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Servidores públicos: eles são obrigados a se vacinar?

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Existem consequências para o servidor público que opta por não se vacinar?

Introdução

Com o avanço, ainda que lento, da vacinação do Brasil contra a COVID-19, alguns grupos de servidores públicos já estão recebendo a vacina, tal como é caso dos profissionais de saúde dos hospitais públicos, dos integrantes das forças de segurança pública e dos profissionais de educação da rede pública de ensino.

Entretanto, alguns optam por não receber a vacinação. Assim, as dúvidas que surgem são: o servidor público pode ser forçado a receber a vacina? Existem consequências para o servidor público que opta por não se vacinar?

As respostas aos questionamentos acima é o que pretende se fazer no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e qualitativa com a análise da legislação, da doutrina e da jurisprudência brasileiras.


1.Da (im)possibilidade da vacinação forçada

De antemão, não podemos confundir vacinação forçada com a obrigação de se vacinar sob pena de sofrer alguma consequência. O presente tópico pretende analisar a primeira situação e no tópico seguinte analisaremos a segunda hipótese especificamente em relação aos servidores públicos.

Pois bem, ao contrário dos que muitos pensam, a pandemia do Novo Coronavírus não é a primeira epidemia no Brasil, muito pelo contrário, já passamos por muitas outras, como a da varíola, a da febre amarela, a da peste negra, a do zica vírus, a da tuberculose, a da dengue[1] e, mais recentemente, a pandemia da H1N1[2].

Assim, a discussão sobre uma vacinação forçada não é nova e a referida possibilidade efetivamente já aconteceu no Brasil. Em 31 de outubro de 1904, foi aprovada a lei 126/04, que previa o seguinte:

   Art. 1º A vaccinação e revaccinação contra a variola são obrigatorias em toda a Republica.

   Art. 2º Fica o Governo autorizado a regulamental-a sob as seguintes bases:

  a) A vaccinação será praticada até o sexto mez de idade, excepto nos casos provados de molestia, em que poderá ser feita mais tarde;

  b) A revaccinação terá logar sete annos após a vaccinação e será repetida por septennios;

 c) As pessoas que tiverem mais de seis mezes de idade serão vaccinadas, excepto si provarem de modo cabal terem soffrido esta operação com proveito dentro dos ultimos seis annos;

  d) Todos os officiaes e soldados das classes armadas da Republica deverão ser vaccinados e revaccinados, ficando os commandantes responsaveis pelo cumprimento desta;

  e) O Governo lançara mão, afim de que sejam fielmente cumpridas as disposições desta lei, da medida estabelecida na primeira parte da lettra f do § 3º do art. 1º do decreto n. 1151, de 5 de janeiro de 1904;

  f) Todos os serviços que se relacionem com a presente lei serão postos em pratica no Districto Federal e fiscalizados pelo Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, por intermedio da Directoria Geral de Saude Publica.

  Art. 3º Revogam-se as disposições em contrario.

Conforme se percebe, a referida lei trouxe mais do que uma obrigatoriedade de vacinação, mas sim a previsão de que a vacina efetivamente deveria ocorrer, inclusive existindo a possibilidade de intervenção do exército para garantir o cumprimento. Assim, a lei em testilha criou no Brasil a possibilidade de alguém ser forçado a se vacinar, o que gerou um descontentamento da população e, em consequência, a conhecida Revolta da Vacina[3].

Passado mais de um século, temos outra pandemia e uma nova lei, a 13.979/2020, que prevê o seguinte:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: III - determinação de realização compulsória de:

(...)

d) vacinação e outras medidas profiláticas; (Grifos Nossos).

Desse modo, a lei agora comentada prevê a possibilidade da vacinação compulsória. Sendo assim, alguém pode ser forçado a se vacinar?

A resposta é não. O Brasil tem a dignidade humana como um princípio fundamental[4], o que impede uma pessoa ser levada à força para tomar uma vacina.

Entretanto, é ao chegar nesse ponto que podemos perceber a diferença entre vacinação forçada e vacinação obrigatória. Na primeira a pessoa seria levada à força para se vacinar, o que não está em consonância com um Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil[5]; já a segunda hipótese não seria o caso de o Estado Leviatã deitar a pessoa em uma maca e simplesmente aplicar a vacina, podendo efetivamente alguém optar por não ir se vacinar, porém quem assim o fizer vai ter que sofrer as consequências dos seus atos.  

É exatamente nesse sentido que decidiu o Supremo Tribunal Federal-STF ao julgar Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, conforme pode ser visto no trecho abaixo do acórdão:

II – A obrigatoriedade da vacinação a que se refere a legislação sanitária brasileira não pode contemplar quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, afigurando-se flagrantemente inconstitucional toda determinação legal, regulamentar ou administrativa no sentido de implementar a vacinação sem o expresso consentimento informado das pessoas. III – A previsão de vacinação obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada, afigura-se legítima, desde que as medidas às quais se sujeitam os refratários observem os critérios constantes da própria Lei 13.979/2020, especificamente nos incisos I, II, e III do § 2º do art. 3º, a saber, o direito à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e, ainda, ao “pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas”, bem como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a não ameaçar a integridade física e moral dos recalcitrantes. (Grifos Nossos)[6].

Desse modo, o STF adotou o entendimento aqui explanado: ninguém pode ser levado à força para se vacinar, mas quem não cumprir com a sua obrigação de receber a vacina pode vir a sofrer as consequências legais por meio da restrição de direitos e do recebimento de sanções, o que se aplica aos servidores públicos, tal como será visto no tópico a seguir.


2. Da obrigatoriedade de vacinação dos servidores públicos.

A Constituição Brasileira estende aos servidores públicos alguns direitos sociais dos trabalhadores em geral[7] ao prever o seguinte:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

(...)

Art. 39. § 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir. (Grifos Nossos).

Desse modo, por expressa disposição constitucional, todo servidor público tem o direito de exercer suas funções em um ambiente de trabalho seguro com normas de proteção à saúde, o que gera a obrigatoriedade de todo gestor público expedir normas para diminuir a propagação do Novo Coronavírus no ambiente de trabalho público, o que inclui a necessidade de vacinação de todos os servidores contra a COVID-19 como forma de evitar o contágio da doença, sendo por essa razão que o Conselho Nacional de Saúde recomenda a obrigatoriedade da vacinação de todas e todos[8].

Desta feita, um superior hierárquico não pode vacinar um servidor público de forma forçada, mas tem o dever-poder[9] de aplicar as sanções administrativas aos servidores que se recusam a receber a vacina, não se tratando a aplicação da referida sanção de um ato discricionário e sim de um ato vinculado[10].

A título de exemplo, a lei 8112/90, que regula os servidores públicos federais e normalmente é usada como paradigma para a feitura das legislações estaduais e municipais, prevê o seguinte: “Art. 116.  São deveres do servidor: IV - cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais”.

Assim, os servidores públicos devem cumprir, sob pena de sofrerem sanções administrativas, as ordens dos seus superiores que não estejam claramente destoando da lei. No caso da obrigatoriedade de vacinar, a ordem efetivamente tem previsão legal, conforme visto no tópico anterior.

Desse modo, um servidor público que recebe a determinação de se vacinar e assim não o faz deve vir a sofrer as penalidades de ordem administrativas, que são aquelas decorrente do “descumprimento de normas internas”[11], que no âmbito federal seria inicialmente uma advertência[12] e, em caso de reincidência, uma suspensão de até 90 dias[13].

No mais, tendo em vista a gravidade da pandemia do Novo Coronavírus, que no Brasil já matou mais de 470 mil pessoas[14], é defensável até mesmo a aplicação da pena de demissão, tendo em vista que a Lei 8112/90 prevê: “Art. 132.  A demissão será aplicada nos seguintes casos: VI - insubordinação grave em serviço”.  

Frise-se que não pretendemos com o entendimento adotado no presente artigo defender a perseguição de servidores públicos, mas cabe aos gestores públicos, sempre respeitando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade[15] e por meio de um processo administrativo disciplinar no qual seja assegurando o contraditório e a ampla defesa[16], aplicar as medidas cabíveis para punir os servidores que não se vacinarem, de modo a garantir a proteção da vida de todas as pessoas que estão sob a sua tutela, o que inclui todos os servidores que lhe são subordinados.


Conclusão

Estamos enfrentando uma pandemia de uma dimensão nunca vista pelos atuais membros da nossa sociedade. A principal arma para enfrentar a referida realidade já se sabe qual é: a vacinação de todas e todos.

Entretanto, infelizmente, algumas pessoas negam a eficácia da vacina e se recusam a receber a mesma.

Vimos que ninguém pode ser forçado a se vacinar, porém não podemos confundir a vacinação forçada com a vacinação obrigatória.

Assim, um superior hierárquico no âmbito da Administração Pública pode expedir determinação obrigando todos os seus subordinados a receberem a vacina contra o novo coronavírus na medida em que cada um for contemplado pelo Plano Nacional de Vacinação da COVID-19[17].  

Caso a determinação supra não seja cumprida, o gestor público não poderá vacinar o seu subordinado à força, mas deverá, por meio de um processo com todas as garantias legais e constitucionais, aplicar as sanções cabíveis.

Dessa forma, acreditamos que haverá a busca de se preservar o direito maior de todas as pessoas, incluindo as servidoras e os servidores públicos, qual seja: o direito à vida.


REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm. Acesso em: 06 de junho de 2020.

BRASIL, Lei  Lei 1261/04, de  31 de outubro de 1904. Torna obrigatorias, em toda a Republica, a vaccinação e a revaccinação contra a variola. Disponível em:  https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1900-1909/lei-1261-31-outubro-1904-584180-norma-pl.html. Acesso em: 06 de junho de 2020.

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BRASIL,  Lei 8112/90, de  11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11892.htm.  Acesso em: 06 de junho de 2020.

BRASIL, Lei 13.979/2020, de  06 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em:  https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020 242078735Acesso em: 06 de junho de 2020.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ª ed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Princípios do Direito Administrativo. 2ªed. São Paulo: Método, 2013.

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SITES CONSULTADOS

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https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/06/04/covid-19-coronavirus-casos-mortes-04-de-junho.htm


[1] Fonte: https://www.infoescola.com/saude/principais-epidemias-ocorridas-no-brasil/. Acesso em 06/06/201.

[2] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52042879. Acesso em:  06/06/2021.

[3] https://super.abril.com.br/historia/oswaldo-cruz-e-a-variola-a-revolta-da-vacina/. Acesso em 06/06/2021.

[4] CRFB88:  Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...). III - a dignidade da pessoa humana;

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros, 2020.p.114.

[6] Interior teor: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346093809&ext=.pdf. Acesso em 06/06/2021.

[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.p.777.

[8] Fonte: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1557-recomendacao-n-073-de-22-de-dezembro-de-2020. Acesso em:  06/06/2021.

[9] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.326.

[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p.856.

[11] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.242.

[12] Art. 129.  A advertência será aplicada por escrito, nos casos de violação de proibição constante do art. 117, incisos I a VIII e XIX, e de inobservância de dever funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifique imposição de penalidade mais grave

[13] Art. 130.  A suspensão será aplicada em caso de reincidência das faltas punidas com advertência e de violação das demais proibições que não tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão, não podendo exceder de 90 (noventa) dias.

[14] Fonte: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/06/04/covid-19-coronavirus-casos-mortes-04-de-junho.htm. Acesso em:  06/06/2021.

[15] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Princípios do Direito Administrativo. 2ªed. São Paulo: Método, 2013. p.125.

[16] FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 34ª ed. São Paulo: Atlas, 2020.p.835,

[17] https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/marco/23/plano-nacional-de-vacinacao-covid-19-de-2021.

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Sobre o autor
Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Capacitado em Gestão Pública pela FAVENI. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Ricardo Russell Brandão. Servidores públicos: eles são obrigados a se vacinar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6770, 13 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91049. Acesso em: 18 abr. 2024.

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