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(In)competência da Justiça Federal:

preliminar à atuação do Ministério Público Federal na tutela coletiva

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O presente artigo busca analisar a preliminar da incompetência da Justiça Federal, uma questão prejudicial que cerceia a atividade ministerial, buscando formas de delimitá-la e entendê-la.

1.0 Introdução

            A Constituição Federal de 1988 conferiu ao Ministério Público a autonomia necessária para, efetivamente, exercer seu papel perante a sociedade, defendendo a ordem jurídica, o Estado Democrático, o meio ambiente, os direitos difusos, coletivos e sociais.

            Buscando garantir tal mister, a Constituição Cidadã libertou as amarras que prendiam o Parquet ao Executivo, passando a proibi-lo, expressamente, no seu art. 129, IX [01], de exercer atividades de representação judicial e consultoria jurídica para entidades públicas, atribuições que passavam a ficar sob o encargo da Advocacia Geral da União.

            A promulgação da Carta Republicana revestiu o Ministério Público dos instrumentos e das garantias necessárias para se buscar o real respeito dos entes públicos e particulares aos direitos subjetivos dos cidadãos.

            Hoje, com a liberdade assegurada constitucionalmente e as armas que lhe propiciam o ordenamento jurídico pátrio, notadamente, a Lei de Ação Civil Pública (7.347/85), o Código de Defesa do Consumidor (8.078/90), a Lei de Improbidade Administrativa (8.429/92), os Termos de Ajustamento de Conduta e as Recomendações, previstas nas respectivas Leis Orgânicas (Lei Complementar 75/93 e Lei 8.625/93), o Ministério Público, na área da Tutela Coletiva, passa a lutar, dentre outros, na defesa dos interesses sociais relevantes, dos consumidores, das minorias étnicas, do meio ambiente e da cidadania.

            O Ministério Público, na defesa dos interesses transindividuais e da ordem democrática, pode atuar como parte, interpondo, por substituição processual, ações que visem resguardar interesses e direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, ou como custos legis, agindo como fiscal da lei, fiscalizando, por meio de pareceres, as ações que envolvam as matérias elencadas no art. 82 do CPC, podendo, também em tais casos, conforme o art. 499, § 2º, CPC, interpor recurso quando entender cabível.

            Porém, em meio a esta incessante batalha, há barreiras que obstruem o Ministério Público Federal de alcançar o seu objetivo, isto é, uma sentença de mérito favorável à sua pretensão: as preliminares de incompetência da Justiça Federal e de ilegitimidade ativa.

            Em diversas ações movidas pelo Ministério Público Federal, a parte contrária invoca em sua defesa tais questões, visando impedir que a Instituição atinja o seu intento.

            O presente artigo busca analisar a preliminar da incompetência da Justiça Federal, uma questão prejudicial que cerceia a atividade ministerial, buscando formas de delimitá-la e entendê-la.

            Enfocaremos o estudo, basicamente, sobre o art. 109, I, da Constituição Federal [02], por ser, em termos de competência da Justiça Federal, a situação que mais ocorre quando o Ministério Público Federal atua na defesa da Tutela Coletiva.


2.0 Jurisdição, Competência e Legitimidade: noções gerais

            Inicialmente, cumpre-nos delinearmos o alcance e significado do conceito de "competência" e "legitimidade", fundamentais para o desenvolvimento do presente trabalho.

            Athos Gusmão ensina-nos que competência é a "medida da jurisdição" [03]. Alexandre Câmara, por sua vez, a define como "conjunto de limites dentro dos quais cada órgão do Judiciário pode exercer legitimamente a função jurisdicional". [04] Para Humberto Theodoro, competência é "justamente o critério de distribuir entre vários órgãos judiciários as atribuições relativas ao desempenho da jurisdição" [05].

            Assim, para entendermos o conceito de competência, temos que saber qual o significado de jurisdição.

            Couture define jurisdição como uma função pública por meio da qual se determina o direito das partes, mediante decisões com autoridade da coisa julgada. [06]

            Dinamarco, por sua vez, aprofunda o estudo do tema e nos revela que jurisdição é "a função exercida pelo Estado através de agentes adequados (os juizes), com vista à solução imperativa de conflitos interindividuais ou supra-individuais e aos demais escopos do sistema processual" [07].

            Na visão do ilustre processualista paulista, três são os escopos do processo: o social, visando garantir a pacificação dos conflitos e a educação dos jurisdicionados, para lutarem por seus direitos e respeitarem os dos outros; o político, objetivando a estabilidade das instituições políticas e a efetiva participação dos cidadãos no destino do Estado; e, por fim, o jurídico, que visa realizar a vontade concreta do Direito, consagrando a Teoria Dualista do ordenamento jurídico de Chiovenda (que assevera que a ordem jurídica é dual, dividindo-se em dois planos distintos, o substancial ou material e o processual ou formal) [08].

            Assim, jurisdição é o Poder do Estado de dizer o direito no caso concreto, cujas decisões têm a aptidão de gerar coisa julgada (definitividade), por meio da qual o Estado substitui a vontade das partes, apresentando-lhes uma solução para suas pretensões.

            O Brasil é um Estado Federado, que tem como um dos fundamentos a descentralização das tomadas de decisão, por meio da repartição de competências entre seus Estados Membros, dotando-os de autonomia administrativa, política e funcional.

            Desta forma, o Judiciário, que é uma das funções do Poder do Estado Brasileiro, aplica, em relação a jurisdição, alguns dos postulados do Princípio Federativo, notadamente, a descentralização, dotando cada órgão judiciário de competência, conferindo-lhes autonomia e singularidade.

            Quando caracterizo a jurisdição como descentralizada, quero dizer que não há, no Brasil, um só Tribunal competente para exercer a atividade jurisdicional. Pelo contrário, o sistema judiciário brasileiro é amplo e diversificado, integrado por diversos órgãos da Justiça Comum (Estadual e Federal) e da Justiça Especializada (Trabalho, Eleitoral e Militar).

            Assim, é preciso esclarecer que a jurisdição é Una, embora seja descentralizada e divisível, isto é, o Brasil possui apenas uma jurisdição, que é fracionada entre os diversos órgãos que compõem o aparato judicial pátrio.

            Logo, a competência é a parcela de atuação jurisdicional legítima dos órgãos do Judiciário. Considerando que a jurisdição seja uma pizza, a competência é cada uma de suas fatias, de sabores diferentes, a fim de que cada órgão tenha o seu espaço delimitado, julgando matérias distintas, sem invadir no campo de atuação do outro.

            Apenas devemos lembrar que o termo "competência" não se restringe ao âmbito judicial, uma vez que se aplica em todas as esferas das funções do Poder Estatal: Executivo, Judiciário e Legislativo. Percebe-se que competência está comumente associada a Poder, pois, sob o prisma da Teoria Geral do Direito, é sua fonte de limitação [09], exemplo disso temos a competência legislativa (Poder Legislativo), competência dos atos administrativos (Poder Executivo) e competência jurisdicional (Poder Judiciário).

            E o que e vem a ser legitimidade?

            Legitimidade das partes ou ad causam, prevista no art.3º do CPC [10], é uma das condições da ação, necessária para que o juiz profira um julgamento de mérito. Alfredo Buzaid a define como "a pertinência subjetiva da ação" [11].

            Via de regra, o processo, para ser pertinente e conduzir a uma sentença de mérito – que, conforme Nelton dos Santos, é o seu desfecho natural [12] –, pressupõe a verificação de, conforme o art. 267, VI, do C.P.C [13]., três requisitos ou "condições da ação": legitimidade, interesse e possibilidade jurídica do pedido (ou da demanda), apesar desta última condição ser bastante criticada pela doutrina. [14]

            Todo processo trás em seu bojo a discussão de uma relação jurídica que o motivou, chamada res in iudicium deducta. Desta forma, em toda demanda, o autor na inicial afirma a existência de uma relação jurídica, passando a discuti-la. Somente os titulares dessa relação jurídica estão legitimados (autorizados) para questioná-la em juízo, quer seja no pólo ativo (autor) ou no passivo (réu).

            Assim, somente os condôminos (autores) estão habilitados para contestarem em juízo o aumento da taxa mensal em face do condomínio (réu) e somente aquele que sofreu o dano (autor) pode requerer em juízo indenização decorrente do prejuízo causado por um responsável (réu).

            O que essas pessoas dos exemplos citados têm em comum? A titularidade de uma relação jurídica afirmada em juízo, quer seja na qualidade de autor (pólo ativo) ou réu (pólo passivo), que os legitima a participar do processo e conduzi-lo ao seu desfecho natural (prolatação de uma sentença de mérito ou definitiva).

            Nos exemplos citados, todos podem acionar a jurisdição a fim de expor os fatos da maneira como entenderam que ocorreram, defender os direitos que compreendam possuírem e requererem as providências que julgarem cabíveis, com o escopo de obterem uma solução conferida pelo Estado-Juiz.

            Desta forma, podemos definir legitimidade ordinária como a titularidade ativa ou passiva de uma relação jurídica deduzida (ou questionada ou afirmada) em juízo, que conduz o processo ao seu desfecho natural (prolatação de uma sentença de mérito).

            Em outras palavras, a legitimidade ordinária é a possibilidade de se acionar a jurisdição para defender, em nome próprio, um direito de que se é titular.

            Se o interessado não provar sua legitimidade, o juiz prolatará tão-somente uma sentença terminativa, isto é, aquela que extingue o processo sem resolução do mérito, acarretando a chamada "extinção anômala do processo", não o conduzindo ao seu desfecho natural, que é o julgamento em definitivo do pedido.

            Importante não confundirmos legitimidade ad causam (capacidade para ser parte), acima explanada, intimamente ligada ao conceito de capacidade de direito (possibilidade de ser sujeito de direito, conforme lições de Direito Civil), que é uma das condições da ação, prevista no art. 3º do CPC, com legitimidade ad processum (ou capacidade para estar em juízo), que é um pressuposto processual de validade necessário para o regular desenvolvimento do processo, que se relaciona com a capacidade de fato (possibilidade de atuar como sujeito de direito).

            Tem legitimidade ad processum os pais, tutores ou curadores que representam ou assistem, respectivamente, os absoluta ou relativamente incapazes, na forma do Código Civil, bem como os arrolados no art. 12 do CPC.

            Desta forma, possui capacidade para estar em juízo aquele que tem capacidade civil plena, que é a soma da capacidade de gozo, (ou fruição ou direito – que se adquire ao se nascer com vida, cf. art.1º C.C.), com a capacidade de fato (ou exercício ou ação – que se adquire com a maioridade ou emancipação, cf. art.5º C.C.).

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            Cumpre-nos, explicar o conceito de legitimidade extraordinária. Como vimos acima, só se pode demandar, em nome próprio, por um direito próprio, regra que é confirmada pelo art. 6º do CPC [15], o qual, por sua vez, traz uma exceção em sua parte final.

            O referido dispositivo legal permite que se pleiteie, em nome próprio, um direito alheio, desde que haja autorização legal. Esta situação representa a legitimidade extraordinária.

            Desta forma, o próprio ordenamento jurídico define os casos em que pode ocorrer a legitimidade extraordinária, como por exemplo, no caso da atuação dos sindicatos (em nome próprio) na defesa dos interesses dos seus associados (direito alheio), previsto no art. 8º, III, da C.F [16], ou na atuação do MPF (em nome próprio) na defesa de interesses difusos (direito alheio), garantido no art. 127 da C.F [17].

            Como vimos anteriormente, a legitimação ordinária ocorre quando alguém demanda em nome próprio por um direito próprio, de que é titular, seja no pólo passivo ou ativo. Assim, há uma correspondência entre as partes do processo e os sujeitos da relação jurídica material discutida em juízo.

            Nesse sentido, Araken de Assis [18] pontua que " a regra geral da legitimidade somente poderia residir na correspondência dos figurantes do processo com os sujeitos da lide".

            Por outro lado, a legitimação extraordinária (ou legitimação anômala ou substituição processual) não traduz, necessariamente, esta simetria entre partes processuais e os sujeitos da relação jurídica material, pois, nesta legitimação excepcional aciona-se o Judiciário para defender, em nome próprio, interesse alheio.

            Utilizei no parágrafo anterior o termo "necessariamente", pois é possível que, eventualmente, na legitimidade extraordinária, tal simetria aconteça, mesmo que não seja plenamente, quando o objeto litigioso também diga respeito ao legitimado extraordinário, hipótese em que ele acumulará as situações jurídicas de legitimado ordinário (defende direito também seu) e extraordinário (defende direito também de outrem), como p.ex., acontece com os condôminos, na ação reivindicatória do bem, art. 1.314 do C.C. [19]

            Assim, Fredie Didier, em didática síntese, ensina-nos que "na legitimação extraordinária confere-se a alguém o direito de conduzir processo que versa sobre direito do qual não é titular ou do qual não é titular exclusivo". [20]

            Desta forma, uma mesma pessoa pode ser, simultaneamente, legitimado ordinário e extraordinário, quando defende em juízo um direito que é seu (próprio) mas também de outrem (alheio), como, p.ex., no caso dos credores solidários, que vão a juízo cobrar uma dívida que é sua, mas também de outrem.

            Cumpre, neste momento, destacar que a doutrina majoritária considera sinônimos as expressões "legitimidade extraordinária" e "substituição processual". Há, por sua vez, defensores de um sentido mais restrito de "substituição processual", que seria uma espécie do gênero da "legitimidade extraordinária" e existiria quando houvesse uma plena substituição do legitimado ordinário pelo extraordinário, nos casos de legitimação ordinária autônoma e exclusiva (quando só o legitimado extraordinário pode ir a juízo, mas não o legitimado ordinário [21]) ou autônoma e concorrente, quando o legitimado extraordinário atua em razão da omissão do legitimado ordinário, que não participou do processo como litisconsorte.

            Em síntese, Alexandre Câmara [22], defensor desta diferença, sustenta que "só ocorre substituição processual quando alguém estiver em juízo em nome próprio, em lugar do (substituindo) legitimado ordinário". Assim, se o legitimado ordinário participa do processo como litisconsórcio, ao lado do extraordinário, não se teria, tecnicamente, substituição processual.

            É preciso destacar que Nelson Nery Jr., a partir da doutrina alemã, sustenta que a legitimação coletiva não é ordinária nem extraordinária, mas sim uma legitimação autônoma para a condução do processo (selbstandige ProzeBfuhrungsbefugnis), afirmando que "a dicotomia clássica legitimação ordinária-extraordinária só tem cabimento para a explicação dos fenômenos envolvendo direito individual. Quando a lei legitima alguma entidade a defender direito não individual (coletivo ou difuso), o legitimado não estará defendendo direito alheio em nome próprio, porque não se pode identificar o titular do direito".

            Porém, em que pese a importância desse rigor técnico e as divergências doutrinárias, por defendermos a necessidade da desburocratização do ensino, nos filiamos aos doutrinadores que consideram como sinônimos as expressões "legitimidade extraordinária" e "substituição processual", razão pela qual o Ministério Público Federal, quando atua no âmbito da Tutela Coletiva, age por substituição processual (ou, simplesmente, legitimação extraordinária).


3.0 Competência da Justiça Federal: para conhecer a ação e para processá-la e julgá-la

            O art. 109 da Carta Magna enumera as diversas matérias de competência da Justiça Federal, tanto na área civil quanto na penal. O caput do referido artigo utiliza a expressão "compete processar e julgar", delimitando as causas que o Juiz Federal está habilitado a processar (que significa instruir, isto é, propiciar o amplo exercício do contraditório e da produção de provas) e julgar (que representa a prolatação de uma sentença, com a possibilidade de formação do seu convencimento sobre a matéria analisada, caso ela seja de mérito).

            Consoante o disposto no art. 109, I, da Carta Magna, são da competência da Justiça Federal processar e julgar as causas nas quais a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes.

            Cumpre esclarecer que o termo "entidade autárquica" é gênero e possui um amplo alcance, incluindo em seu conceito as fundações públicas federais (chamadas por alguns doutrinadores de fundações autárquicas [23]), as universidades públicas federais (UFC, UFPR, etc), as agências reguladoras (ANEEL, ANP, etc) e os conselhos reguladores de profissão [24] (CREA, CREMEC, OAB, etc).

            É preciso estar atento para as exceções trazidas na parte final do próprio art. 109, I, CF, dentre elas as causas sujeitas a Justiça Eleitoral e do Trabalho, e as envolvendo acidentes do trabalho e falência (a esse respeito conferir Súmula 270 STJ [25]), que tramitarão na Justiça Estadual.

            Ressalte-se que o supracitado artigo fala somente de empresa pública federal (CORREIOS, CEF, etc), assim as sociedades de economia mista (PETROBRÁS, BANCO DO BRASIL, etc) não possuem foro privilegiado, isto é, as causas envolvendo estas entidades serão processadas e julgadas na Justiça Estadual, que detém competência residual.

            Verifica-se, assim, que, na seara civil, ressalvadas algumas exceções estabelecidas pela própria Carta Magna, o critério definidor da competência da Justiça Federal é ratione personae, isto é, leva-se em consideração a natureza dos entes envolvidos na relação processual, sendo, então, uma competência objetiva em razão da pessoa.

            Cumpre esclarecer que a competência da Justiça Federal, na seara cível [26], não ocorre somente em relação à pessoa, podendo se verificar também em relação à matéria (art.109, III, V-A, X e XI) [27] e funcional (art. 109, X). Verifica-se que o art. 109, X, traz em seu bojo tanto competência funcional como em razão da matéria. [28]

            Contudo, no presente trabalho desenvolveremos o critério objetivo em relação à pessoa, previsto no art.109, I, C.F., por ser o mais utilizado quando da atuação do MPF na Tutela Coletiva.

            Desta forma, a competência da Justiça Federal é constitucional, sendo, portanto taxativa, só admitindo modificação em virtude de, no mínimo, processo de Emenda Constitucional, e possui natureza absoluta, ressalvados os casos de competência territorial, que são relativas e admitem prorrogação.

            É preciso frisar que a competência para processar e julgar do Juiz Federal pressupõe um juízo prévio positivo emanado quando do exercício da sua competência para conhecer a causa. Ou seja, primeiro o magistrado conhece a lide e, somente se ele reconhecer a sua competência, é que ele passará a processá-la e julgá-la. Este é o Princípio da Competência sobre a Competência (chamado pelos doutrinadores alemães de Kompetenz Kompetenz), através da qual todo juiz tem competência para examinar a sua própria competência, a fim de se declarar competente ou incompetente para processar e julgar a demanda.

            A esse respeito, Marinoni, precisamente, ensina-nos que:

            De acordo com esse princípio (chamado, pelos alemães, de Kompetenz-Kompetenz), todo juiz tem competência para apreciar sua competência para examinar determinada causa. Trata-se de decorrência inevitável da cláusula que outorga ao magistrado da causa o poder de verificar a satisfação dos pressupostos processuais. Se a competência é um destes pressupostos, é natural que o juiz da causa tenha o poder de decidir (ao menos em primeira análise) sobre sua competência. [...] Dessa forma, as questões relativas à competência do órgão jurisdicional para apreciar certa questão devem ser levadas a ele diretamente, competindo-lhe avaliar, em primeiro plano, a argüição promovida. [29] (negrito e grifo nosso).

            Logo, com base nesses conceitos, primeiro o juiz federal conhecerá o processo que lhe foi distribuído, analisando os fatos, os fundamentos jurídicos e o pedido constantes na inicial, a fim de que ele reconheça a existência de algumas das situações elencadas ao longo do art.109 da C.F., que seja capaz de firmar a sua competência para processar e julgar a causa.

            O fato do magistrado conhecer a ação não implica, necessariamente, que ele irá processá-la e julgá-la, que se trata de um segundo estágio. Somente se o Juiz Federal, durante esta primeira fase (competência para conhecer), verificar a existência de alguma das situações previstas ao longo do art. 109 da Carta Magna é que passará para a segunda fase (competência para processar e julgar a lide).

            Conclui-se, então, que a competência para conhecer a ação é aquela através da qual o Juiz Federal tem o primeiro contato com a demanda após a sua distribuição, conhecendo os fatos, os fundamentos jurídicos e o pedido narrados na inicial, a fim de reconhecer a sua adequação a algum dos incisos do art.109 da CF, que seja capaz de firmar a sua competência para processar e julgar a causa.

            Em relação ao art. 109, I, somente após o conhecimento da ação e a verificação da existência de algum interesse jurídico da União, entidade autárquica ou empresa pública federal é que o magistrado será competente para processar e julgar a lide, isto é, instruir a demanda, propiciando o amplo exercício do contraditório e da produção de provas, visando a formação do seu convencimento para prolatar uma sentença de mérito.

            Visto tal distinção, podemos afirmar que o Juiz Federal é competente para conhecer toda ação proposta pelo Ministério Público Federal. Note que o termo utilizado foi "competência para conhecer" e não "competência para processar e julgar".

            Existe uma inquietude doutrinária para saber se o simples fato do MPF ser parte na ação, como na interposição de uma Ação Civil Pública, acarreta, de per si, a competência da Justiça Federal para processar e julgar a demanda.

            A esse respeito, Fredie Didier Jr. arremata:

            [...] não se pode equiparar o MPF à União ou a um dos seus entes, de modo que a sua simples presença na relação jurídica processual determinasse a competência, em razão da pessoa, da Justiça Federal, quer porque a sua atuação é desvinculada da dos entes políticos, quer porque o rol do art. 109 da Cf/88 é exaustivo e nele não há referência ao Ministério Público Federal. [30]

            É preciso destacar que, conforme art. 127 da CF, o Ministério Público é instituição permanente e essencial a função jurisdicional do Estado, dotado de autonomia funcional e administrativa, razão pela qual o MPF, um dos ramos do Ministério Público, não se equipara à União ou a qualquer autarquia ou empresa pública federal.

            Desta forma, a simples presença do MPF no pólo ativo da demanda não tem o condão de firmar a competência da Justiça Federal para processar e julgar a lide.

            Porém, a despeito de não estar relacionado no art.109, I, da CF, pode-se afirmar que o MPF tem como foro natural a Justiça Federal, que é, implicitamente, reconhecida pela própria Constituição Federal, em seus arts. 104, § único, II [31] e 107, I [32], ao disporem, respectivamente, que um terço dos assentos do Superior Tribunal de Justiça e um quinto das vagas dos Tribunais Regionais Federais serão preenchidas por advogados e membros do Ministério Público Federal, com mais de 10 anos de carreira.

            Verifica-se, desta forma, a afinidade, estabelecida pela própria Carta Magna, entre o Parquet Federal e a Justiça Federal, a ponto de reservar aos membros do MPF vaga para a composição do seu órgão de 2º grau (TRF) e 3º grau (STJ).

            O fundamento de tal garantia, chamada quinto constitucional, é oxigenar os Tribunais da Justiça Brasileira, compondo-os de três classes distintas: magistratura, advocacia e Ministério Público, situação que se repete em relação aos Tribunais de Justiça (art.94, C.F. – no qual um quinto das vagas destinam-se aos advogados e membros do Ministério Público do respectivo Estado), no Tribunal Regional do Trabalho (art. 115,I, CF. - no qual um quinto das vagas destinam-se aos advogados e membros do Ministério Público do Trabalho), no Tribunal Superior do Trabalho (art. 111-A, I, CF – no qual um quinto das vagas também se destinam aos advogados e membros do Ministério Público do Trabalho) e no Superior Tribunal Militar (art. 123, II, C.F. – no qual dois ministros são escolhidos dentre juízes auditores e membros do Ministério Público da Justiça Militar).

            Esta vinculação entre a composição de cada Tribunal da Justiça Brasileira com o respectivo ramo do Ministério Público decorre em virtude do seu foro natural de atuação, o que faz com que os membros do Parquet mantenham um constante contado com a respectiva jurisdição, especializando-se nas matérias de competência dos juízes vinculados ao respectivo Tribunal, a ponto de, atendidos os requisitos e havendo a nomeação, ingressem na magistratura.

            Assim, creio não restar dúvida que, implicitamente, a Constituição Federal determinou que o foro natural do Ministério Público Federal é a Justiça Federal; o do Ministério Público dos Estados, a Justiça Estadual; o do Ministério Público do Trabalho, a Justiça do Trabalho e o do Ministério Público Militar, a Justiça Militar.

            Essa constatação é observada pelo Juiz do Tribunal Regional Federal da 5º Região, Dr. Ridalvo Costa, que assim prolatou seu voto vencedor no seguinte acórdão:

            "A delimitação do campo de atuação de cada um dos Ministérios Públicos consagrados no sistema jurídico brasileiro tem reflexos na distribuição de competência entre os órgãos encarregados da função jurisdicional: o Ministério Público Federal, enquanto órgão integrante da União, tem como foro natural a Justiça Federal; o Ministério Estadual, a Justiça Estadual" (TRF 5º Região, Agravo de Instrumento nº 56633-CE)

            Feitas essas considerações, sendo o MPF parte em uma ação, principalmente na qualidade de autor, quando da sua atuação na Tutela Coletiva, o Juiz Federal é competente para dela conhecer, em virtude deste ser seu foro natural.

            Assim, o Juiz Federal, ao ter o primeiro contato com a ação ajuizada pelo Parquet, conhecerá os fatos, os fundamentos jurídicos e o pedido narrados na inicial e verificará se estes se adequam a algum dos dispositivos previstos no art. 109 da C.F, a fim de declarar-se competente para processar e julgar a causa.

            No tocante ao art. 109, I, da CF, o juiz federal analisará se existe o interesse jurídico da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, com o escopo de firmar ou não, por meio de um juízo positivo ou negativo, a sua competência para processar e julgar a lide.

            Cumpre ressaltar que esse entendimento possui guarita na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (S.T.J.), conforme trecho de decisão do Min. Humberto Gomes de Barros, nos seguintes termos:

            PROCESSUAL - MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PARTE - COMPETENCIA - JUSTIÇA FEDERAL.

            Se o Ministério Público Federal é parte, a Justiça Federal é competente para conhecer do processo.

            (CC 4927/DF, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, 1º Seção, julgado em 14.09.1993, DJ 04.10.1993 p. 20482)

            Porém, como ressaltamos, o fato do Juiz Federal ser competente para conhecer o processo ajuizado pelo Parquet Federal não significa, necessariamente, que o magistrado terá competência para processá-lo e julgá-lo, o que pressupõe, no caso do art. 109, I, da C.F., a existência de interesse jurídico da União, entidade autárquica ou empresa pública federal.

            Ressalte-se que quando defendemos que o seu foro natural é a Justiça Federal, não significa que o MPF não possa atuar na Justiça Estadual. O Parquet Federal, consoante expressa disposição do art. 5º, §5º da Lei de Ação Civil Pública [33], está autorizado a atuar na Justiça Local, ao lado do Ministério Público Estadual, em litisconsorte facultativo, na defesa conjunta dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

            Ora, ex vi legis, trata-se de um litisconsorte unitário facultativo ativo, o que pressupõe que ambos sejam co-legitimados para ingressarem em juízo, sozinho, discutindo a mesma relação jurídica material, isto é, a defesa dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos.

            Nesse sentido, convém transcrever as elucidativas palavras de Fredie Didier:

            A possibilidade de litisconsórcio facultativo entre Ministérios Públicos para a propositura de Ação Civil Pública (art.5º, §5º, Lei Federal n.7.347/85) revela nitidamente a possibilidade de o Ministério Público poder demandar em Justiça que não lhe seria correspondente. Esse litisconsorte é facultativo e unitário; como tal, exige que cada um dos litisconsortes, sozinho, tenha legitimidade para demandar o mesmo pedido, fato que por si só já demonstra o acerto da tese ora defendida. [34]

            Assim, a delimitação do raio de atuação de cada ramo do Ministério Público deve ser visto sob o ângulo de racionalização dos serviços prestados à comunidade, propiciando a especialização dos membros da Instituição, com vistas a maximizar a qualidade da tutela ministerial.

            Desta feita, a divisão das atribuições de cada um de seus órgãos não pode ser encarada de forma estanque, imutável, pois não é um fim em si mesmo, mas uma forma de propiciar uma adequada e efetiva atuação do Ministério Público, realizando as missões que lhe foram reservadas pela Constituição Federal de 1988.

            O próprio art. 104, § único, II, da CF, acima transcrito, garante a participação de membros do Ministério Público dos Estados na composição do STJ, órgão de cúpula da Justiça Federal, o que nos permite concluir que a própria idéia de "foro natural" não pode ser vista de uma forma absoluta, mas sim de uma forma relativa, visando atingir os preceitos que regem e harmonizam o ordenamento jurídico pátrio.

            Desta forma, a própria Carta Magna, sabiamente, estabeleceu uma vinculação relativa implícita entre os ramos do Ministério Público e a respectiva Justiça em que constantemente demandam, criando a idéia do "foro natural", mas não estabeleceu explicita e taxativamente que cada membro do MP só poderia atuar em determinada Justiça Comum (Federal e Estadual) ou Especializada (Trabalho, Eleitoral e Militar).

            Por esta razão, eventualmente e na busca da defesa da coletividade, que é o fim do Ministério Público, em situações de emergência e da possibilidade de acarretar danos irreparáveis ou de difícil reparação aos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, determinado ramo da Instituição pode atuar em um foro que não é, naturalmente, o seu.

            Defendemos esta tese, pois é preciso ressaltar que o função do MPF não é defender interesse jurídico da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, uma vez que, para tais atribuições, existe a Advocacia Geral da União (A.G.U.), criada pela própria Carta Magna de 1988, que em seu art. 129, IX, desvinculou o Ministério Público da representação judicial e consultoria jurídica do Executivo.

            Desta forma, devemos perceber que a função precípua do Ministério Público é defender os direitos essencialmente coletivos (interesses difusos e coletivos) e os acidentalmente coletivos (individuais homogêneos), velando pela defesa da ordem jurídica e do Estado Democrático.

            O fato do MPF, ao ingressar com uma ação, ter que demonstrar em juízo a presença de interesse jurídico de qualquer das entidades previstas no art. 109, I, CF, tem o condão de fixar a competência da justiça federal para processar e julgar a lide e não a sua legitimidade ad causam, tanto é que, caso o juiz federal não reconheça tal interesse, ele remete os autos a Justiça Estadual, que detém a competência residual, foro em que passará a ser processada e julgada a demanda.

            Achar que o MPF só pode demandar em juízo visando guarnecer interesse da União ou qualquer de suas entidades autárquicas ou empresas públicas é confundir as atribuições do Parquet com as da A.G.U., as quais a própria Carta Política, em seus arts. 127 e 137, cuidou de claramente delinear, libertando o MP do manto do Executivo, a fim de que ele pudesse, com efetiva independência e autonomia, defender os interesses coletivos que foram assegurados à sociedade brasileira com o processo de redemocratização do país.

            Note-se que a possibilidade do MP atuar em um foro que não lhe é correspondente pode se aplicar em qualquer dos seus ramos e não somente no MPF, porém seus membros devem sempre atuar pautado na razoabilidade e bom-senso, e somente em situações de emergência e de manifesto dano iminente aos direitos coletivos, pois seria dessarazoado que um Procurador da República, p.ex., impetrasse a maioria das A.C.P´s na Justiça Local, pois, desta forma, estaria violando o próprio preceito de "foro natural" estabelecido pela CF/88 que, no caso, é a Justiça Federal.

            Entendo ser, com base em tais premissas, que a Lei de ACP, em seu art.5º, §5º, permite a atuação conjunta do Ministério Público Federal e Estadual, na luta pelos interesses transindividuais indisponíveis.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LA BRADBURY, Leonardo Cacau Santos. (In)competência da Justiça Federal:: preliminar à atuação do Ministério Público Federal na tutela coletiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1229, 12 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9139. Acesso em: 16 abr. 2024.

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