Lei n° 13.964/19: a (in)constitucionalidade da prisão no Tribunal do Júri antes do trânsito em julgado da sentença e a violação ao princípio da presunção de inocência

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A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 alterou diversos dispositivos legais, dentre eles, o art. 492, I, "e" do Código de Processo Penal, o qual trata da sentença proferida nos casos de condenação dos crimes de competência do Tribunal do Júri.

Resumo: A nova redação trouxe a possibilidade de o acusado ser recolhido à prisão, quando presentes os requisitos da prisão preventiva, no caso de condenação à pena igual ou superior a 15 (quinze) anos. Essa alteração, que visa a antecipação da execução da pena propriamente dita, caminha em descompasso com a Carta Magna, atacando diretamente princípios constitucionais, como a presunção de inocência, disposto no art. 5o, LVII, na medida em que trata o acusado como culpado em sentido estrito, sem respeitar o marco processual do trânsito em julgado da sentença penal condenatória e o duplo grau de jurisdição.


INTRODUÇÃO

A Constituição Federal (CF/88) reconhece, no Título que trata dos direitos e garantias fundamentais, em seu art. 5º, XXXVIII, a instituição do júri, órgão que visa garantir o exercício da cidadania e democracia, por meio do qual permite que pessoas do povo, expressando a vontade popular, julguem o denunciado em crimes dolosos contra a vida ou a eles conexos.

O texto constitucional trata a soberania dos veredictos como um dos princípios basilares que sustentam o Tribunal do Júri. Porém, mesmo revestidas de autonomia, suas decisões não são imutáveis. Isso quer dizer que essa soberania não é absoluta, muito menos definitiva, de modo que as decisões do Júri podem ser revistas pelos tribunais recursais, conforme o art. 593, III do Código de Processo Penal (CPP).

De acordo com o princípio da presunção de inocência, expresso em nossa Carta Magna, previsto em seu art. 5º, inciso LVII, o qual garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988)1, a imposição das medidas próprias da fase de execução somente serão impostas ao condenado após a sentença se tornar irrecorrível.

Diante desse cenário, a nova redação do art. 492, I, "e" do CPP, derivada do denominado “Pacote Anticrime”, ressuscitou a prisão automática, uma vez que já havia entendimento pacificado acerca do assunto. Agora essa alteração permite que o condenado a uma pena superior a 15 (quinze) anos de reclusão, pela prática de crime doloso contra a vida, seja recolhido à prisão, a fim de executar provisoriamente sua pena, logo após submetido a julgamento pelo júri.

A antecipação do cumprimento da pena após a confirmação da sentença em segunda instância, apreciadas por meio das ADC 43, 44 e 54 e a PEC 5/2019, que visavam dar interpretação conforme a Constituição ao entendimento do art. 283. do CPP. Cria-se agora, com a sanção da Lei nº 13.964/19, a possibilidade da execução provisória da pena com base em decisão de primeiro grau, pois, ainda que o Tribunal do Júri seja um órgão colegiado com decisões em tese soberanas, compõe o primeiro grau de jurisdição, passíveis de revisão pelo Tribunal ad quem.

Ademais, a isso se soma a clara violação de princípios como: o princípio da presunção de inocência e o duplo grau de jurisdição, expresso como garantia judicial mínima decorrente da ratificação do pacto de San José da Costa Rica que aduz o direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

Ora, então como explicar os grandes equívocos causados pelo legislador, se a prisão automática fere o princípio da presunção de inocência no ordenamento jurídico pátrio? Se o Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade da execução antecipada da pena após a decisão de segundo grau, mais ainda não seria inconstitucional execução da pena em primeiro grau? Por si só, a soberania dos veredictos serve como elemento válido para alegar a execução antecipada da pena? Ou para garantir a independência dos jurados?


1. DO TRIBUNAL DO JÚRI

O Tribunal do Júri foi instituído no Brasil em 1822, por decreto do Príncipe Regente. Naquela ocasião, era composto por vinte e cinco cidadãos “bons, honrados, inteligentes e patriotas” aos quais competiam julgar os crimes de impressa. Atualmente, está previsto na Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso XXXVIII, cuja competência mínima é julgar os crimes dolosos contra a vida, ou a eles conexos, tentados ou consumados (NUCCI, 2019).

Nesse contexto, vale transcrever o preceito constitucional:

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988)2

A Instituição do Júri tem por essência a efetivação da vontade popular e do exercício da cidadania, por meio dos quais o juiz presidente profere a sentença condenatória levando em consideração o veredicto dos jurados, o que demonstra a importância da democracia na sociedade, declarando o réu inocente ou culpado.

O rito do júri possui procedimento escalonado ou bifásico, de modo que na primeira fase, também chamada de juízo de acusação ou judicium accusationis, ocorre a realização do juízo de admissibilidade da acusação. Esta fase é marcada pelo recebimento da denúncia ou da queixa e pela produção de provas para averiguação de indícios da materialidade e da autoria do crime. E finaliza com a decisão de pronúncia, quando convencido o juiz da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes da autoria ou da participação; de impronuncia, quando não existem provas desses indícios; ou de absolvição sumária, em caso do crime não constituir infração penal, não ser ele o autor ou o partícipe, restar provada a inexistência do fato, ou demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime (CAPEZ, 2020).

A segunda fase, chamada de juízo da causa ou judicium causae, refere-se à fase de julgamento da acusação admitida na primeira fase. Inicia com o trânsito em julgado da sentença de pronúncia e finaliza com a publicação da sentença do juiz presidente do tribunal popular, em conformidade com a decisão proferida pelas jurados (CAPEZ, 2020).

O júri é composto por um juiz presidente, que é o responsável para conduzir todos os procedimentos, e sete jurados, escolhidos por meio de sorteio dentre vinte e cinco cidadãos, para compor o conselho de sentença. “Uma vez sorteados, vige o princípio da incomunicabilidade entre os jurados com outras pessoas, impedindo‐se a manifestação de opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho de sentença e multa.” (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 897).

Sob a realização de juramento, por meio da fórmula estabelecida no art. 472, os jurados respondem a quesitos elaborados pelo presidente do júri acerca do fato criminoso, no sentido de condenar ou absolver o réu. Dessa forma, os jurados decidirão sobre a matéria de fato prometendo “julgar com imparcialidade e decidir de acordo com sua consciência e os “ditames da justiça”, sob o princípio de íntima convicção (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 898).

Finalizadas as votações, após a realização de todos os procedimentos, o juiz proferirá a sentença, que, em caso de condenação,

fixará a pena-base; levará em consideração as circunstâncias agravantes e atenuantes; imporá as causas de aumento e diminuição; observará as demais disposições do art. 387. do CPP; mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos. Por fim, estabelecerá os efeitos genéricos e específicos da condenação (CPP, art. 492, I, a, b, c, d, e e f). (CAPEZ, 2020, p. 690)

Por fim, a sentença proferida pelo juiz presidente poderá resultar ainda em absolvição ou desclassificação do crime. Contra a sentença caberá recurso de apelação, que em caso de condenação a pena superior a 15 anos de reclusão não terá efeito suspensivo, salvo, excepcionalmente, quando verificado cumulativamente que o recurso não tem propósito meramente protelatório e levanta questão substancial (BRASIL, 1988)3.


2. PRINCÍPIOS REGENTES DO TRIBUNAL DO JÚRI CONTRÁRIOS À PREVISÃO DA EXECUÇÃO AUTOMÁTICA DISPOSTA NA LEI Nº 13.964/19

A alteração legislativa de que trata a “Lei anticrime” fere diversos dispositivos Constitucionais atinentes à própria Instituição do Júri, bem como do Código de Processo Penal. Assim, passa-se à análise de alguns deles julgados essenciais à garantia do Estado Democrático de direito.

2.1. PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS

É o princípio que outorga ao corpo de jurados a efetiva parcela do poder jurisdicional, de forma que suas decisões possam ser revestidas de autonomia, independência e imparcialidade. Soberano, in: (HOUAISS)4 é aquele capaz de exercer o poder e autoridade supremos; que atinge o mais alto grau. Em paralelo com o veredicto popular, decisão soberana é aquela que aparentemente não pode ser modificada. No entanto, é sabido que tais decisões podem ser revistas pelos tribunais recursais no que tange à efetivação ao princípio do duplo grau de jurisdição.

Nesse mesmo sentido foi o voto do Ministro relator, Celso de Melo, ao julgar o HC 68.658, da primeira turma de 1996, quando trata especificamente que:

A soberania dos veredictos do Júri — não obstante a sua extração constitucional — ostenta valor meramente relativo, pois as manifestações decisórias emanadas do Conselho de Sentença não se revestem de intangibilidade jurídico-processual. A competência do Tribunal do Júri, embora definida no texto da Lei Fundamental da República, não confere a esse órgão especial da Justiça comum o exercício de um poder incontrastável e ilimitado. As decisões que dele emanam expõem-se, em consequência, ao controle recursal do próprio Poder Judiciário, a cujos Tribunais compete pronunciar-se sobre a regularidade dos veredictos. A apelabilidade das decisões emanadas do Júri, nas hipóteses de conflito evidente com a prova dos autos, não ofende o postulado constitucional que assegura a soberania dos veredictos desse Tribunal Popular5

Portanto, o art. 593. do CPP, que dispõe sobre as condições para interposição de recurso à instância imediatamente superior, no tocante às decisões do júri, garante “a possibilidade de apelação, quanto ao mérito da decisão do Conselho de Sentença, desde que manifestamente contrária à prova dos autos” (NUCCI, 2019). Assim, ao dar provimento ao recurso, o tribunal ad quem deverá sujeitar o réu a novo julgamento, contudo não se admitirá, pelo mesmo motivo, segunda apelação (BRASIL, 1941).

2.2. PRINCÍPIO DA PLENITUDE DE DEFESA

Aos acusados e julgados pelo Tribunal do Júri é assegurada a plenitude de defesa, que consiste basicamente em uma garantia especial do acusado se opor a tudo aquilo que se afirma contra ele, como forma de ampliação de seu direito de defesa, ante às especificidades do Tribunal do povo, dentre elas o julgamento pelos seus pares.

Trata-se, portanto, de um direito fundamental que assegura o maior e mais pleno direito de defesa, pois, aos réus em processos criminais comuns garante-se a ampla defesa. Não se confunde ampla defesa e plena defesa, já que “amplo quer dizer vasto, largo, muito grande, rico, abundante, copioso; pleno significa repleto, completo, absoluto, cabal, perfeito. O segundo é, evidentemente, mais forte que o primeiro.” (NUCCI, 2019, p. 83).

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As decisões do júri são tomadas por íntima convicção dos jurados, sem que haja a necessidade de fundamentá-las, onde impera a oralidade dos atos e a concentração da produção de provas. Portanto, torna-se imprescindível que a defesa atue de modo completo e perfeito (NUCCI, 2019).

Por esse motivo, aqui se encontra o viés que justifica a previsão da plenitude de defesa ante o Tribunal do júri, pois, em caso de confronto inafastável com a acusação, a defesa precisa de um método que a privilegie, homenageando a sua plenitude (NUCCI, 2019).


3. A ALTERAÇÃO TRAZIDA PELA LEI N° 13.964/19 REFERENTE AO PROCEDIMENTO DO JÚRI

A Lei n° 13.964/19 foi idealizada pelo então Ministro da Justiça, Sérgio Moro, por meio do PL 882/19, com a finalidade de “estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa”. Entrou em vigor 30 dias após sua publicação no Diário Oficial da União, de 24 de dezembro de 2019, alterando, revogando ou acrescentando diversos dispositivos ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, além de leis penais extravagantes.

Dentre as alterações, consta a do art. 492, I, "e" do CPP, o qual está inserido no capítulo que trata dos procedimentos relativos aos processos da competência do Tribunal do Júri. A antiga redação previa que, em caso de condenação, o Presidente do tribunal deveria “mandar o acusado ser recolhido à prisão em que se encontrasse, se presentes os requisitos da prisão preventiva” (BRASIL, 1941, grifo nosso)6 , independentemente do quantum da pena.

DA PRISÃO PREVENTIVA

São três as modalidades de medidas cautelares no processo penal: a prisão em flagrante, a prisão temporária e a prisão preventiva. Uma questão muito coerente refere-se ao princípio da presunção de inocência e sua incompatibilidade com as prisões cautelares. Ambos os institutos, da presunção de inocência e da prisão cautelar, estão previstos no art. 5º da CF/88, de modo que o princípio da presunção de inocência não impede a decretação da prisão cautelar. O art. 5º, LXI, da CF/88 prevê a possibilidade da prisão em flagrante ou da prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Portanto, tem-se duas normas constitucionais que devem ser resolvidas por meio dos princípios da proporcionalidade ou razoabilidade. Para tanto, para que essa prisão cautelar seja compatível com o princípio constitucional da presunção de inocência, faz-se necessário observar alguns princípios, quais sejam: excepcionalidade, a prisão cautelar só pode ser decretada de maneira excepcional, quando houver necessidade; taxatividade, nos casos estritamente previstos em lei; adequação e proporcionalidade, a prisão cautelar deve ser adequada e proporcional às características do sujeito, à gravidade do crime e à situação em concreto (NUCCI, 2019).

Ademais, o art. 282. do CPP define quais são os requisitos básicos atinentes à fixação de qualquer medida cautelar:

Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:

I - necessidade para aplicação da lei penal (obsta a possibilidade de fuga), para a investigação ou a instrução criminal (garante produção de provas) e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (impede a prática de novos ilícitos penais);

II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. (BRASIL, 1941, grifo nosso)7

Dessa forma, a prisão preventiva é uma das espécies de medida cautelar, que por sua vez, trata-se de prisão processual de caráter provisório, decretada quando há a necessidade de segregação cautelar do suspeito durante as investigações ou no tramitar da instrução penal, ou seja, ocorre antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Aqui, não houve a prolação de uma sentença, não houve análise do conjunto probatório. Há apenas uma discussão acerca da necessidade do réu ou do acusado, no caso, manter-se preso durante o tramitar do inquérito policial ou da ação penal, nos termos do art. 311. do CPP:

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. (BRASIL, 1941)8.

Nesse caso, para decretação da prisão preventiva deve ser verificada sua necessidade em decorrência da análise dos pressupostos do fumus boni iurus ( fumus comissi delicti ) e do periculum in mora ( periculum libertatis ). Dessa forma, esta prisão é a única existente no ordenamento jurídico que pode ser decretada no curso do processo, nos termos do art. 312. do CPP (RANGEL, 2020):

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado (BRASIL, 1941, grifo nosso)9

Quanto ao procedimento especial do júri, a nova redação do art. 492, no tocante aos procedimentos relativos à prisão no Tribunal do Júri, conforme consta da alteração efetuada por meio da Lei nº 13.964/19, agora traz a seguinte redação:

Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:

I – no caso de condenação

[...]

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos. (BRASIL, 1988, grifo nosso)10

E assim, essa alteração é uma clara tentativa de reviver as formas de prisão automática, como as já rechaçadas em 1973. Naquela ocasião, a prisão preventiva era regra, uma vez que a simples decisão de pronúncia submetendo o acusado ao julgamento pelo Conselho de Sentença impunha a prisão preventiva. No entanto, a Lei nº 5.941, de 22 de novembro de 1973, transformou esse cenário, mudando totalmente a determinação dessas prisões mecanicamente decretadas sem fundamentação. Com essa reforma, buscou-se corrigir o erro refente à prisão decorrente da decisão de pronúncia, que constava do art. 408, § 1º do CPP, permanecendo apenas o momento processual da pronúncia.


4. DA CRÍTICA AO PROJETO DE LEI 882/2019

Ao analisar as alegações dispostas na exposição dos motivos da propositura do PL 882/2019, que foi convertido na Lei n° 13.964/19, nota-se que o ex-ministro da justiça em seu argumento defende que:

A justificativa baseia-se na soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e a usual gravidade em concreto dos crimes por ele julgados e que justificam um tratamento diferenciado. Na verdade, está se colocando na lei processual penal o decidido em julgamentos do Supremo Tribunal Federal que, por duas vezes, admitiu a execução imediata do veredicto, tendo em conta que a decisão do Tribunal do Júri é soberana, não podendo o Tribunal de Justiça substituí-la11. Grifo nosso.

Reitera-se que a soberania dos veredictos não permite a execucão provisória da pena após a decisão proferida pelo tribunal do júri, pois se a liberdade do acusado implicar em risco à execução da pena ou à garantia da ordem pública, impõe-se a aplicação da prisão preventiva. De modo algum deve-se admitir que a prisão penal seja decretada no curso do processo, sob pena de se negar ao acusado direitos fundamentais como o princípio da presunção de inocência, que é estendido até o trânsito em julgado da senteça, e o princípio do duplo grau de jurisdição, que mesmo no antigo entendimento da Suprema Corte era tido como inviolável até o esgotamento das instâncias dos tibunais de apelação. (BRASILEIRO, 2020)

E ainda por força do art. 593, III, § 3º, sabe-se que o juízo ad quem pode determinar a cassação da decisão de 1ª instância do júri, para efetuar o juízo reincidente, devendo o acusado ser submetido a novo julgamento. (BRASILEIRO, 2020).

Paiva, muito bem sustenta em suas indagações e críticas que:

[...] a premissa de que o Tribunal não pode substituir o convencimento dos jurados na apreciação dos fatos e das provas, embora verdadeira, apenas delimita — e não elimina, repita-se — a competência recursal da segunda instância, em nada legitimando a suposta lógica do resultado interpretativo, pois o exercício do duplo grau pode invalidar o julgamento e implicar que outro seja realizado12 (PAIVA, 2017)

De mais a mais, há ainda uma grande discussão acerca da utilização da gravidade em concreto do crime. Usualmente é utilizada quando há a necessidade da decretação da prisão preventiva como garantia da ordem pública, nos termos do art. 312. do CPP, sempre que houver violação ao pressuposto do periculum libertatis.

No entanto, é sabido que os tribunais têm adotado a gravidade em concreto do crime para decretar as prisões preventivas, uma vez que o argumento de que a gravidade em abstrato deixou de ser admitida pelos tribunais superiores. Mas, antes de adentrar nessa questão, imperioso se faz diferenciar a gravidade em abstrato da gravidade em concreto. Os crimes que oferecem gravidade abstrata são aqueles que a própria lei define, no preceito primário, que a conduta praticada pelo agente é perigosa, sem a necessidade de comprovação do risco que a ação oferece ao bem jurídico tutelado, pois, por si só, a prática desse delito possui alto potencial lesivo. Gravidade em concreto, ao contrário, é aquela em que precisa ser demonstrada, comprovada, referindo-se ao modus operandi do agente, ou seja, representa o procedimento adotado na prática da conduta delituosa, evidenciando sua periculosidade. (METZKER, 2019)

Há que se lembrar que a garantia da ordem pública por vezes se refere a um conceito muito vago, impreciso e de difícil delimitação (LOPES JÚNIOR, 2020), já que qualquer motivo pode ser utlizado pelo julgador para embasar sua aplicação.

Diante disso, a gravidade concreta do delito quando invocada a fim de justificar a imposição de uma medida cautelar, deve pautar-se pela alta periculosidade do indivíduo, demonstrada em face de sua conduta, que por sua vez está ligada à repercussão social do crime. Para Nucci, “a garantia da ordem pública pode ser visualizada por vários fatores, dentre os quais: gravidade concreta da infração + repercussão social + periculosidade do agente.” (2019, p. 679). Grifo nosso

Nessa linha é o entendimento do STJ ao decidir, por ocasião do julgmanto do RHC 114.800, pela manutenção da medida cautelar diante da necessidade da segregação com finalidade de garantir a ordem pública por meio gravidade concreta do delito, conforme julgado que se segue:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA. GRAVIDADE CONCRETA DO DELITO (APREENSÃO DE CONSIDERÁVEL QUANTIDADE DE DROGA). RISCO DE REITERAÇÃO. NECESSIDADE DE GARANTIR A ORDEM PÚBLICA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. RECURSO DESPROVIDO.

1. A privação antecipada da liberdade do cidadão acusado de crime reveste-se de caráter excepcional em nosso ordenamento jurídico (art. 5º, LXI, LXV e LXVI, da CF). Assim, a medida, embora possível, deve estar embasada em decisão judicial fundamentada (art. 93, IX, da CF) que demonstre a existência da prova da materialidade do crime e a presença de indícios suficientes da autoria, bem como a ocorrência de um ou mais pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal. Exige-se, ainda, na linha perfilhada pela jurisprudência dominante deste Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que a decisão esteja pautada em motivação concreta, sendo vedadas considerações abstratas sobre a gravidade do crime.

2. Na hipótese em tela, as instâncias ordinárias destacaram de forma suficiente elementos que demonstram a periculosidade e o risco de reiteração do recorrente e, portanto, a necessidade da segregação como forma de garantia da ordem pública.

3. Caso em que a prisão preventiva foi mantida pelo Tribunal para garantia da ordem pública em razão da gravidade concreta do delito, evidenciada pelas circunstâncias extraídas do flagrante, quando foram apreendidos 208,4g de maconha, além de duas balanças de precisão, várias luvas plásticas, um rolo de papel insulfilm e uma faca com resquício de

s ubstância entorpecente.

4. A Corte estadual ressaltou que a medida extrema está justificada também no efetivo risco de o recorrente voltar a cometer delitos, porquanto é reincidente e ostenta outras passagens criminais.

5. Mostra-se indevida a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão quando evidenciada a sua insuficiência para acautelar a ordem pública.

6. Recurso ordinário desprovido.13 Grifo nosso

Nota-se que a quantidade de droga apreendida (208,4g) foi considerada relevante para imposição da medida, cumprindo o requisito refente à gravidade do delito. Por outro lado, o TJRS, ao decidir sobre o HC 70054419841, que versava sobre a tragédia da Boate KISS, em Santa Maria/RS, que resultou na morte de 242 pessoas, mediante asfixia, entendeu que a necessidade de manutenção da prisão preventiva deixou de ser justificada ante a ausência dos requisitos do art. 312. do CPP.

HABEAS CORPUS. INCÊNDIO DA BOATE KISS. ALEGADO CERCEAMENTO DE DEFESA, EM RAZÃO DE DIFICULDADE DE ACESSO AOS AUTOS. QUESTÃO ESCLARECIDA PELO MAGISTRADO PROCESSANTE. NÃO CONFIGURADO O DEFEITO. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COMO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E POR CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. FUNDAMENTOS QUE JÁ NÃO SE FAZEM PRESENTES PARA A MANUTENÇÃO DA SEGREGAÇÃO PROVISÓRIA.

Se, em razão do intenso abalo social provocado pela tragédia que resultou em tantos mortos e feridos, justificava-se a prisão preventiva dos supostos responsáveis no momento em que foi decretada, como garantia da ordem pública, a verdade é que, passados quatro meses desde o infausto acontecimento, já não se fazem mais presentes os aspectos da ordem pública ressaltados pelo magistrado no decreto prisional: o clamor público e a necessidade de resguardar-se a credibilidade da justiça.

Quanto à gravidade concreta do fato, impõe-se distinguir a conduta e o resultado. Se este apresenta proporções gigantescas, certo é que a conduta dos réus não se reveste de crueldade, de hediondez ou de excepcional desprezo pela vida humana, nem eles apresentam, pelo que se tem nos autos, qualquer periculosidade.

Por derradeiro, não há qualquer demonstração concreta de que os acusados venham a interferir de alguma forma no andamento da instrução criminal.

Em conclusão, não se vislumbra a necessidade de manutenção da prisão preventiva.

Ordem concedida, com efeito extensivo aos demais acusados presos.14

Dessa forma, sabe-se que a gravidade abstrata do crime não justifica, por si só, a decretação da prisão preventiva, quando se leva em consideração, por exemplo, a simples ocorrência do fato de “matar alguém”.

No sentido oposto, a utilização da gravidade concreta do delito para decretação da preventiva decorrente da violação ao pressuposto da garantia da ordem pública possui traços de subjetividade. Já que, somente analisando a gravidade dos fatos é possível delimitar a presunção de que o agente poderá atentar novamente contra ordem pública, praticando novos crimes (METZKER, 2019).

Logo, o que se deve colocar na balança são as circunstâncias graves e indicativas de periculosidade das quais o agente utilizou na prática do crime.

Analisando a exposição de motivos, no trecho que se refere à “usual gravidade em concreto dos crimes”15, infere-se que foi correlacionado que todos os crimes de homicídio em tese são graves, na tentativa frustrada de justificar a prisão depois do júri.

A INCONSTITUCIONALIDADE DA ANTECIPAÇÃO DA EXECUÇÃO DA PENA

A decretação da prisão após a confirmação da sentença em 2ª instância faz parte de uma grande discussão que se arrastou durante anos no Brasil. Mesmo após a promulgação da CF/88, o tema ainda sofreu algumas mudanças de entendimento.

Em 29 de março de 1989, a Segunda Turma da Suprema Corte julgou o HC 67.245/MG, que pela primeira vez houve a análise da compatibilidade do princípio da presunção de inocência com a execução provisória da sentença confirmada em 2ª instância

Esses debates também estiveram, recentemente, sob os holofotes do HC 118.770/SP e HC 126.292/SP, os quais discutiam a questão da prisão logo após a decisão dos sete jurados do Conselho de Sentença e a prisão após a condenação em segunda instância, respectivamente. No entanto, este último entendimento restou alterado pelo HC 151.430/DF que manteve a decisão que assegura ao condenado em segunda instância o direito de recorrer em liberdade.

Inicialmente, cumpre ressaltar que a súmula nº 9, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que vigorava à época, previa a prisão do réu, em que pese a decisão ainda fosse passível de recursos. Súmula nº 9. In: A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência.

Em 2009, o Supremo Tribunal Federal mudou esse entendimento, ao julgar o HC 84.078, no sentido de vedar a execução antecipada da pena, garantindo ao réu o direito de recorrer em liberdade.

EMENTA: HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA “EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA”. ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.

1. O art. 637. do CPP estabelece que “[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença”. A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que “ninguém será́ considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637. do CPP.

3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar.

4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão.16

Então, em 2016, a decisão proferida, por maioria votos, nos autos do HC 126.292/SP, pacificou o entendimento de que a execução da sentença condenatória após a confirmação em segunda instância não ofende a presunção de inocência, mesmo pendente o julgamento de recursos constitucionais, afirmando agora que era possível a execução da pena após a confirmação da decisão em segunda instância.

EMENTA: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5o, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE.

1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. (BRASIL, 2016)

2. Habeas corpus denegado.17

Em novembro de 2019, finalmente o Plenário do STF finalizou toda a discussão que circunda essa questão polêmica ao julgar as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC 43, 44 e 54), decidindo então que não é mais possível a execução da pena após a decisão confirmada em segunda instância. As ADCs debatiam a constitucionalidade do art. 283. do CPP, o qual dispunha dentre as condições para decretação da prisão, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, que possuía a seguinte redação:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva (BRASIL, 1941)18.grifo nosso

No acordão que decidiu sobre a constitucionalide do artigo supracitado, com efeito erga omnes, por ocasião do julgamento das ADCs 43, 44 e 54, o ministro-relator, Marco Aurélio, nos ensina que:

O princípio da não culpabilidade é garantia vinculada, pela Lei Maior, à preclusão, de modo que a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal não comporta questionamentos. O preceito consiste em reprodução de cláusula pétrea cujo núcleo essencial nem mesmo o poder constituinte derivado está autorizado a restringir.19

Portanto, mesmo diante de tantas mudanças de entendimento, fica evidenciando que a antecipação da execução da pena após a condenação pelo tribunal do júri, nos termos da nova redação do art. 492, I, “e” do CPP, deve ser revista em sede de controle de constitucionalidade, a exemplo dos julgados de que tratam a prisão em segunda instância, pois naquela ocasião o STF acertadamente dicidiu pela constitucionalidade do art. 283. do CPP.

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Sobre o autor
Bruno Hayalla de Almeida Alves

Bacharel em Direito pelo UDF Centro Universitário

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo científico elaborado como requisito para obtenção de grau no curso de bacharel em direito pelo UDF Centro Universitário.

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