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A suposta coisa julgada inconstitucional

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27/10/2006 às 00:00
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Coisa Julgada - Necessidade de uma Nova Visão Sobre a Relativização do Dogma da Coisa Julgada.

Raros são os trabalhos acerca de atos jurisdicionais eivados de inconstitucionalidade, principalmente no que diz respeito à relativização do dogma da coisa julgada. Deve-se isso ao fato de que muitos processualistas, especialmente os mais conservadores, acreditam que uma postura mais flexível em relação ao instituto estudado constituiria verdadeira ameaça ao fim para qual ele foi criado – assegurar a estabilidade das relações jurídicas.

Trata-se de questão bastante delicada, que vem gerando grande polêmica entre os doutrinadores, motivo pelo qual se busca um ponto de equilíbrio entre os posicionamentos conflitantes, a fim de se chegar a uma maneira menos traumática de relativizar a coisa julgada que se encontre em desconformidade com a Constituição.

Válido mencionar a tese defendida por Leonardo Greco, que considera inadmissível a relativização do dogma da coisa julgada, por ser tal instituto garantia fundamental e instrumento indispensável à eficácia concreta do direito e à segurança, afirmando, ainda, que esta só não é absoluta porque se sobrepõe a ela a vida e a liberdade, apenas [44].

Também levanta questões contrárias ao assunto Sérgio Bermudes, afirmando que "não se sabe até onde a entronização da tese da vulnerabilidade da coisa julgada inconstitucional abalará e afrontará o instituto da coisa julgada. Não se pode dizer até que ponto grassarão as ações de nulidade lotéricas ou cavilosas, num país onde ainda rareia a aplicação de sanções às demandas temerárias" [45].

Nelson Nery Júnior, por sua vez, sustenta que, por ser o instituto da coisa julgada material elemento de existência do estado democrático de direito, esta tem força criadora, tornando imutável e indiscutível a matéria por ela acobertada, independentemente da constitucionalidade da sentença. Acrescenta, ainda, que o termo "relativização" nada mais é do que um eufemismo para a total desconsideração da coisa julgada, o que faria desaparecer a democracia, acarretando na instalação da ditadura [46].

Assim, segundo o jurista acima mencionado, a má utilização do instituto poderia servir de instrumento de totalitarismo, bem como, de abuso de poder pelos governantes, em detrimento do estado democrático de direito, motivo pelo qual entende que o risco político de haver sentença inconstitucional no caso concreto é menos grave do que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a desconsideração da coisa julgada [47].

De início, ressalta-se que não se objetiva propor uma imprudente inversão, de maneira que a garantia da coisa julgada passasse a vigorar em alguns poucos casos e sua relativização se tornasse regra geral. Busca-se tão somente um tratamento excepcional a ser aplicado em situações extraordinárias, a fim de se eliminar anomalias jurídicas, como é o caso da suposta coisa julgada inconstitucional [48]. Não se pretende, de modo algum, banalizar tal instituto, uma vez que de indubitável relevância no ordenamento jurídico.

Ademais, importante enfatizar que no presente estudo admite-se como hipótese de relativização apenas os casos em que há infringência a algum preceito constitucional, isto porque se considera a inconstitucionalidade como o mais grave vício de que pode padecer um ato jurídico, não se podendo admitir a idéia de que o trânsito em julgado de uma sentença que contraria a Constituição seja capaz de sanar referido vício que é, a toda evidência, insanável [49].

Para tanto, mister afastar a aplicação puramente codicista da ciência jurídica, abandonando a idéia do dogma da coisa julgada, segundo o qual seria este instituto capaz de transformar o preto em branco (res judicata facit de albo nigrum) [50]. Este posicionamento só vem majorar a inconformidade dos jurisdicionados ao se depararem com decisões dissonantes da Constituição.

Com efeito, tal concepção ainda é defendida por alguns processualistas, porém, como já foi outrora mencionado, vem sendo também questionada, pois se reconheceu que, por ser a prestação jurisdicional obra humana, "aleijões, tumores e vícios jurídicos são produzidos, o que deve ser visto pelos operadores do direito com certa naturalidade" [51]. Diante disso, decisões judiciais que afrontem a Carta Magna não merecem encontrar amparo em nosso ordenamento jurídico.

Como é cediço, o Estado é uno e o poder estatal é exercido por três órgãos: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário (art. 2º da Constituição da República Federativa do Brasil/CRFB), os quais são independentes e harmônicos entre si, de maneira que os poderes dados a cada um são delicadamente controlados pelos outros dois – é o que os doutrinadores denominam de sistema de freios e contrapesos [52].

Nesse sistema, compete ao Judiciário, entre outros objetivos, garantir a prática da justiça. Para isso, deve seguir um padrão constitucional e legal quando do exercício da jurisdição, ou seja, o Estado-juiz está vinculado à Carta Magna no momento de proferir suas decisões [53]. Portanto, ao se deparar com uma decisão que traz consigo dissonância com a interpretação constitucional, principalmente após ter a mesma aparentemente transitado em julgado, surge situação bastante delicada no mundo jurídico, sendo inegável a perplexidade dos jurisdicionados diante de tal circunstância.

Diante disso, questiona-se "de que adianta canonizar o instituto da coisa julgada se a paz social se encontra fragilizada, a cada vez que os efeitos do julgado se renovam, principalmente se a imodificabilidade da decisão interessa apenas ao autor da ação, em detrimento de toda a sociedade, se é exatamente esta quem financia o custeio daquele entendimento tido como inquebrantável?". [54]

Dessa forma, uma decisão que viole diretamente regras, princípios e garantias consagrados na Carta Magna, não pode ser considerada válida [55]. Além disso, não se pode conceber que inconstitucionalidades sejam cometidas e ratificadas em virtude de uma postura radical e extremamente positivista.

Resta cristalina, então, a necessidade de uma nova visão acerca da relativização do dogma da coisa julgada, a fim de que se possa alcançar uma justa estabilidade das relações jurídicas. Mister reforçar que não se pretende, em momento algum, a banalização ou mesmo a extinção do instituto da coisa julgada, ao contrário, sua importância é reconhecida e inegável, o que se busca é extirpar do ordenamento jurídico situações anômalas – como é a decisão judicial que agride a Constituição – e, para tanto, necessário desvencilhar-se da idéia de que a coisa julgada pode petrificar aberrações constitucionais, ou se utilizar desse instituto como meio de afronta à Constituição. Na verdade, admitir a relativização do dogma da coisa julgada é fortalecer referido instituto, uma vez que não se admitirá que as decisões que violem a Carta Magna alcancem a fortaleza inerente à coisa julgada.


Coisa Julgada -

Sentença Inexistente.

Questão de grande importância e que suscita infindáveis debates entre os processualistas, diz respeito à natureza jurídica da decisão que afronta os preceitos constitucionais: seria ela sentença nula ou sentença inexistente?

As discussões acerca do assunto estão, aparentemente, distantes de alcançar pacificação, uma vez que, por se tratar de tema que passou a ser analisado recentemente, as correntes doutrinárias raramente apresentam algum ponto em comum. Em virtude disso, mister fazer breve exame acerca dos posicionamentos mais difundidos.

Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria entendem que a decisão judicial desconforme à Constituição é ato nulo. Isso porque estão presentes todos os elementos materiais de existência do ato, sendo sua impotência de alcançar efeitos jurídicos decorrente de sua contraposição entre o conteúdo da decisão e a Carta Magna, e não da ausência de requisitos formais e processuais. Em outros termos, para que um ato seja considerado inexistente, no campo do direito, faz-se necessária a falta de elemento material indispensável para sua ocorrência. A simples ilegalidade não é capaz de, por si só, torna-lo inexistente. A contrariedade à lei, qualquer que seja sua categoria, conduz à invalidade (nulidade ou anulabilidade) e jamais à inexistência, que é fato anterior ao jurídico (plano do ser) [56].

Pactua também do entendimento acima exposto, pelos mesmos fundamentos, Leonardo de Faria Beraldo, sustentando que a sentença que infringe a Constituição Federal ou, até mesmo, seus princípios implícitos, é, segundo grande majoritária da doutrina, nula. Isto se justifica em razão de que a sentença existe, já que reúne requisitos mínimos que a identificam como tal [57].

De acordo com os juristas suso mencionados, a coisa julgada inconstitucional é nula e, por isso, não se sujeitaria a prazos prescricionais ou decadenciais, acrescentando, ainda, que o que ocorre é, na verdade, uma aparência de coisa julgada, uma vez que as normas inconstitucionais nunca se consolidam na ordem jurídica. Sendo assim, a parte não precisa valer-se da ação rescisória para se subtrair de seus efeitos.

Já Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina sustentam que a sentença nula fica "protegida" pela coisa julgada, podendo ser desconstituída por meio de ação rescisória, sujeita ao prazo decadencial do art. 495 do CPC [58]. A possibilidade de se retirar a sentença a qualquer tempo, porque imprescritível, do mundo jurídico se verifica nos casos em que não se forma a coisa julgada – sentença inexistente [59].

Pontes de Miranda, por sua vez, dispensa tratamento igual à sentença nula e à sentença inexistente, como se equivalentes fossem, afirmando que em ambos os casos não há formação da coisa julgada, sendo que a primeira existe e pode produzir algum efeito enquanto não for declarada como tal, ao contrário do que acontece com a segunda, que, como não existe não produz qualquer efeito [60].

Na verdade, observa-se certa imprecisão quando da distinção entre a nulidade absoluta e a inexistência, o que leva a confundir os efeitos de ambas. Na tentativa de elucidar a questão, passa-se a fazer as seguintes considerações, já que sem a exata diferenciação entre inexistência e nulidade será inviável chegar a um posicionamento lógico [61].

A sentença nula seria aquela que se mostra gravemente afetada por defeito localizado em seus requisitos essenciais, caracterizando o chamado vício essencial, e que deve ser invalidado. Pode-se dizer também que a nulidade absoluta decorre da violação de norma cogente, cujo fim é tutelar interesse público, motivo pelo qual compete ao juiz, ex officio, independente de argüição da parte, pronunciar referido vício [62].

Enquanto a invalidação – que, conforme foi mencionado, deve ser feita por resolução do órgão judiciário, quer por iniciativa da parte, quer pelo juiz ex officio – não for feita, o ato nulo permanecerá gerando efeitos próprios até seu desfazimento, ou seja, vigorará até que o juiz reconheça o vício, o que pode ocorrer em qualquer instância [63].

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Ademais, ponto que se deve atentar é o que diz respeito ao fato de as nulidades dos atos processuais poderem suprir-se ou sanar-se no decorrer do processo e, ainda que não supridas ou sanadas, geralmente não mais podem ser argüidas após o trânsito em julgado da sentença, funcionando, assim, a coisa julgada como sanatória dos vícios do processo. É o que se infere dos ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior, é as nulidades processuais possui uma característica especial, qual seja, a sanação de todas elas pela preclusão máxima operada através da coisa julgada. Importante observar que até mesmo as nulidades absolutas não conseguem ultrapassar a barreira da res iudicata, a qual purga o processo de todo e qualquer vício formal eventualmente ocorrido em algum ato praticado irregularmente em seu curso [64].

Em relação aos atos juridicamente inexistentes, entende-se que são aqueles que carregam consigo defeito tão grave que é capaz de desfigurá-lo e impedir sua configuração jurídica. Por isso, o ato inexistente jamais poderá ser convalidado, tampouco precisa ser invalidado [65].

Ressalte-se que o ato juridicamente inexistente não corresponde a um nada fático. Na verdade, ele pode ser comparado a um impostor, pois pretende fazer-se passar pelo ato que quereria ter sido [66]. Nesse caso, embora tenha o ato se formado, é coisa vã, mera aparência e insuscetível de produzir efeitos no mundo jurídico.

Assim, de forma mais simplificada pode-se afirmar que o ato inexistente não se confunde com o ato nulo. Isto porque o primeiro é capaz de gerar efeitos, enquanto que o segundo entra no mundo jurídico, ainda que deficientemente, e nele produz seus efeitos naturais. Além disso, o ato nulo precisa ser desfeito, já o ato inexistente apenas se declara como tal. A inexistência constitui imprescindível dado referencial, contrastando com a nulidade. "Prescindindo-se da subentendida existência jurídica, por exemplo, não há sentido em tutelar o aparente (ou não-real) " [67].

Diante disso, a corrente de pensamento que considera a decisão judicial que afronta a Constituição como sentença inexistente parece ser a mais coerente. Isso porque, conforme já foi anteriormente mencionado, o vício que macula um ato inexistente é tão grave que impede a formação da coisa julgada, ou seja, a formação da coisa julgada não pode ter a virtude milagrosa de dar vida ao nada. Ou seja, se a sentença não existe juridicamente, não passará a existir pelo simples fato de ter transitado em julgado [68].

Cândido Rangel Dinamarco partilha do entendimento acima exposto, sendo bastante claro ao afirmar que "a irrecorribilidade da sentença não apaga a inconstitucionalidade daqueles resultados substanciais política ou socialmente ilegítimos, que a Constituição repudia". [69] Daí porque se trata de suposta coisa julgada inconstitucional: não pode haver trânsito em julgado de sentença inexistente.

Devido à grande dificuldade encontrada no meio doutrinário para distinguir inexistência de nulidade da sentença, é bastante comum autores citarem os mesmos exemplos, ora para definir inexistência, ora para definir nulidade, como se fossem equivalentes.

Exemplo bastante didático é o de uma decisão judicial que declarasse o recesso de algum Estado federado brasileiro, dispensando-o de prosseguir integrado na República Federativa do Brasil. Ora, é óbvio que tal dispositivo vai de encontro com um dos postulados mais firmes da Carta Magna, qual seja, o da indissolubilidade da Federação, o qual possui status de cláusula pétrea. Sendo assim, nem mesmo a mais elevada das decisões judiciárias, mesmo que proferida pelo órgão máximo do Poder Judiciário teria força suficiente para superar o estatuído pelo art. 1º da Constituição [70].

Não se pode admitir que esse tipo de anomalia exista no ordenamento jurídico e, ainda, que tenha força para impor-se. Por isso, como a Constituição não permite que um Estado se retire da Federação, a sentença que assim determine deve ser repelida por razões de ordem constitucional, sendo inexistente, o que implica em dizer que inexistirá também coisa julgada material sobre ela. Esse também é o entendimento de Hugo Nigro Mazzili, afirmando que "na verdade, não se pode admitir a formação de coisa julgada contra a Constituição, se esta é a base de todo o ordenamento jurídico e, portanto, é a fonte de validade da própria coisa julgada". [71]

Com efeito, uma sentença com tal mácula não se reputa jamais coberta pela autoridade da coisa julgada, posto que não tem força para ficar imunizada por referida autoridade. Eis porque se trata de suposta coisa julgada inconstitucional: não há, de fato, trânsito em julgado de sentença que viole a Constituição.

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Sobre a autora
Brenda Corrêa Lima

advogada em Belém (PA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Brenda Corrêa. A suposta coisa julgada inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1213, 27 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9092. Acesso em: 20 abr. 2024.

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