Capa da publicação Araguaia e Herzog: anistia e Corte Interamericana de Direitos Humanos
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Repercussão da Lei da Anistia no Brasil e análise dos julgados Guerrilha do Araguaia e Herzog pela Corte Interamericana de Direitos Humanos

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O presente artigo tem por intuito analisar dois casos pragmáticos envolvendo o contexto da ditadura militar no Brasil: o caso Gomes Lund e outros versus Brasil e o caso Herzog.

Resumo: O presente artigo científico tem por intuito analisar dois casos pragmáticos envolvendo o contexto da ditadura militar no Brasil: o caso Gomes Lund e outros versus Brasil e o caso Herzog. A justificativa para o estudo se deve à promulgação da Lei da Anistia no ano de 1979 (Lei 6.683/79), importante marco na história brasileira, mas óbice a efetiva realização do estabelecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nas sentenças acerca dos casos supramencionados. Com isso, analisa-se o desvio da plena persecução penal dos autores das violações dos direitos humanos na ditadura de 1964, haja vista a falta de investigação ocasionada, entre outros fatores, pelos efeitos da Lei. Além disso, o descumprimento do Brasil com a justiça de transição, os direitos à verdade e à memória, viola os Tratados assumidos na seara internacional, sendo motivo de insegurança para a sociedade. Esta análise foi feita a partir do contexto histórico e jurídico, como o estudo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 153, protocolada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Assim, a problemática norteadora e o objetivo geral da presente pesquisa se encontram nas consequências jurídicas geradas pela Lei da Anistia em relação aos casos examinados. O método utilizado para isso foi o bibliográfico, histórico, a pesquisa documental, o uso de livros, artigos, obras doutrinárias e legislativas. Desse modo, foi possível perceber com este trabalho que a revisão da Lei da Anistia é necessária, porquanto afeta a segurança jurídica do Estado Democrático de Direito e, diante das duas condenações perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, viola os princípios e tratados que versam sobre direitos humanos.

Palavras-chave: Direitos humanos. Lei da Anistia. Ditadura militar.


Introdução

O Brasil, a partir do ano de 1964, presenciou os eventos da ditadura militar que perdurou até o ano de 1985. A partir deste cenário, em 1979 foi promulgada a Lei da Anistia (Lei 1.969/79), marco relevante para o momento de transição política que passava o país nesta fase. Contudo, sabe-se que tal Lei, de forma abrangente, anistiou a todos que cometeram crimes políticos ou conexos a estes, desde os exilados políticos aos militares e agentes estatais.

Diante disso, o presente estudo busca analisar dois casos de expressividade que ocorreram no supramencionado período histórico: o caso Gomes Lund e outros versus Brasil e o caso Herzog. Ambos os julgados ocorreram perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Brasil e se posicionou contrária a Lei da Anistia. Com isso, os crimes insolucionáveis e protegidos pela referida Lei, motivam consequências jurídicas no plano jurídico do Estado brasileiro e na plena conquista e efetividade do Estado Democrático de Direito.

Ademais, cumpre destacar que o objetivo do presente artigo é demonstrar as consequências jurídicas ocasionadas pela Lei da Anistia e pelas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal – STF e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH. A primeira delas se deu em decorrência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 153 que declarou válida a Lei da Anistia e as decisões da CIDH que colocam em contraponto a vigência da Lei supracitada.

Os objetivos específicos são o de analisar o viés da justiça de transição e da responsabilização do Estado pelos crimes da Ditadura Militar, apresentar os conflitos entre o direito pátrio e o internacional e elucidar, por fim, sobre a real efetividade da Lei.

A metodologia de pesquisa adotada foi bibliográfica, o método de procedimento o histórico, destaca-se, a pesquisa documental, o uso de livros, artigos, monografias e obras doutrinárias e o comparativo e o método de abordagem o indutivo.


1. Contexto histórico da ditadura militar de 1964

A ditadura militar no Brasil foi um período compreendido entre os anos de 1964 - 1985, marcada predominantemente por governos militares e pelas medidas repressivas que ocasionaram, a censura aos meios de comunicação, torturas, desaparecimentos e mortes. (COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS, 2007, p. 18)

O período da Ditadura Militar brasileira foi instaurado durante o governo de João Goulart no ano de 1964, presidente que foi deposto por um golpe de Estado, após um cenário de instabilidades em seu governo (SILVA; WANDERLEY JUNIOR, 2015, p. 614).

Constituída para eliminar a subversão interna de esquerda, restabelecer a “ordem” em seu território, e estruturada de forma a disseminar o medo e desmobilizar a sociedade, a ditadura brasileira classificava de inimigos do Estado todos aqueles que se opunham às suas ideias. (MEZAROBBA, 2010, p. 7)

Cabe destacar que, conforme Silva Filho, o contexto histórico mundial em que se deu o golpe militar no Brasil foi marcado pela Guerra Fria entre os Estados Unidos da América e a URSS e diversas eclosões de outros golpes com similar conjuntura pela América Latina. Ambos os momentos foram importantes para os desdobramentos que ocorreram no Brasil no período.

Assim, esse momento foi dividido pelos doutrinadores em 3 fases, sendo que, a primeira fase concerne ao golpe propriamente dito, no ano de 1964 e o Ato Insitucional Nº 1 - AI-1, no mesmo ano. Ainda, menciona a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (2007) que esse foi o primeiro ato repressivo e a consolidação do regime imposto pelos militares. Assim, outras ações repressivas ocorreram como a cassação de mandatos, suspensão dos direitos políticos, demissão do serviço público e prisão de muitos brasileiros.

No primeiro ciclo punitivo, cuja lista inicial continha uma centena de nomes, entre eles os do ex-presidente João Goulart, e de políticos como Leonel Brizola, Miguel Arraes e Celso Furtado, foram cassados 2.985 cidadãos brasileiros. Além disso, logo após o golpe, navios foram transformados em presídios, vinte generais e 102 oficiais foram rapidamente transferidos para a reserva, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) foi fechado, todas as demais entidades de coordenação sindical e centenas de sindicatos, colocados sob intervenção, e as Ligas Camponesas foram extintas. Também deixaram de funcionar a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Só nos primeiros meses de arbítrio estima-se que 50 mil pessoas tenham sido detidas. (MEZAROBBA, 2010, p. 8)

Ressalta-se ainda a instituição do AI-2 que estabeleceu eleições indiretas e dissolveu os partidos políticos, bem como, a continuidade de prisões políticas. Vale identificar ainda o AI-3, em 1966, aumentou o poder das Assembleias Legislativas, conforme Mezarobba (2010), que além de nomear os governadores de Estado, também passaram a indicar os prefeitos das capitais e de outras cidades classificadas como de “segurança nacional”.

A segunda fase se inicia com o Ato Institucional Nº 5 em 1968, o mais duro dos atos institucionais, que concentrou poderes na mão do Presidente da República e suspendeu direitos e garantias individuais como o habeas corpus. Além disso, a tortura contra opositores do governo e a censura aos meios de comunicação se fortaleceram nesta fase.

A terceira fase deu início em 1974, com a posse do General Ernesto Geisel anunciando um projeto de abertura “gradual” e “segura”. Instaurava-se com ele, a fase de distensão que pôs fim ao período da ditadura militar no Brasil.

O desgaste político do governo Geisel (1974/1979), já pela longevidade do arbítrio e pelos claros sinais de reversão econômica, especialmente pela crise do petróleo, permitiu o retorno a cena da ala moderada dos militares. A tônica do governo era uma “distensão lenta, gradual e segura” da ditadura brasileira em direção a um governo democrático. Uma das posturas adotas pelo governo foi de abrandar, sem extinguir, a censura aos jornais. O cerceamento às liberdades individuais já era uma realidade conhecida para a sociedade brasileira. (CARVALHO, CRUZ, 2018, p. 697)

Adiante, com o governo de João Figueiredo, iniciou-se a abertura prometida com o governo de seu antecessor. Dois fatos obtidos com a mencionada abertura política merecem destaque, primeiramente a Emenda Constitucional nº 11 que revogou o AI-5 no ano de 1978 e após, em 1979 a promulgação da Lei 6.683/79 (Lei da Anistia).

Conforme Silva e Wanderley Júnior (2015), o Presidente Figueiredo propôs, portanto, ao Congresso a criação de uma lei de anistia ampla, geral e irrestrita, afirmando que a Revolução de 1964 havia cumprido seu papel na história.

Em junho de 1979 um projeto de lei, nesse sentido, foi enviado ao Congresso pelo então presidente da República, general João Baptista Figueiredo. Durante sua tramitação no Parlamento praticamente não houve troca de idéias com a sociedade, tampouco com os potenciais beneficiários da legislação, embora os Comitês Brasileiros de Anistia estivessem mobilizados pelo fim das torturas e a elucidação dos casos de desaparecimento e não admitissem a hipótese de que a lei pudesse beneficiar os “algozes” das vítimas do regime. (MEZAROBBA, 2010, p. 10)

A Lei de Anistia foi colocada como condição da abertura política. Neste sentido, a anistia funcionaria como uma renúncia do Estado ao jus puniendi, estando dentre os casos em que o Estado decide não punir estão a anistia, a graça, o indulto, ou mesmo o perdão. O Estado tem o poder de rever em certos casos, a aplicação da sanção penal, podendo desistir de punir, por considerar que não há interesse social na punibilidade (SILVA; WANDERLEY JÚNIOR, 2015, p. 617):

Como exemplo do engajamento da sociedade civil, em 1975, o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbini, inicia uma mobilização nacional pela anistia ampla, geral e irrestrita, tendo como foco os perseguidos políticos e opositores ao Regime Militar. Nos anos que se seguiram, juntamente com o Comitê Brasileiro pela Anistia, foram organizados diversos encontros, passeatas e manifestações que contavam com o apoio de setores da Igreja católica e de representantes de outras religiões, associações de direitos civis e instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), culminando com o Congresso Nacional pela Anistia, realizado em São Paulo em 1978, no qual as representações sociais discutiram e elaboraram suas propostas para uma lei. (SILVA; WANDERLEY JÚNIOR, 2015, p. 618)

Com isso, houve uma pressão social no momento histórico da criação da Lei da Anistia, contudo, os anseios dessa sociedade não foram completamente atendidos e principalmente, dos familiares e das vítimas, pois, a Lei da Anistia também beneficiou os agentes militares.

Conforme Baggio (p. 261, 2011), em 1984, o movimento “Diretas Já” levou a sociedade brasileira às ruas com o pedido do fim das eleições indiretas que ainda vigoravam no país. No entanto, as eleições só ocorreriam em 1989. Ainda assim, o fim do regime militar tem como momento limítrofe a eleição de Tancredo Neves, mesmo que de forma indireta pelo Colégio Eleitoral, com a posse de seu vice José Sarney, depois do seu falecimento.

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Assim, é basilar o entendimento do contexto histórico da ditadura e seus acontecimentos, como a forma que o regime atuou no país dentro dos anos que se seguiram, para entender os impactos gerados na sociedade e na esfera política interna e de caráter internacional, mesmo após a construção de um domínio democrático.

Após a exposição do contexto da ditadura militar de 1964 no Brasil e dos desdobramentos da repressão contida nesta fase, passa-se a análise dos dois casos trabalhados neste estudo, sendo eles: a Guerrilha do Araguaia e o Caso Herzog.


2. Análise do caso Gomes Lund e outros versus Brasil e o caso Herzog

2.1. Caso Guerrilha do Araguaia (Gomes Lund e outros versus Brasil)

A princípio examina-se o Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (a Guerrilha do Araguaia). A Guerrilha do Araguaia foi um movimento de oposição ao Regime Militar que começou a desenvolver-se em 1966 no sul do Pará, sob a direção do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O caso da Guerrilha do Araguaia foi uma das condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A mobilização na região começou no ano de 1966, com a busca de um local afastado no país que servisse de abrigo para refugiados políticos e para que fosse articulado uma resistência rural à ditadura militar, conforme a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (2010, p.195) “boa parte desses homens e mulheres [...] era composta de lideranças estudantis que haviam participado de importantes manifestações contra a ditadura militar, nas grandes cidades do país, entre 1967 e 1969”.

No final da década de 1960, os órgãos de segurança obtiveram informações sobre a formação da guerrilha na região e com isso iniciaram campanhas militares de combate à resistência. Diante disso, com diversas operações efetuadas, foram feitos prisioneiros e pelas torturas as Forças Armadas conseguiram mais informações, bem como, com agentes infiltrados na região. Conforme análise histórica, destaca-se a supremacia do contingente militar na região, já que a guerrilha era composta por menos de 100 (cem) indivíduos, enquanto as operações eram compostas por até 4.000 (quatro mil) agentes militares. Pelos diversos relatos de jornalistas e sobreviventes, é possível obter um vislumbre do que ocorria na região do Araguaia em termos de ataques arbitrários.

O último registro que se tem dos guerrilheiros do PCdoB é de 1974, sendo que os poucos que haviam restado estavam sem mantimentos, sem munição, doentes e fragilizados e foram executados após serem presos. De acordo com Affonso, Krsticevic, (2011, p. 362. e 363):

Notícias extraoficiais de militares envolvidos nos crimes desafiam a Justiça, contando que mais da metade dos 70 desaparecidos estiveram sob a custódia do Estado, detidos nas bases militares por períodos que variam de dias a meses antes de serem executados.

Acontece que a Lei da Anistia de 1979 absolveu todos os que cometeram crimes políticos ou conexos a estes, ou seja, a grande questão é que a partir do texto da Lei estavam perdoados também os agentes do Estado brasileiro que cometeram os crimes ao tempo da Ditadura no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. O art. 1º da Lei 6.683/1979 diz que é concedida anistia a todos, inclusive aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais.

Apesar das dificuldades de responsabilização interpostas pela Lei da Anistia, diante das novas evidências dos desaparecimentos forçados obtidas pelos familiares, uma Ação Civil (1ª Vara Federal do Distrito Federal - autos nº 82.00.24682-5) foi ajuizada perante a Justiça Federal em 1982. Conforme Affonso, Krsticevic, (2011, p. 363) “a ação cobrava informações sobre o paradeiro e as circunstâncias de seus desaparecimentos, assim como a localização dos mesmos e, no caso de que não estivessem mais vivos, a determinação da identificação e entrega dos restos mortais [...]”. A ação interposta pelos familiares dos desaparecidos perdurou mais de 10 anos sem que houvesse fim e na falta de até mesmo diligências os autores procuraram a seara internacional para uma resposta aos seus anseios.

2.2. Caso Herzog

Após a análise do caso da Guerrilha do Araguaia e do resultado que se deu perante os juízos internacionais, sucede o exame do segundo caso em estudo: o Caso Herzog, que também possui papel de relevância para o entendimento da problemática.

Conforme Pacheco, Rios (2018, p. 7. e 8), Vladimir Herzog foi um jornalista iugoslavo, naturalizado brasileiro que trabalhava no jornal O Estado de S.Paulo. Após casar-se em 1964, foi para Londres por conta do golpe militar, onde trabalhou na BBC e em 1975 foi chamado para dirigir o jornalismo da TV Cultura e retornou ao Brasil, mesmo sob o contexto de repressão causado pelo Ato Institucional nº 5 - AI - 5.

No mesmo ano que retornou ao Brasil Vladimir Herzog foi convocado a prestar depoimento no DOI-CODI sobre suas supostas ligações com o Partido Comunista (PCB). O jornalista compareceu espontaneamente e depois de dois dias foi vinculado um comunicado do II Exército sobre o seu suposto suicídio na sala das instalações militares (PACHECO, RIOS, 2018, p.8).

Após a nota sobre o óbito ser emitida, a família prontamente contestou o motivo da morte do jornalista colocado no documento e a repercussão nacional popular a respeito foi imediata.

O caso Vladimir Herzog produziu uma comoção nacional que fez mudar a atitude da sociedade civil frente às torturas praticadas contra presos políticos. As violências vinham se repetiando há muitos anos, [...]. Mas, até então, os casos eram denunciados no exterior e em segmentos numericamente restritos, dentro do País, como universidades, igrejas, parlamentares e entidades vinculadas à defesa dos Direitos Humanos. [...]. A morte de Vladimir Herzog ocorreu quando a censura à imprensa começava a ser abrandada e os cidadãos perdiam o medo de discordar e protestar. A repercussão das denúncias trouxe profundos danos à credibilidade do regime militar e permitiu que explodisse um forte sentimento de indignação em todos os meios capazes de formar opinião. (COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS, 2007, p. 407. e 408)

A viúva de Vladimir, Clarisse, foi atrás de esclarecimentos a respeito do que realmente ocorreu com seu marido ao ser levado aos militares. De acordo com Santos, “em 1976, por via de uma ação declaratória civil, ela e seus filhos pleitearam a responsabilidade da União pela prisão arbitrária, tortura e morte do jornalista, solicitando uma indenização monetária.” (SANTOS, 2017, p. 6)

Em 1978, o Estado brasileiro, pela sentença da ação supramencionada, foi responsabilizado pela prisão arbitrária, tortura e assassinato do jornalista Vladimir Hezorg por agentes do regime militar. “Essa decisão declaratória, proferida ainda durante a ditadura militar, foi um passo importante para o reconhecimento de que graves violações de direitos humanos vinham sendo cometidas nas dependências do Estado” (SANTOS, 2017, p. 7).

Todavia, alguns meses depois em 1979, foi promulgada a Lei 6.683/79, Lei da Anistia, perdoando todos os indivíduos que a época cometera crimes políticos ou conexos a estes. Assim, as investigações sobre o caso restaram frustradas diante da nova realidade.

Com o esgotamento dos recursos internos, a viúva de Herzog juntamente a instituições como o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL/Brasil), a Fundação Interamericana da Defesa dos DH (FidDH), o Centro Santos Dias da Arquidiocese de São Paulo e o Grupo de Tortura Nunca Mais de São Paulo, enviaram uma petição a Comissão Interamericana de Direitos Humanos no ano de 2009 (CORREIA, KOWARSKI, 2019, p. 70).

2.3. Corte Interamericana de Direitos Humanos

A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro a respeito dos casos Gomes Lund e outros versus Brasil e o caso Herzog, em relação aos desaparecimentos forçados, torturas e homicídios promovidos pelo governo militar durante o período da ditadura de 1964.

A respeito da condenação no caso Gomes Lund e outros versus Brasil (Guerrilha do Araguaia), Silva e Wanderley Júnior destacam que:

O caso Lund, julgado pela CIDH versou sobre o massacre promovido pelo Governo da Ditadura Militar brasileira, numa localidade chamada Bico de Papagaio, perto do rio Araguaia, ao sul do Estado do Pará, contra um grupo de militantes de um núcleo 45 de resistência rural à ditadura, organizado a partir do ano de 1966 pela ala mais radical do PCdoB, o Partido Comunista do Brasil. Na chamada “Operação Marajoara”, em outubro de 1973, com ordens de não fazer prisioneiros, os agentes do Estado massacraram os ditos “guerrilheiros”, negando-lhes quaisquer direitos, pois não havia chance de rendição [...]. (SILVA; WANDERLEY JÚNIOR, 2015, p. 621/622).

Na demanda enviada à Corte, a Comissão pleiteava a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelo descumprimento de diversas obrigações, dentre elas o direito à integridade pessoal e o direito à vida (MEZAROBBA, 2010). Ainda, dentre os pedidos, constava a necessidade de que o Estado brasileiro agisse para que a Lei da Anistia não mais se tornasse um óbice frente aos intuitos de responsabilização penalmente aos responsáveis das violações de direitos humanos.

É o que se verifica pelo trecho abaixo retirado da sentença:

As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, CASO GOMES LUND E OUTROS “GUERRILHA DO ARAGUAIA” versus BRASIL , 24/11/10)

O Estado brasileiro foi condenado, por unamidade, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e obrigado a investigar penalmente as violações dos direitos humanos e a responsabilizar os autores das violações. Além disso, o Tribunal também estabeleceu que, em casos de violações aos direitos humanos, as autoridades estatais não podem se amparar em mecanismos como o segredo de Estado ou a confidencialidade de informações (MORAES, 2011, p. 104. e 105).

A sentença concluiu pela necessidade da reconstrução da memória das vítimas da Ditadura Militar brasileira, da punição dos autores dos desaparecimentos forçados e assassinatos, da reparação civil mediante indenização por danos morais e materiais e da necessidade de medidas de prevenção a atos violadores aos direitos humanos.

Acerca do segundo caso em estudo, o caso Herzog, em 2006, a Comissão submeteu o caso à Corte, pela tortura e assassinato do jornalista, anteriormente peticionada pela Comissão Nacional da Verdade.

Em 28 de outubro de 2015, simbolicamente 40 anos após a morte de Herzog, a CIDH aprovou o relatório de mérito nº 71. Nesse relatório anterior ao encaminhamento do caso Herzog à Corte IDH, a CIDH afirmou que, de acordo com o art. 43.1. do seu Regulamento, consideraria, em sua análise, as alegações e as provas apresentadas pelas partes, assim como informações de conhecimento público. (SANTOS, 2017, p. 16).

Diante disso, pela apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil foi responsabilizado pela violação do direito às garantias judiciais e à proteção judicial (CARVALHO; CRUZ, 2018). O Brasil ainda foi condenado pela falta de investigação e inércia a respeito dos crimes cometidos no caso, por obstar a verdade aos familiares da vítima e, mais uma vez, a Corte se posicionou em relação a aplicação da Lei da Anistia. “[...] mencionou-se também a responsabilidade do Estado brasileiro em relação a aplicação da Lei de Anistia nº 6.683/79 e de diversas excludentes de responsabilidade vedadas pelo Direito Internacional em casos de crimes contra a humanidade.” (CARVALHO; CRUZ, 2018, p. 706).

Acerca deste assunto, assevera a sentença:

Desse modo, é evidente que, desde sua aprovação, a Lei de Anistia brasileira se refere a delitos cometidos fora de um conflito armado não internacional e carece de efeitos jurídicos porque impede a investigação e a punição de graves violações de direitos humanos e representa um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso e a punição dos responsáveis. No presente caso, a Corte considera que essa Lei não pode produzir efeitos jurídicos e ser considerada validamente aplicada pelos tribunais internos. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Caso Herzog e outros versus Brasil, 15/03/18)

É importante observar, que em ambas as sentenças analisadas, é dito a respeito da verificação da incompatibilidade da Lei da Anistia diante dos tratados internacionais que o Brasil é signatário, especialmente o Pacto de San José da Costa Rica.

A anistia, concretizada após a promulgação da lei 6.683/79, abarcou todos aqueles que cometeram crimes no período da ditadura militar, envolvendo todos aqueles que no contexto infringiram os direitos humanos travestido de “anistia, ampla, geral e irrestrita”. A anistia, então, nesse sentido, é um instrumento jurídico capaz de afastar a punibilidade de determinados crimes. (SILVA; WANDERLEY JUNIOR, 2015)

Cabe reforçar que a ditadura militar no Brasil foi pautada pela tortura, desaparecimentos forçados e assassinatos, além do ocultamento de informações. Com isso, fica evidenciada a impunidade sobre todos os casos de violação de direitos humanos ocorridos na ditadura.

Assim, a Lei da Anistia obsta a investigação e punição dos crimes anteriormente mencionados, em razão da desconformidade com tratados internacionais, podendo aplicar nesse caso o controle de convencionalidade.

O controle de convencionalidade, justamente, aponta para a incompatibilidade da produção normativa doméstica com os tratados internacionais, em vigor no plano interno, o que torna inválidas as normas jurídicas de direito interno (MAZZUOLI, 2009).

Ainda, sobre o controle de convencionalidade:

Não por acaso é que hodiernamente, a partir das mudanças perpetradas na arena internacional em favor dos direitos da pessoa humana, é que existe a necessidade premente de se discutir o Controle de Convencionalidade, haja vista que os Estados que ratificam e reconhecem a jurisdição internacional, a exemplo da República Federativa do Brasil no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, não estão submetidos apenas às normas de direito interno e, por consequência, dos tribunais nacionais, mas também ao sistema internacional. (GUERRA, 2017, p. 5)

Dessa forma, a não observância da uniformidade entre o direito interno e internacional pelo Estado brasileiro, faz com que nos casos em estudo, haja uma impunidade que se perpetra desde o fim da fase da ditadura militar. “[...] o que reflete uma ação individual e não cooperativa do mesmo para com os órgãos e instituições da ordem jurídica internacional, diante do não cumprimento do compromisso assumido perante o sistema internacional.” (CORREIA, KOWARSKI, 2019, p. 71).

O Brasil não observou o estabelecido pelo controle de convencionalidade, contrariando estabelecido nos tratados internacionais em que é signatário e versam sobre os direitos humanos.

Sobre a incompatibilidade entre o direito interno e internacional Mazzuoli destaca que “A falta de compatibilização do direito infraconstitucional com os direitos previstos nos tratados de que o Brasil é parte invalida a produção normativa doméstica, fazendo-a cessar de operar no mundo jurídico.” (MAZZUOLI, 2009, p. 130).

Dessa forma, não há que se falar em uma superioridade do direito interno sobre o direito internacional. Mas, quando isso ocorre, desvincula o Estado da subordinação ao aparato internacional e deixa o amparo dos direitos humanos com uma proteção inferiorizada nesse sentido.

Assim, a incompatibilidade entre as normas não condiz com o diálogo que deveria haver entre elas, já que na medida em que os tratados internacionais se internalizam no campo normativo doméstico, passam a ter o mesmo caráter normativo do direito interno (MAZZUOLI, 2009, p. 134).

Vale ressaltar que o Estado brasileiro não observou a chamada justiça de transição, tão importante para garantir as reflexões necessárias sobre a história do país, para garantir o direito a memória e não repetir violações aos direitos humanos.

Nas interpretações sobre o que é justiça de transição, evidencia-se que o passado de violações de direitos humanos é parte do processo de redemocratização e precisa ser discutido (LIMA, 2012).

A justiça de transição é aquela que descreve os processos de mudança entre a fase da ditadura para as fases pós-ditatoriais, ou seja, um processo de transformação jurídica e política que é importante para que seja feita a justiça e a fim de assegurar que os responsáveis sejam condenados por seus atos. Assim, o Estado brasileiro não efetivou tal processo da maneira que deveria ocorrer, já que optou por anistiar todos os responsáveis ao invés de julgar os autores dos crimes.

A Justiça de Transição é um imperativo para se resgatar a dívida moral e material com as vítimas e seus familiares, das ações truculentas e criminosas dos governos ditatoriais que, num passado não tão distante, aviltaram a consciência da nação e vilipendiaram os direitos fundamentais de seus próprios cidadãos. (SILVA; WANDERLEY JUNIOR, 2015, p. 626)

Diante disso, as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos são ainda mais relevantes no contexto da justiça brasileira. E, ainda, da conquista da responsabilização dos agentes que atuaram em desconformidade com os direitos humanos na ditadura militar.

É imperioso destacar, que os crimes cometidos na ditadura de 1964 não prescrevem, pois são crimes cometidos contra a humanidade. Desta forma, as violações dos direitos humanos que não são analisadas, com o delongar dos anos, trazem consequências que se reproduzem na sociedade.

A primeira dessas consequências é a falta de reparação. De acordo com Rojas (2009, p.77) “A reparação consiste, portanto, em restaurar a situação da vítima ao momento anterior ao ato ilícito, suprindo ou anulando as consequências desse ato ou omissão ilícitos”.

Assim, os familiares não foram, de uma certa forma, compensados pelos acontecimentos nos casos em análise, seja pela omissão de informações ou mesmo por meio de reparações pecuniárias. A efetiva reparação das vítimas é necessária, ainda, para que não se repitam as mesmas falhas no futuro.

Além disso, as decisões da Corte poderiam impulsionar a exposição de documentos e dos reais fatos que ocorreram naquele período histórico em que sucederam os casos retratados. A respeito exclusivamente do caso da Guerrilha do Araguaia, apontam Affonso; Krsticevic:

A expectativa é que a sentença da Corte possa impulsionar o Estado brasileiro a efetivar os pleitos dos familiares que preferencialmente se concentram na localização, identificação e entrega de seus entes desaparecidos para a realização de funeral digno. Tais ações devem ser realizadas pelo Estado em total diálogo com os familiares, considerando suas prioridades e sentimentos. Espera-se também que lhes seja informado e comprovado, preferencialmente por meio dos documentos militares, as circunstâncias dos desaparecimentos e seus respectivos responsáveis. Assim, fatos e responsáveis devem ser investigados e processados na Justiça criminal. (AFFONSO; KRSTICEVIC, 2011, p. 378)

Assim, a respeito da publicização de todo o ocorrido na fase da ditadura militar, no contexto do Estado Democrático de Direito em que se situa o Brasil, não condiz a omissão dos fatos aos familiares e à sociedade no geral.

[...] nos casos em que houve violações dos direitos e liberdades convencionais, o Estado tem o dever de agir na esfera doméstica, de modo a determinar a verdade sobre as violações da Convenção para processar e punir os responsáveis e indenizar as vítimas. Tudo isso com o entendimento de que as situações de impunidade podem levar a futuras violações dos direitos humanos. (ROJAS, 2009, p. 89)

Para a sociedade brasileira a sentença poderá possibilitar o conhecimento público dos documentos militares e a promoção de investigação e o processamento criminal dos agentes comprovadamente envolvidos nos crimes (AFFONSO; KRSTICEVIC, 2011). A divulgação das violações, portanto, faz parte do direito à verdade. O direito à verdade se apresenta de diversas formas, neste caso, se aplica ao direito individual, bem como, ao direito coletivo.

Quanto ao dever de investigar, a Corte declarou que, enquanto esta é uma obrigação de meios, devem ser respeitadas com toda a seriedade pelos Estados, de modo que a obrigação de investigar também deve atender a certos requisitos mínimos para cumprir a obrigação de garantia. Por sua vez, na punição dos autores de violações dos direitos humanos, a Corte tem uma obrigação especial com os Estados, que é o dever de punir aqueles que cometeram esses crimes. (ROJAS, 2009, p. 89. e 90)

Por todo o exposto, depreende-se que o Brasil deve prezar pela desconstrução da cultura da impunidade, que se incorporou com a omissão em responsabilizar os agentes que violaram os direitos humanos nos crimes da ditadura militar de 1964.

Da mesma maneira, a falha em prestar esclarecimento de todos os fatos concernentes a esse período, constituindo um acobertamento da verdade e desrespeito à memória. Tudo isso, em respeito ao Estado Democrático de Direito, à transição efetiva e plena para a democracia e a obediência aos tratados internacionais de que o Brasil é signatário.

Além disso, a Lei da Anistia não pode obstar as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobre os casos Gomes Lund e outros versus Brasil e o Caso Herzog. Pela reparação às vítimas e suas famílias, bem como, pela sociedade no geral e a necessidade da verdade em ser divulgada.

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Sobre as autoras
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Evelyn Lorena Oliveira ; QUEIROZ, Kayth Hellen Oliveira. Repercussão da Lei da Anistia no Brasil e análise dos julgados Guerrilha do Araguaia e Herzog pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7550, 3 mar. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91465. Acesso em: 21 nov. 2024.

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