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Direito penal de emergência como meio de política criminal

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27/06/2021 às 12:40
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A sociedade atual criou uma tendência em buscar a solução dos seus conflitos no direito penal, banalizando-o e criando o chamado direito penal de emergência.

A política criminal é um meio em que o Estado, se valendo de outros ramos como a sociologia, filosofia e criminologia, busca compreender quais normas jurídicas devem ser mantidas, criadas ou revogadas com o propósito de realizar o controle social.

A expressão “política criminal” é usualmente atribuída ao professor alemão Feuerbach, sendo descrita como “ o conjunto dos procedimentos repressivos pelos quais o Estado reage contra o crime.” ( 1803 apud Delmas-Marty, 2004, p.6).  Ainda na linha de pensamento do professor alemão, pode-se dizer que:

[...] a política criminal compreende o conjunto de procedimentos pelos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal aparecendo, portanto, como teoria e prática das diferentes formas de controle social. É claro que o direito penal continua muito presente, como o núcleo rígido ou o ponto de maior tensão, igualmente de maior visibilidade. Mas as práticas penais não estão sozinhas no campo da política criminal, onde se encontram como que englobadas por outras práticas de controle social: não-penais, não-repressivas e, por vezes, até mesmo não-estatais. (Delmas – Marty, 2004, p. 3 - 4).

Inegável, pois, que a atuação do Direito Penal é de extrema importância dentro da Política Criminal, mas não deve ele receber sozinho a tarefa de solucionar conflitos de diversificadas espécies. Como defende René Ariel Dotti, o crime deve ser combatido tanto por instâncias formais como materiais. Por instâncias formais deve-se compreender: “a lei, a Polícia, o Ministério Público, o poder Judiciário, as instituições e os estabelecimentos penais.” (2018, p. 85). Já as instâncias materiais são aquelas - definidas por Delmas-Marty como não-penais, não repressivas e não estatais – que fogem da esfera penal como: “a família, a escola, a comunidade (associações, sindicatos) etc.” (DOTTI, 2018, p.85).

Percebe-se, assim, a função do Direito Penal como ultima ratio, ou seja, quando os meios não-penais falharem em suas atuações e mais nenhuma outra instância possa atuar é que a esfera penal vai entrar em ação. Todavia uma crescente inversão de valores vem adquirindo força dentro dos discursos sociais que, inflados pela insegurança exposta pela mídia, passa a clamar por uma expansão do Direito Penal e a consequente adoção de um Direito Penal de emergência.

A elaboração exagerada de leis penais como meio de controle social é fragmento de um pensamento que foi observado nos Estado Unidos, na década de 80 com o movimento de Lei e Ordem.

Rogério Greco atribui a propagação do movimento de Lei e Ordem aos reporteres, jornalistas e apresentadores que tomaram como sua a função de criticar as leis penais, fazendo a sociedade acreditar que o endurecimento da legislação e a criação de novos tipos criminais, com uma rigidez das penas e o afastamento de garantias processuais, seria capaz de reestabelecer a segurança na sociedade. (2009, p.12).

Esse movimento político-criminal busca focar a atuação do Estado na esfera penal, o afastando da esfera social. Cabendo, assim, ao legislador o dever de promover a criação de leis aptas a proteger  qualquer tipo de bem jurídico atacado por um comportamento anti-social. (GRECO, 2009, p. 14). Em resumo:

[...] o pensamento de Lei e Ordem, o Direito Penal deve preocupar-se com todo e qualquer bem, não importando o seu valor. Deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador e repressor, não permitindo que as condutas socialmente toleráveis, por menos que sejam, deixem de ser reprimidas.(GRECO, 2009, p.16).

Inegável, pois, que fragmentos do pensamento trazido pelo movimento de Lei e Ordem se propagou entre as diferentes sociedades, criando uma tendência dentro da Política Criminal que passou a buscar o endurecimento das leis, se afastando da forma tradicional. Como assevera, Winfried Hassemer em relação a esse ponto:

A moderna Política Criminal afasta-se da forma tradicional de cometimento (do crime de lesão ou fraude) e da determinação normal do bem jurídico do Direito Penal tradicional (bem jurídico individual como, por exemplo, a integridade física). Sua forma típica de delito é a do delito de perigo abstrato (por exemplo, a fraude à subvenção), sua determinação normal de bem jurídico é a do bem jurídico universal concebido de forma ampla (como a saúde popular no Direito Penal das Drogas). De acordo com isso, dissolve-se a determinação legal do injusto punível, aumentam e flexibilizam-se as possibilidades de ampliação da lei, diminuem as chances de defesa e também a crítica à ultrapassagem dos limites instituídos pelo legislador. .

A ampliação das leis traz consigo uma sensação de segurança, proporcionando a percepção de que a criminalidade está sob o controle do Estado e atribuindo ao legislador a figura de um governante atento aos anseios de seu eleitorado. Ledo engano, pois muitas vezes a intenção da lei não é alcançada e gera problemas que culminam em uma legislação enfraquecida devido a “inflação legislativa (Direito Penal de emergência), criando-se exageradamente figuras penais desnecessárias, ou então com o aumento desproporcional e injustificado das penas para os casos pontuais (hipertrofia do Direito Penal).” (MASSON, 2017, p.11).

Atendendo ao clamor público diante dos novos fatos é que a legislação emergencial surge com uma capa protetiva perante a sociedade, que passa a se sentir mais segura com a tipificação de novos crimes e de penas mais severas. Satisfazendo os adeptos de um movimento de Lei e Ordem. Resta evidente que a ideia de emergências pressupõe a prevalência do aspecto político, que atende seus eleitores sobre o aspecto jurídico, tal como evidencia com propriedade Luigi Ferrajoli (2002, p.650):

Esta concessão de emergência outra coisa não é que a ideia do primado da razão do Estado sobre a razão jurídica como critério informador do direito e do processo penal, seja simplesmente em situações excepcionais como aquela criado pelo terrorismo político, ou de outras formas de criminalidade organizada. Ela equivale a um princípio normativo de legitimação da intervenção punitiva: não mais jurídica, mas imediatamente política; não mais subordinada à lei enquanto sistema de vínculos e de garantias, mas à esta supraordenada. Salus rei publica suprema lex. A salvaguarda, ou apenas o bem do Estado, é a norma principal do “direito de emergência” (Grundnorm), a lei suprema que impregna todas as outras, aí compreendidos os princípios gerais, e que legitima a mutação.

Eis que o Direito Penal se torna um instrumento de legitimação do Estado de Direito contemporâneo, que passa a sobrepor as necessidades do Estado e, consequentemente, as políticas sobre as normas jurídicas, usando somente o Direito para legitimar seus atos e atuação. Pois a atuação política traz “para a massa dos espectadores tanto tranquilização quanto ameaça, mas a política simbólica serve antes à harmonia social, reduzindo tensões e, portanto, desempenhando primariamente uma função de tranquilização.” (EDELMAN , 1967, 22-43, 163 – 165 apud NEVES, 1994, p. 27).

Percebe-se que a criação contínua de leis pelo Estado permeia uma sensação de que tudo está bem, de que soluções estão sendo buscadas e que o detentor do jus puniendi está atuando em prol da segurança perdida, mas, na maioria das vezes, a atuação morre em uma sensação que não encontra eficácia diante dos problemas. A doutrina é unânime ao definir essa atuação ineficaz como algo simbólico.

Simbolicamente, a atuação legislativa na criação de leis mais severas diminuiu as tensões sociais, o temor e a sensação de insegurança, que é reiterada diariamente na casa dos cidadãos por meio da mídia sensacionalista, porém, ao se revestir apenas desse caráter simbólico que o Direito Penal de emergência traz:

[...] com sua pretensão de dar rápida resposta aos anseios sociais, e, com isso, muitas vezes criminaliza condutas sem qualquer fundamento criminológico e de política criminal, criando a ilusão de que resolverá o problema por meio da utilização da tutela penal. Com efeito, se a criação da lei penal não afeta a realidade, o Direito Penal acaba cumprindo apenas uma função simbólica. (SALIM e AZEVEDO, 2017, p.36).

Toda legislação produz um caráter simbólico no legislador, que acredita que atendeu ao clamor social, e ao cidadão, que acredita estar inserido em uma sociedade segura. Todavia, é de difícil conceituação a expressão “simbólico” e “legislação simbólica”, mas, pode-se resumir como uma oposição entre realidade e aparência, entre o que foi manifestado e o que não foi, havendo uma distinção entre os efeitos penais e os reais associando, desta forma, o caráter simbólico a uma mentira ardilosa. (HASSEMER, 1991, p.22). [1]

A ideia de mentira ardilosa pode ser percebida quando a legislação simbólica assume a finalidade de fortalecer a confiança do cidadão no legislador eleito, consequentemente no Estado e no sistema jurídico-político por ele desenvolvido. Entretanto, diante das exigências sociais, o governante, por meio da  “legislação álibi” – termo utilizado por Kindermann – desafoga as pressões e exigências políticas que recaem sobre si, atendendo às reivindicações e expectativas sociais por meio da elaboração de diplomas legislativos que, por vezes, não têm condição de efetivação. (NEVES, 1994, p. 37). Em outras palavras:

Face à insatisfação popular perante determinados acontecimentos ou à emergência de problemas sociais, exige-se do Estado muito frequentemente uma reação solucionadora imediata. Embora, nesses casos, em regra, a regulamentação normativa muito improvavelmente possa contribuir para a solução dos respectivos problemas, a atitude legiferante serve como álibi do legislador perante a população que exigia uma reação do Estado. (NEVES, 1994, P. 37-38).

Afinal, o que importa a curto prazo é a sensação que a lei traz, postergando os seus efeitos para um problema futuro, visto que, nas sábias palavras de Hassemer (1991, p.21):

Quanto mais exigentes forem formuladas as teorias preventivas da pena (ressocialização do delinquente, intimidação das pessoas propensas ao crime, reafirmação das normas fundamentais), quanto mais extenso seja seus fins, mais evidente será seu conteúdo simbólico: perseguem, com a ajuda de uma intervenção instrumental do direito penal (de uma maneira consistente com essa prática), transmitir (cognitiva e emotiva) a mensagem de uma vida de fidelidade ao direito.[2]

A ideia de uma difusão simbólica reforça o caráter do moderno Direito Penal, que almeja a satisfação de todas as perturbações sociais por meio de medidas penais.

Verifica-se, atualmente, em especial em nosso pais, o recorrente equívoco da opinião pública, dos administradores e do legislador, que acreditam que a maciça edição de leis penais novas, ou mais severas e mais abrangentes, é o melhor caminho para  solucionar o problema da crescente criminalidade; “essa concepção radical do Direito Penal é falsa porque o considera como uma espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias.” (TOLEDO, 1994, p.5).

Como exemplo concreto de uma legislação nova, com uma caráter mais severo temos no Brasil a Lei dos crimes hediondos (Lei n° 8.072/90), que foi aprovada em caráter de urgência após noticias que causaram comoção social, como foi o caso de sequestro do empresário Abílio Diniz, em 11 de dezembro de 1989 e em 6 de julho de 1990, do publicitário Roberto Medina. Diante de tais circunstâncias é que Guilherme de Souza Nucci assevera que “as leis não são criadas como regra, no Brasil, com amplo estudo prévio e discussão em sociedade e nos meios acadêmicos, resultando, pois em textos sem lógica e assistemáticos. Muito rigorosos, por vezes. Frágeis e liberais em excesso, por outro.” (2014, p. 425).

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Pode-se, ainda, citar outros exemplos legislativos, como a Lei n° 12.737/2012, popularmente conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, as recentes alterações sofridas pelo Código de Trânsito Brasileiro, que alterou os casos de embriaguez ao volante com a inserção do artigo 516-A no CTB, atráves da Lei n° 13.281/16, e o artigo 302 que foi alterado no mesmo Código, uma normativa que trata das ocorrências de homicidios causados por motoristas embriagados.

Tem-se também as leis de proteção à mulher contra violência doméstica, como a Lei n° 11.340, denominada de Lei Maria da Penha e a n° 13.104/2015, Lei do Feminicídio. Contudo, verifica-se, por meios de dados estatísticos, que a criação e expansão desses tipos penais não foram capazes de coibir a criminalidade. Um exemplo recente é uma pesquisa feita esse ano, em que se constatou que o feminicídio aumentou em 76% no 1° trimestre de 2019.  

Eis que podemos concluir, diante desses exemplos que “o Direito Penal de emergência e a crescente legislação penal que o acompanha ( e a que se produz fora do seu âmbito) responde a ideologias politicamente antiliberais que vão marcando tendencia e coloca em perigo o Estado de Direito.” [3](ZAFFARONI, 1998, p. 618, tradução nossa).

É perigoso para a credibilidade do Direito Criminal seu uso abusivo, pois causa uma banalização da única esfera do Direito apta a exercer o jus puniendi, além de mascarar os verdadeiros problemas que assolam a sociedade, tal como evidencia com propriedade Rogério Greco:

[...] a máxima intervenção do Direito Penal, somente nos faz fugir do alvo principal, que são, na verdade, as infrações penais de grande potencial ofensivo, que atingem os bens mais importantes e necessários ao convívio social, [...] um Direito Penal que procura ocupar o papel de educador da sociedade, a fim de encobrir o grave e desastroso defeito do Estado, que não consegue cumprir suas funções sociais, permitindo que, cada dia mais, ocorra um abismo econômico entre as classes sociais, aumentando, assim, o nível de descontentamento e revolta na população mais carente, agravando, consequentemente, o número de infrações penais aparentes, que a seu turno, causam desconforto à comunidade que, por sua vez, começa a clamar por mais justiça. O círculo vicioso não tem fim. (2009, p.17).

Realmente, o “círculo vicioso não tem fim”, pois a remediação dos problemas com legislações emergências de efeitos meramente simbólicos não líquida a criminalidade. Por isso, é que Cleber Masson é claro em afirmar que a função simbólica deve ser afastada, pois, a curto prazo, até que, o Direito Penal assume tarefas governamentais de natureza educativa e promocionais. Porém, a longo prazo, quem sofre é o ordenamento jurídico, que tem suas funções instrumentais mediocrizadas. (2017, p. 11).

Observa-se que a utilização do Direito Penal de emergência como meio de Política Criminal é uma tendência nas sociedades atuais. Pois é através da Política Criminal que o Estado atua para combater a criminalidade. Entretanto, vem ocorrendo o uso equivocado da esfera criminal, que tem sido utilizada como meio de combate de toda e qualquer situação ilícita, provocando uma maximização do Direito Penal e transferindo sua atuação de ultima ratio para prima ou sola ratio.

Percebe-se, contudo, um equívoco no pensamento social em acreditar que cabe ao Direito Penal solucionar todos os problemas que abalam o sentimento de segurança, pois essa sensação é simbólica, prova disso são os índices de criminalidade que não reduzem diante da criação de novas leis. Apenas, acaba-se criando um ciclo vicioso, onde a maciça criação de legislação foca em combater o efeito, ignorando por completo as causas da criminalidade. E o Direito Penal de emergência nada mais é do que um combate a efeitos.

É perceptível uma banalização da última esfera de controle social, a qual deveria ter única e exclusivamente a função de atuar em situações de relevante valor social. Um equívoco alimentado pela mídia, que clama por uma maximização do Direito Penal, e aceito pela sociedade, que lava as mãos e apenas exige uma atuação imediata do Poder Legislativo. Uma prática observada e duramente criticada por estudiosos que temem pelo enfraquecimento do Direito Criminal, e apontam atuações necessárias para uma urgente minimização da utilização dessa esfera penal. 

Afinal, como cidadão inserido em sociedade, devemos considerar se queremos que todos os nossos anseios sejam respaldados por uma lei severa, produzindo uma sensação de segurança, ou se o que devemos exigir é a efetiva redução de criminalidade, tendo em mente que não é uma tarefa que cabe única e exclusivamente à esfera penal, mas também depende de atuação de esferas não-penais, afastando, desta forma, a ideia do Direito Penal de emergência.

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Sobre a autora
Amanda Renata Saldanha

Bacharel em Direito pelo Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais - CESCAGE. Especialista em Processo e Prática Penal pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG. Especialista em Direito Digital e Privacidade Especialista em Proteção de Dados Expert em eSports e eGames

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALDANHA, Amanda Renata. Direito penal de emergência como meio de política criminal . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6570, 27 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91493. Acesso em: 29 mar. 2024.

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