Lei n° 13.964/19: a (in)constitucionalidade da prisão no Tribunal do Júri antes do trânsito em julgado da sentença e a violação ao princípio da presunção de inocência

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5. DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

A presunção de inocência tem origem na Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, em 1789, e ganhou repercussão universal com a Declaração dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, que afirmou em seu art. 11. que: (ALMEIDA & DORIGON, 2015)

Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa (ONU, 1948).

Atualmente, no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da presunção de inocência, previsto na CF/88, visa garantir o estado de inocência do acusado em processo criminal, enunciando, no art. 5º, LXII, que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” (Brasil, 1988)20. Na mesma linha, o art. 283. do CPP, após também ter sofrido alterações por força da Lei nº 13.964/90, nos diz que: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado”. (BRASIL, 1941, grifo nosso)21

O processo penal tem como princípio basilar a presunção de inocência, de modo que se possa dar efetividade ao respeito à dignidade e aos direitos essenciais da pessoa humana. “Liga-se, pois, à própria finalidade do processo penal: um processo necessário para a verificação jurisdicional da ocorrência de um delito e sua autoria”. (LOPES JÚNIOR, 2020)

Muito importante sublinhar que a presunção constitucional de inocência tem um marco claramente demarcado: até o trânsito em julgado. Neste ponto nosso texto constitucional supera os diplomas internacionais de direitos humanos e muitas constituições tidas como referência. Há uma afirmação explícita e inafastável de que o acusado é presumidamente inocente até o “trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 107, grifo do autor)

Reitera-se que o conceito de trânsito em julgado não deve ser manejado irrefletidamente ou distorcido de forma autoritária e a “golpes de decisão” (LOPES JÚNIOR, 2020), como fez o STF ao julgar o HC 126.292. Que naquela ocasião passou a autorizar a execução antecipada da pena.

No entanto, deve-se enfatizar que o in dúbio pro reo somente deve ser invocado até que a sua sentença se torne irrecorrível, pois é ali que vige o princípio da inocência do acusado. Mas isso não impede que seja decretada a restrição de liberdade do indivíduo, em caráter cautelar, quando estiverem presentes os requisitos legais devidos, pois estes coexistem com a presunção de inocência, conforme já dito sobre o art. 312. do CPP.

Dessa forma, a nova redação do art. 492, I, "e" do CPP, ao garantir que o acusado deve ser recolhido à prisão, a fim de executar provisoriamente a pena, em caso de condenação igual ou superior a 15 anos de reclusão, sem a necessidade da presença dos pressupostos que autorizam a prisão preventiva, entra em conflito evidente com os preceitos relativos ao princípio da presunção de inocência, bem como à nova redação do art. 283. do CPP, que requer o trânsito em julgado para executar penas, exceto ao que se refere às prisões cautelares, o que não é a hopótese ora sob comento. (BRASILEIRO, 2020)


6. DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA

No Brasil, o princípio da isonomia teve previsão legal pela primeira vez com a promulgação da Constituição de 1934, que garantia a brasileiros e a estrangeiros, residentes no país, a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas.

Esse princípio visa garantir o exercício da democracia, apontando tratamento justo para os cidadãos e está previsto atualmente, no art. 5º, caput da CF/88, o qual menciona que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza […]”. (BRASIL, 1988)22 Daí, infere-se que a lei não pode ser fonte de privilégios ou perseguições, mas sim um instrumento que regula a vida em sociedade.

As partes devem ter, em juízo, as mesmas oportunidades de fazer valer suas razões, e ser tratadas igualitariamente, na medida de suas igualdades, e desigualmente, na proporção de suas desigualdades. Na execução penal e no processo penal, o princípio sofre alguma atenuação, pelo, também constitucional, princípio favor rei, postulado segundo o qual o interesse do acusado goza de alguma prevalência em contraste com a pretensão punitiva (CAPEZ, Curso de Direito Penal, 2011).

O princípio da isonomia (ou prinícipio da igualdade) concilia a igualdade formal e igualdade material. A igualdade formal refere-se a produção, interpretação e aplicação igualitária das normas jurídicas, de modo que se impossibilite as diferenciações de tratamento que se revelem arbitrárias; e a igualdade material refere-se à igualdade efetiva perante os bens da vida humana. (MORAES, 2020).

Ora, então a alteração trazida pelo famigerado “pacote anticrime”, que prevê a execução automática da pena, em decorrência da condenação igual ou superior a 15 anos pelo Tribunal do Júri, fere também o princípio da isonomia. Pois se há pouco tempo o STF declarou que era inconstitucional a execução provisória na segunda instância, claro mais seria que a execução automática após a condenação pelo júri também é inconstitucional, não podendo admitir essa exceção.

Então, por exemplo: um crime de homicídio, que não é um crime hediondo, cuja pena é de seis a vinte anos, se o agente é condenado a pena igual ou superior a 15 anos, a execução é automática; mas um crime de latrocínio, que é um crime hediondo, muito mais grave, tecnicamente o agente deve esperar o trânsito em julgado para cumprir sua pena. Nitidamente ferindo assim os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, já que não são decisões equânimes.


7. DOS CASOS EM CONCRETO

Por fim, passa-se à análise, em recortes epistemológicos, de algumas decisões recentes que consubstanciam os argumentos sustentados até aqui, reiterando que o entendimento dos tribunais, em que pese a nova redação do art. 492, I, “e” do CPP, vem no sentido de aplicar o assentado no julgamento das ADCs 43, 44, e 54, garantindo que a prisão para cumprimento da pena somente é permitida após o trânsito em julgado, ressalvado o preenchimento dos requisitos do art. 312. do CPP, para fins de prisão preventiva.

“O Supremo Tribunal Federal, no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54, firmou o entendimento de que a prisão, para fins de cumprimento de pena, só é permitida após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sendo admitida, por outro lado, a prisão cautelarquando presentes os requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. 7.1. Tendo o réu respondido ao processo em liberdade e inexistindo alteração fática que justifique a sua prisão cautelar, deve ser mantido o seu direito de recorrer em liberdade.”23 Grifo nosso.

“O Supremo Tribunal Federal decidiu que a execução provisória da pena não é compatível com o princípio da presunção de inocência, ressalvando a prisão preventiva antes do trânsito em julgado da condenação nos casos em que se apresentem seus pressupostos.” 24 Grifo nosso.

“Conservada a soberania da decisão dos jurados, ensejaria violação ao principio do duplo grau de jurisdição e ao princípio da presunção de inocência a eventual execução provisória da pena determinada pelo Juiz do Tribunal do Júri, quando não presentes os motivos autorizadores para a decretação da prisão preventiva, tendo em vista que o inícioixada somente poderá ocorrer após o esgotamento das instâncias ordinárias, de acordo com o entendimento exarado pelo excelso Supremo Tribunal Federal nos julgamentos do HC 126.292/SP e do ARE 964.426 RG/SP da reprimenda.” 25 Grifo nosso.

“Diante da possibilidade de modificar-se a decisão do Conselho de Sentença, em caso de recurso, a execução provisória da pena estabelecida pelo d. Juiz Presidente do Tribunal do Júri do julgamento de apelação ofende a garantia do duplo grau de jurisdição.” 26 Grifo nosso.

“Assim, deve prevalecer o entendimento predominante na Quinta e Sexta Turmas desta Corte, que segue a diretriz jurisprudencial de que não se admite a execução automática da condenação pelo Tribunal do Júri, antes do encerramento da cognição ordinária, sob pena de afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência.”27 Grifo nosso.

A sentença condenatória do Tribunal do Júri não é prontamente exequível. A sua execução provisória está condicionada ao exaurimento da jurisdição ordinária. Portanto, será viável somente após o julgamento do respectivo Tribunal de apelação que mantenha a condenação do Conselho de Sentença.”28 Grifo nosso.

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Atualmente o STF reconheceu a repercussão geral da questão levantada no RE 1.235.340/SC, o qual possui as seguintes teses de julgamento:

a) “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada” (votos dos Ministros Roberto Barroso (Relator) e Dias Toffoli (Presidente);

b) “A Constituição Federal, levando em conta a presunção de inocência (art. 5º, inciso LV), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito de recurso do condenado (art. 8.2.h), vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do art. 312. do CPP, pelo Juiz Presidente a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos Jurados” e, ao final, declarava a inconstitucionalidade da nova redação determinada pela Lei 13.964/2019 ao art. 492, I, e, do Código de Processo Penal (voto do Ministro Gilmar Mendes). 29

O Ministro Ricardo Lewandowski pediu vista e o julgamento encontra-se sobrestado.


CONCLUSÃO

Diante de tudo que já foi dito, enxerga-se que a execução automática da pena após condenação pelo tribunal do júri, de acordo com a nova redação dada pela Lei nº 13.964/19, sem delongas, não merece prosperar, já que desde sua idealização causou bastante preucupação e foi alvo de grandes discussões, inclusive sobre sua constitucionalidade.

Primeiramente, cumpre ressaltar que a busca por um sistema penal mais eficiente, como bem esclareceu Renato Brasileiro, não autoriza a conclusão de que a soberania dos veredictos, por si só, é capaz de justificar a execução do decisium do tribunal do júri (2020, p. 337).

Logo, houve grande equívoco ao embasar a propositura do PL 882/19, levando em consideração, isoladamente, o pricípio da soberania dos veredictos e a gravidade em concreto dos delitos julgados pelo júri.

O legislador, neste caso, estabeleceu como único requisito a condenação a pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, para que o acusado em crime doloso contra a vida, sentenciado pelo júri, seja recolhido à prisão. Com isso, criou-se uma nova modalidade de prisão, com base em uma decisão de primeiro grau passível de recurso. Mas, há que ser lembrar que as decisões do júri podem ser revistas pelo tribunal recursal, conforme determina o art. 593, III, § 3º do CPP, e uma vez transmudado o título condenatório em absolutório, o estado de liberdade do cidadão jamais poderá ser devolvido.

Assim foi o voto do Ministro Marco Aurélio quando bem fundamentou o Acórdão que julgou o HC 126.292. “A execução antecipada pressupõe garantia do Juízo ou a viabilidade de retorno, alterado o título executivo, ao estado de coisas anterior, o que não ocorre em relação à custódia”.

Esse contrassenso viola princípios constitucionais, fundamentos do Estado Democrático de Direito, como o princípio da presunção de inocência e da plenitude de defesa.

Ainda importa ressaltar que a soberania dos veredictos é princípio garantidor de direitos fundamentais, ou seja, instrumento de proteção, e não de restrição de direitos. De modo que a soberania dos veredictos pode impedir a revisão de mérito, mas não o acesso ao duplo grau de jurisdição que não pode, de forma alguma, ser mitigado por lei ordinária.

Assim, resta claro que deve haver a preponderância de vários outros princípios constitucionais, bem como entendimentos jurisprudenciais emanados pela Suprema Corte já mencionados, que devem ser analisados, sistematicamente, a fim de equalizar as decisões desse órgão singular que é o Tribunal do Júri. A isto se soma todos os entendimentos extraídos das decisões que finalizaram as discussões sobre a constitucionalidade do art. 283. do CPP, e sobre a execução da pena após a confirmação da sentença pelo tribunal recursal.

De todo modo, não há falar em prisão pena, já que a prisão preventiva é a única existente no ordenamento jurídico que pode ser decretada no curso do processo, reafirmando mais uma inconstitucionalidade do art. 492, já que garante uma prisão sem cautelaridade.

Portanto, o legislador claramente cometeu um grande equívoco ao dispor sobre execução antecipada da pena nos julgamentos do Tribunal do Júri. E assim, cabe ao Supremo Tribunal Federal manifestar-se sobre a (in)constitucionalidade do referido artigo.

Vale lembrar que a repercussão geral reconhecida no RE 1.235.340 pode ocasionar mais uma guinada sobre o tema. No entanto, tantas mudanças de entendimento provoca insegurança jurídica.

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Sobre o autor
Bruno Hayalla de Almeida Alves

Bacharel em Direito pelo UDF Centro Universitário

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo científico elaborado como requisito para obtenção de grau no curso de bacharel em direito pelo UDF Centro Universitário.

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