que o uso de prisões durante a persecução penal com o objetivo de colher informações mostra-se totalmente indevido, e pior ainda se esta se der no início da persecução penal, pois nem se sabe a qual ponto se chegará às investigações, ferindo o direito fundamental do Devido Processo Legal, protegido pelo art. 5º, inciso LIV da Constituição Federal, que determina que somente poderá haver a decretação de prisão depois do transcurso de todo o processo penal ou, quando o caso concreto atender os requisitos trazidos em lei para decretação da prisão provisória em qualquer de suas espécies.

Esses atos podem dar ensejo ao cumprimento de uma pena além do que será fixado pela sentença penal condenatória. Nestas hipóteses, faz nascer a obrigação do Estado em indenizar o acusado que tenha sido obrigado coercitivamente a cumprir tal medida, sendo que este direito determinado pelo art. 5º LXXV, da Constituição Federal de 1988, visa proteger, nada mais justo, o indivíduo de arbitrariedades e negligências por parte dos servidores públicos estatais, sendo esta uma responsabilidade objetiva do Estado, ou seja, não se analisa dolo ou culpa, apenas a conduta, o nexo de causalidade e o dano causado.

Nessa perspectiva, deve o Estado tomar medidas alternativas à prisão, tendo em vista que a mesma só pode ser decretada nos casos previstos em lei ou quando quaisquer outros meios não forem suficientes para um bom andamento do processo e segurança da aplicação da lei penal. Assim, tem-se como uma solução nestes casos, por exemplo, a adoção de medidas cautelares diversas das prisões, que estão previstas na Lei 12.403/2011.

Sendo assim, as medidas cautelares, reguladas em 2011 e, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal, devem ser aplicadas sempre que possível, como regra, de modo que as prisões, de caráter excepcional e incompatível com a livre vontade, da essência do instrumento colaboração premiada, só podem ser utilizadas quando as medidas cautelares diversas à elas não forem o bastante ou adequadas no caso concreto e, enquanto persistir, afigura-se como verdadeira cláusula constitucional impeditiva do firmamento de delação, consoante a garantia ao devido processo legal substantivo, visto ser inadequado ao pressuposto, repita-se, o livre consentimento de uma das partes interessadas.

Neste diapasão, o juiz, que homologa o acordo, assume papel basilar:

O juiz passa a assumir uma relevante função de garantidor, não devendo julgar conforme deseja a maioria e, não podendo, fica inerte diante de violações ou ameaças de lesão aos direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados ou que brotem dos tratados e convenções firmados pelo Brasil. Assume, assim, uma nova posição no Estado Democrático de Direito, sem que com isso sua atuação seja política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à opinião da maioria. Deve tutelar o indivíduo e reparar as injustiças cometidas, absolvendo sempre que não existirem provas plenas e legais de sua responsabilidade penal. (LOPES JR, 2014, p. 110).

Feitas estas observações, pode-se notar que o instituto da colaboração premiada, que tem com objetivo de apoiar o Estado no combate às criminalidades organizadas, aos crimes de colarinho branco, que são aqueles cometidos por pessoas que ocupam os altos escalões de uma sociedade, é, em regra, instrumento fundado na Constituição, desde que respeitadas as garantias constitucionais e legais dos acusados, medida de tutela dos próprios delatores e também de delatados, bem como do interesse própria coletividade, evitando-se, inclusive, as famigeradas colaborações premiadíssimas, que muitas vezes não se traduzem em resultados ótimos, a não ser para réus confessos, que falam sem provas, assassinam reputações e comprometem a higidez e credibilidade do sistema de justiça.

Com a evolução da sociedade, das relações e das tecnologias, surgem crimes altamente complexos e organizados. De rigor, isto é, necessário e adequado o uso do instrumento da Colaboração Premiada, disciplinada atualmente pela Lei 12.850/2013 (Lei de Organização Criminosa), diante da impropriedade e ineficácia de outras formas lícitas de obtenção de provas, no auxílio à imprescindível e eficaz persecução penal Estado.

Sobreleva-se, neste ponto, a sua natureza é de negócio jurídico processual, que não visa prender ou soltar alguém, não é desiderato de impunidade, muito menos habeas corpus ou relaxamento, por via reflexa, mas meio atípico de informações preliminares a formar arcabouço de prova, com o fito trazer informações para o processo em investigação ou instrução de processo penal.

Restou demonstrado e já de todo reconhecida a constitucionalidade da sua aplicação. Contudo, há que se atentar às possíveis violações de garantias asseguradas na Constituição, como a Ampla Defesa, Contraditório, Devido Processo Legal, Direito ao Silêncio, não produção de provas contra si mesmo, Não Autoincriminação, Direito de Ação e Acesso à Justiça.

As prisões cautelares, em qualquer de suas espécies, preventiva ou temporária, são medidas excepcionais que devem obedecer aos requisitos trazidos em lei, de modo a atender a legalidade, e podem influenciar o exercício da livre vontade na relação jurídica colaborativa premiada penal, razão pela qual há de ocorrer rigoroso controle judicial, antes, durante e depois do firmamento dos atos, a fim de não homologar ou revisar instrumentos cuja vontade do réu esteja viciada pela condição de preso ao qual se encontrava durante a sua celebração, pelo que, tal qual a prisão cautelar, o firmamento delação nesta condição deve ser medida excepcional, desde que seja necessário, adequado e proporcional, devidamente motivado, visando à garantia da aplicação da lei penal e de um bom processamento de investigações criminais.

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Sobre os autores
Georges Louis Hage Humbert

Advogado e professor. Pós-doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em direito do Estado pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de São Paulo. www.humbert.com.br

Victorine Gleice Souza Pinheiro

Advogada e Bacharel em direito pela UNIJORGE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Trabalho de conclusão de curso e projeto de pesquisa na UNIJORGE.

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