A recente atuação da Polícia Federal no caso do dossiê da máfia dos sanguessugas engrossou a discussão acerca do uso político da PF e introduziu um novo tema no debate: a autonomia da Polícia.
A existência de órgãos autônomos na administração pública brasileira é muito maior do que se tem propagado. Uma série de prerrogativas sempre foi concedida sob o argumento de colocar determinadas instituições públicas a salvo da influência de grupos políticos e econômicos.
O Poder Judiciário e o Ministério Público são, atualmente, as instituições com maior poder de autonomia em relação ao Executivo e ao Legislativo. Seguindo a experiência estrangeira, os magistrados e membros do Parquet no país gozam das seguintes garantias, entre outras: a inamovibilidade, a independência funcional e a vitaliciedade. Isso quer dizer que não podem ser, em regra, transferidos contra sua própria vontade, demitidos sem ordem judicial – diversamente dos demais servidores públicos que podem ser demitidos por meio de processos administrativos –, responsabilizados pelos atos praticados no exercício das funções, salvo má-fé, ou mesmo designados casuisticamente para processos específicos.
Mas enquanto em boa parte dos países da Europa continental, como a França, a administração do Judiciário ainda é feita pelo Ministério da Justiça e as funções do Ministério Público são desempenhadas por magistrados, no Brasil, a Constituição de 1988 criou instituições bem distintas e concedeu autonomia administrativa, financeira e orçamentária ao Judiciário e ao Ministério Público, o que significa que independem do Executivo para admitir e gerir seus servidores, além de decidir quanto, como e onde gastar seus recursos. Deu certo!
Já em 2004, por meio de emenda constitucional, as defensorias públicas estaduais – às quais cabe a assistência jurídica dos necessitados, não raras vezes processando o Estado e seus governantes – receberam garantias (excepcionando a vitaliciedade) e autonomia idênticas.
Fora do sistema judiciário, é possível encontrar um bom número de órgãos que receberam o devido enaltecimento institucional e valorização profissional, em maior ou menor grau. Assim aconteceu com os tribunais de contas, os conselhos de fiscalização profissional, as universidades, o CADE e a Comissão de Valores Mobiliários. Estes e outros órgãos vêm recebendo garantias institucionais variadas como a autonomia administrativa, financeira, instituição de mandatos fixos aos dirigentes, alguns nomeados pelo Presidente da República após aprovação pelo Senado, garantia de inamovibilidade e independência funcional aos seus servidores. Nenhuma destas garantias está imune a críticas.
Isso se tornou mais freqüente com a reforma administrativa do governo FHC que, em 1998, por meio de emenda constitucional, introduziu o princípio da eficiência na administração pública, prevendo a possibilidade de concessão de autonomia gerencial, orçamentária e financeira a diversos órgãos, e abrindo caminho à criação das diversas agências que hoje gozam de algumas prerrogativas (ANA, ANATEL, ANEEL, ANP, etc.).
Curiosamente, as Polícias e policiais não possuem nenhuma destas garantias. Na prática, isso significa que um Delegado de Polícia Federal pode ser transferido a qualquer tempo de São Paulo/SP para Tabatinga/AM, Oiapoque ou Chuí e ser designado pela vontade dos superiores para qualquer caso, ou dele ser afastado, além de se submeter a um regime disciplinar criado em plena ditadura e que lhe permite ser punido pelo simples fato de fazer críticas à administração. Isso quer dizer, ainda, que o Executivo tem o poder para dizer o quanto, quando e como a PF irá gastar seus recursos.
Para nós, Delegados, a discussão acerca da concessão de garantias mínimas aos órgãos policiais surgiu já há muito tempo, fruto de dificuldades muito mais freqüentes do que pretendem aqueles que só agora entraram neste debate. Ela é apenas uma das pontas de uma discussão interna ampla que envolve um estatuto de investigação, prerrogativas compatíveis com a responsabilidade e riscos do cargo, independência funcional, com escolha do dirigente máximo por lista tríplice da categoria, o incremento dos mecanismos de controle da polícia e, principalmente, o papel que ela deve exercer numa sociedade democrática.
Essas são algumas reflexões que ficaram esquecidas nas prateleiras de duvidosos defensores da democracia, que, ao tempo em que apregoam uma sociedade justa, igualitária, com controle dos atos policiais, coibindo excessos e abusos, contraditoriamente, querem assegurar a existência de uma Polícia submetida às intempéries do poder, sem um mínimo de garantias e prerrogativas, para a final, propagar a falsa idéia de uma polícia a serviço do governo.