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A suposta coisa julgada inconstitucional

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27/10/2006 às 00:00
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Antes de adentrar no cerne do tema objeto do presente trabalho, faz-se mister analisar, ainda que de maneira simplificada, o fenômeno da coisa julgada - instituto de inegável relevância à função jurisdicional exercida pelo Estado, em especial pelo Poder Judiciário. Assim, fazer um breve apanhado acerca do papel desempenhado por ela no mundo jurídico é objeto do presente capítulo.

O instituto da coisa julgada encontra-se intimamente ligado à jurisdição, isto porque ao trazer para si a quase totalidade da função jurisdicional, o ente estatal deve assegurar que as lides pacificadas por meio das decisões proferidas pelo judiciário sejam dotadas de poder de submissão e imutabilidade, i. é., que tenham poder de se fazerem obedecer em todo o território nacional, de maneira a estabilizar definitivamente a res in iudicium deducta [1].

Com efeito, uma vez proferida a sentença, está ela sujeita à interposição de recursos. Nosso ordenamento jurídico possui uma vasta gama de recursos, no entanto, apesar de serem muitos, não são ilimitados. Sendo assim, em determinado momento, a sentença proferida torna-se irrecorrível, seja porque transcorrido o prazo recursal, seja porque esgotados todos os meios processuais cabíveis, diz-se, então, que ocorreu o trânsito em julgado da decisão.

Enquanto a sentença for suscetível de reexame, ela é considerada tão somente uma situação jurídica e ainda não foi atingida a finalidade do processo que é a prestação de uma solução ao conflito sob sua tutela. Apenas a impossibilidade de reforma ou reexame ou, ainda, de uma nova formulação que o ato do magistrado passa a ser reconhecido como emanação da vontade da lei [2]. Em outros termos, é no momento em que a decisão judicial se torna irrecorrível que ocorre seu trânsito em julgado, surgindo, então, a coisa julgada.

Várias teorias foram formuladas na tentativa de definir o instituto em exame, o que gera, até os dias atuais, grandes discussões entre os doutrinadores. Dentre essas teorias destacam-se a teoria da presunção da verdade, a qual defendia que, por ser o alcance da verdade no processo algo inatingível, a coisa julgada seria o que mais se aproxima da verdade. Já a teoria da ficção da verdade, desenvolvida por Savigny, leva em consideração o conflito entre segurança jurídica e certeza. Segundo esta teoria, a insegurança é mais maléfica à sociedade do que a incerteza, o que justifica a coisa julgada atribuir força legal a uma determinada situação que poderia ser justa ou injusta e até mesmo sem equidade [3].

Há também a teoria de Carnelutti, na qual há uma inversão dos momentos do fenômeno da coisa julgada, isto é, na certeza que a sentença produz encontra-se sua imperatividade e é esta imperatividade que faz surgir a coisa julgada material que existiria antes mesmo do trânsito em julgado, enquanto que a imutabilidade viria apenas com a preclusão dos recursos o que corresponderia à coisa julgada formal. Sendo assim, a coisa julgada material seria anterior à formal, já que a sentença produziria efeitos desde o momento de sua prolação [4].

Tem-se ainda a teoria de Liebman, de acordo com a qual a coisa julgada seria uma qualidade especial da sentença, que viria a reforçar sua eficácia natural, e consistiria na imutabilidade da sentença como ato processual - coisa julgada formal - bem como na imutabilidade de seus efeitos - coisa julgada material [5].

Válido mencionar a definição sobre o instituto em análise dada por Alexandre Câmara que afirma ser a coisa julgada a imutabilidade da sentença (coisa julgada formal), bem como a imutabilidade de seu conteúdo (coisa julgada material), quando não mais cabível qualquer recurso [6]. Isto porque a coisa julgada formal teria um alcance limitado ao processo – endoprocessual – em que foi proferida a sentença, impedindo que seja aberta nova discussão naquele mesmo feito quando já esgotada a possibilidade recursal. E, a coisa julgada material teria um alcance mais amplo, extrapolando o processo em que foi prolatada a decisão, tornando o conteúdo da sentença [7] imutável e indiscutível em qualquer outro processo.

Outro ponto importante é o que concerne à natureza do referido instituto, tema que levanta grandes debates entre os doutrinadores, uma vez que várias são as correntes que se propõem a examinar o assunto. Dentre as diversas posições teóricas, merecem destaque a que entende ser a coisa julgada um dos efeitos da sentença, e a que defende ser a coisa julgada uma qualidade da sentença.

Dentre aqueles que entendem ser a coisa julgada um dos efeitos da sentença, encontra-se Moacyr Amaral Santos, o qual afirma que "em consequência da coisa julgada formal, pela qual a sentença não poderá ser reexaminada e, pois, modificada ou reformada no mesmo processo em que foi proferida, tornam-se imutáveis os seus efeitos (declaratório, ou condenatório, ou constitutivo). O comando emergente da sentença, como ato imperativo do Estado, torna-se definitivo, inatacável, imutável, não podendo ser desconhecido fora do processo [8]."

Uma das críticas tecidas a essa corrente diz respeito ao fato de que, na verdade, os efeitos da sentença são mutáveis, podendo ser alterados a qualquer momento, bem como não se perpetuam no tempo [9]. Tomemos como exemplo uma sentença que condene A ao adimplemento de determinada obrigação para com B. O efeito condenatório da referida decisão desapareceria tão logo fosse cumprida a obrigação, não se podendo dizer que tal efeito se perpetuará no tempo.

De acordo com a doutrina mais atual, a coisa julgada consiste em uma qualidade que a sentença adquire em determinado momento processual. Humberto Theodoro Júnior é bastante claro em seu posicionamento acerca do assunto, afirmando que: "apresenta-se a res judicata, assim, como qualidade da sentença, assumida em determinado momento processual. Não é efeito da sentença, mas a qualidade dela representada pela "imutabilidade" do julgado [10]."

Logo, o que torna imutável não são os efeitos da sentença, que podem até mesmo desaparecer, mas sim o seu conteúdo que é aquilo que expressa a norma que deve ser aplicada em determinado momento e em determinada situação. Em outras palavras, quando da formação da coisa julgada, é o conteúdo da sentença – a norma reguladora do caso concreto – que se tornará indiscutível e imutável [11].

Por tudo o que foi acima exposto, adota-se no presente trabalho a segunda corrente doutrinária, por parecer a mais coerente e acertada.


Coisa Julgada Formal e Coisa Julgada Material

Conforme já foi outrora mencionado, o trânsito em julgado da sentença ocorre a partir do momento em que contra ela já não caiba mais qualquer recurso. Logo, independentemente de terminativa ou definitiva, a decisão torna-se imutável e indiscutível. Esta é a denominada coisa julgada formal.

A coisa julgada formal, contudo, atua tão-somente dentro do processo em que foi proferida, ou seja, apenas põe termo ao feito, impossibilitando que se discuta novamente sobre o objeto no mesmo processo, não sendo, por si só, capaz de impedir que se reabra a mesma discussão em outro processo.

Sendo assim, imutável a decisão dentro do processo, esgota-se a função jurisdicional e o Estado, pelo órgão judiciário, pode dar por cumprida a sua obrigação jurisidicional [12].

Observe-se, no entanto, que se a sentença apreciou e resolveu o mérito da causa – sentença definitiva - , ela deverá também alcançar a coisa julgada material. Esta se projeta para fora do processo em que foi proferida, impedindo que a relação de direito material decidida entre as mesmas partes seja reexaminada no mesmo processo ou em qualquer outro, pelo mesmo ou outro juiz ou tribunal [13].

Portanto, de acordo com a inteligência do art. 468 do CPC, o qual dispõe que a sentença tem força de lei entre as partes, a formação da coisa julgada material – por representar a apreciação e julgamento definitivo do feito – tem força obrigatória, devendo por todos ser respeitada [14]. Essa proteção conferida à autoridade da coisa julgada encontra sua justificativa na paz social, de maneira a se evitar que perturbações irremediáveis venham ameaçar a segurança e estabilização dos conflitos [15].

O instituto da coisa julgada pertence ao direito público, motivo pelo qual a Carta Magna, em seu art. 5º, inciso XXXVI, buscou assegurá-la, dando-lhe status de cláusula pétrea, conforme inteligência do art. 60, § 4º, IV [16]. Resta clara a intenção do legislador de garantir o fim das controvérsias por meio do instituto em análise.

Pode ocorrer, entretanto, que se instaure novo processo, cujo objeto já tenha sido examinado por sentença definitiva que tenha alcançado a autoridade de coisa julgada material. Neste caso, existem mecanismos para protegê-la, evitando que se rediscuta aquilo que já é imutável.

Caberá ao réu argüi-la nas preliminares da contestação (art. 301, VI e 267, VI do CPC), enfatizando-se que, mesmo na falta da sua provocação, pode ser apreciada de ofício pelo juiz (arts. 301, § 4º e 267, § 3º do CPC) e, em face de seu caráter iminentemente público, essa objeção de coisa julgada pode ser oposta em qualquer tempo ou grau de jurisdição ordinária. Uma vez acolhida referida objeção, o novo feito deverá ser extinto, sem o exame do mérito [17].

Além desse mecanismo, a legislação prevê também como forma de proteção da coisa julgada material a possibilidade de propor Ação Rescisória, no prazo de dois anos, para invalidar decisão ofensiva à coisa julgada anterior relativa à mesma lide (art. 485, IV do CPC) [18], independente de ter sido a matéria apreciada ou repelida pela sentença rescindenda, bastando tão somente que o ato que se busca rescindir apresente-se comprometido, não influindo os fundamentos desta na ação Rescisória [19].


Limites Objetivos da Coisa Julgada

Ponto que merece ser analisado é o que concerne aos limites objetivos da coisa julgada, ou seja, verificar qual o alcance da imutabilidade da sentença que transitou em julgado e qual parte da mesma faz coisa julgada. Durante muito tempo essa questão suscitou controvérsias doutrinárias, hodiernamente, contudo, a matéria já se encontra pacificada.

A sentença é composta por três partes, quais sejam, o relatório, a motivação e a decisão ou dispositivo. É óbvio que a res iudicata não engloba a sentença como um todo, sendo necessário examinar quais dessas três partes é abrangida pela coisa julgada.

Para melhor compreensão do assunto, imprescindível analisar o art. 468 do CPC, segundo o qual "a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas." Infere-se desta redação que a sentença deve cingir-se à lide, devendo-se entender por lide o objeto do processo, isto é, o mérito da causa [20].

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Observa-se que o objeto do processo nada mais é do que o pedido do autor e é sobre este que deverá o juiz se pronunciar, sendo-lhe vedado ir além ou fora do mesmo [21]. E, os limites da própria definição encontram-se intimamente ligados à causa petendi, a qual é o fato constitutivo que fundamenta a pretensão do autor. Para melhor esclarecer, válido citar o exemplo seguinte:

"se o herdeiro legítimo também contemplado em testamento reivindica a herança apenas invocando a disposição testamentária (uma questão) e perde a demanda, não estará inibido pela res iudicata de propor outra ação baseada na vocação hereditária legítima (outra questão ainda não decidida) [22]".

Com efeito, o art. 468 do CPC conduz à idéia de que apenas o pronunciamento do juiz sobre o pedido é que será alcançado pela autoridade da coisa julgada, devendo-se respeitar os limites da lide, os quais são dados pelo pedido e pela própria causa de pedir.

Além do dispositivo supramencionado, mister examinar os arts. 469 e 470 do CPC, os quais complementam o entendimento de que apenas o dispositivo da sentença transita em julgado [23].

Evidentemente que não se cogita do relatório da sentença, uma vez que nele não há qualquer elemento decisório, mas tão somente a exposição da causa [24].

No que concerne à motivação da sentença, o código vigente é bastante claro, dispondo expressamente que ela não faz coisa julgada. Isto porque os motivos, ainda que relevantes para determinar, de forma mais exata, o alcance do dispositivo, limitam-se apenas a auxiliar a elaboração do julgado.

Assim, os motivos ajudam ao esclarecimento do decisum, influenciam na sua interpretação, mas não são abrangidos pela coisa julgada, já que a imutabilidade se refere à resposta dada ao pedido do autor, e não ao porquê dessa resposta [25].

Também não é alcançada pela autoridade da res iudicata a verdade dos fatos. Nada obsta que um fato tido como verdadeiro em um processo venha a ser considerado como não verdadeiro em outro feito, sem que isso venha a afetar a coisa julgada estabelecida na primeira relação processual [26].

Ressalte-se que a apreciação das questões prejudiciais também não faz coisa julgada. Por questões prejudiciais pode-se entender aquelas que, além de constituírem premissas lógicas da sentença, reúnam condições suficientes para serem objeto de ação autônoma [27].

A apreciação de tais questões – quando feita incidentemente no processo – se dá como preparação lógica da sentença, motivo pelo qual tem natureza jurídica de motivação, e não de parte dispositiva, o que por si só justifica o fato de não transitar em julgado.

Outra razão que explica o motivo de não serem abrangidas pela coisa julgada é que, ao apreciar a questão prejudicial, o juiz exerce apenas a cognitio, ou seja, ele conhece da prejudicial e a resolve. Todavia, tal decisão tem eficácia e vincula as partes somente ao processo em que foi proferida, não impedindo que a mesma questão seja debatida fora desse processo [28].

Importante mencionar que a decisão sobre questão prejudicial fará coisa julgada quando a parte interessada requerer sua apreciação por meio de ação declaratória incidental (art. 325 do CPC), porque assim, a lide será ampliada para englobá-la. No entanto, a ação declaratória incidental deverá observar os seguintes requisitos: a questão deve constituir pressuposto necessário para o julgamento da lide principal e o juiz deve ser competente em razão da matéria para decidi-la [29].

Insta analisar ainda o art 474 do CPC, o qual também dispõe acerca do assunto. De acordo com referido dispositivo legal, a coisa julgada alcança o deduzido e o deduzível. Em outros termos, uma vez transitada em julgado a sentença, todas aquelas alegações que poderiam ter sido feitas e que não o foram, tornam-se irrelevantes (trata-se da eficácia preclusiva da coisa julgada) e não se poderá mais discutir o que foi decidido, perdendo as partes a faculdade de suscitá-las posteriormente [30].

A importância desse artigo se justifica pela própria finalidade do instituto da coisa julgada, que já foi anteriormente analisada, que exige que não se permita a constante alegação de questões que deixaram de ser suscitadas pelas partes, de maneira a ameaçar a imutabilidade da res iudicata.


Limites Subjetivos da Coisa Julgada

Uma vez transitada em julgado a sentença, deve-se identificar quais as pessoas alcançadas pela coisa julgada – se apenas as partes da relação processual ou também terceiros que não atuaram na lide.

A primeira parte do art. 472 do CPC regula a matéria da seguinte forma: "A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros" Trata-se de princípio consagrado desde o Direito Romanores inter alios iudicata, alis non praeiudicare – que tem como fundamento o próprio bom senso e sentimento de justiça: se a sentença traduz a norma a ser aplicada ao caso concreto, e por isso adquire força de lei entre as partes, o mesmo não se verifica em relação a terceiros estranhos ao processo em que a mesma foi prolatada [31].

Note-se que, afirmar que o alcance da coisa julgada é limitado às partes não significa dizer que ela deva ser ignorada por estranhos à relação processual. A sentença, como ato jurídico que é, possui uma eficácia natural que vale para todos, apenas a autoridade da coisa julgada – sua imutabilidade e indiscutibilidade – é que atinge somente as partes, não podendo prejudicar ou beneficiar terceiros [32]. Sendo assim, estes poderão discutir em juízo questão que já foi apreciada em sentença coberta pela autoridade da coisa julgada.

Diante disso, Liebman enumera três categorias de terceiros [33], a fim de identificar quais poderão insurgir-se contra a coisa julgada, interessando a terceira categoria que compreende os terceiros juridicamente interessados. Referida categoria subdivide-se em dois grupos: os que têm interesse igual ao das partes e, portanto, podem rebelar-se contra a coisa julgada; e os terceiros cujo interesse jurídico é de categoria inferior ao das partes, por não ser titular de relações jurídicas dependentes da relação jurídica julgada no processo e, por isso, podem atacar a coisa julgada – mas não com a mesma liberdade daqueles que possuem interesse igual ao das partes - , alegando apenas a injustiça ou ilegalidade da sentença que formou coisa julgada [34].

A impugnação da res iudicata pelos terceiros pode ser feita na forma de defesa ou réplica à objeção de coisa julgada quando da utilização da sentença por uma das partes contra eles ou por meio de embargos de terceiros quando se tratar de execução de sentença condenatória que atinja bens de estranhos [35].

Insta mencionar a questão referente à coisa julgada nas ações de estado. A segunda parte do art. 472 do CPC dispõe que "Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros."

À primeira vista, tem-se a impressão de que a coisa julgada nas questões de estado teria eficácia erga omnes, o que não é verdade. Feita breve análise do dispositivo suso mencionado, observa-se que ele determina a citação de todos os interessados, os quais, uma vez citados, tornam-se partes no processo, sendo então atingidos pela coisa julgada. Se um dos interessados deixar de ser citado, a sentença será ineficaz tanto em relação aos que participaram do feito quanto para os que dele não participaram [36].

Com efeito, como todos os que são interessados no processo dele participam, apenas os que não têm interesse jurídico na causa ficam de fora e, por isso, não podem se insurgir contra a coisa julgada [37].


A Coisa Julgada é Fenômeno Intangível?

"O caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. Ela é, por isso, expressão dos valores de segurança e certeza que são imanenetes a qualquer ordem jurídica [38]."

É bastante comum se ouvir falar das noções acima transcritas e muitas vezes, até mesmo, repeti-las. Não se pode olvidar da importância e respeito que merece o instituto da coisa julgada. Entretanto, constata-se que a doutrina pátria vem atribuindo uma relevância exacerbada ao referido instituto, conferindo-lhe contorno que se afasta da real intenção do legislador, acabando por transformá-la em verdadeiro dogma.

No ordenamento jurídico vigente, a coisa julgada possui proteção constitucional e infraconstitucional.

A Constituição, em seu art. 5º, inciso XXXVI, dispõe que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada." A leitura do referido dispositivo demonstra que a Carta Magna não confere à coisa julgada o alcance que lhe foi dado no decorrer do tempo. A preocupação do legislador constituinte foi a de proteger a coisa julgada de lei nova que trouxesse em seu texto regra diversa da que foi aplicada à relação jurídica objeto da decisão judicial que transitou em julgado. Trata-se, na verdade, do princípio da irretroatividade da lei nova [39].

Como se observa, o dispositivo constitucional supramencionado, dirige-se ao legislador ordinário, de maneira a inadmitir que lei nova possa influir na solução dada à lide por sentença de que já não mais caiba recurso. Compartilham desse entendimento ilustres juristas, sendo bastante oportunas as palavras de Paulo Roberto de Oliveira Lima:

"Repetindo os textos anteriores, a atual Carta Magna, em seu art. 5º, inciso XXXVI, estabelece: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. A inserção da regra dentro do art. 5º da Constituição, atinente aos direitos e garantias individuais, de certa forma explica a desmedida extensão que alguns refletida ou irrefletidamente teimam em emprestar ao instituto."

Consoante se observa da leitura do dispositivo, a regra nele insculpida se dirige ao legislador ordinário. Trata-se, pois, de sobre-direito, na medida em que disciplina a própria edição de outras regras jurídicas pelo legislador, ou seja, ao legislar é interdito ao Poder Legiferante "prejudicar" a coisa julgada. É esta a única regra sobre coisa julgada que adquiriu foro constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação ordinária [40]."

Com efeito, a proteção constitucional dada ao instituto da coisa julgada é bem menor do que se supõe, não sendo mais do que uma das facetas do princípio da irretroatividade da lei, o que leva a crer que "se levou longe demais a noção de coisa julgada [41]", transformando-a em verdadeiro dogma.

As demais regras que tratam da coisa julgada encontram-se insertas na legislação infraconstitucional, tendo sido esta quem conceituou e conferiu imutabilidade e indiscutibilidade ao instituto em análise, conforme se verifica no art. 467 do CPC : "Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário."

Válido ressaltar que, mesmo em foro infraconstitucional, o relativismo da coisa julgada é verificado, posto que a própria lei processual preconiza instrumentos para desfazer a coisa julgada e realizar a verdadeira segurança jurídica.

Sendo assim, se a Constituição tivesse o intuito de tornar imutável a coisa julgada em toda sua extensão - e não somente em relação à lei nova - ela mesma teria disciplinado as hipóteses de cabimento de Ação Rescisória, matéria que é regulada pelo Código de Processo Civil. O que se observa é que, na verdade, nem para a Carta Magna nem para a lei processual comum a coisa julgada é absoluta e imutável (já que pode ser "mutável" quando é rescindida) [42].

Em que pese a relevância da coisa julgada - tema que já foi objeto de análise do presente estudo -, a existência da Ação Rescisória aliada aos demais argumentos expostos, só vem ratificar a tangibilidade de tal instituto.

O que ocorre é que o princípio em exame passou a receber tratamento e proteção exagerados, o que ocasionou na sua transformação em um dogma, em um instituto revestido de santidade, ainda que desconforme com preceitos constitucionais [43].

É inegável a importância da coisa julgada, porém esta é vulnerável à própria atividade do Poder Judiciário e não guarda o caráter de intangibilidade que muitos lhe conferem. É tangível por meio de Ação Rescisória nos casos elencados no art. 485 do CPC e também deve ser quando estiver em confronto com norma ou princípio constitucional.

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Sobre a autora
Brenda Corrêa Lima

advogada em Belém (PA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Brenda Corrêa. A suposta coisa julgada inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1213, 27 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9092. Acesso em: 22 nov. 2024.

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