3. DO ABORTO
3.1. História, Religião e Conceitos
O aborto é algo que se faz presente em diversas fases da humanidade. Nos tempos mais remotos das civilizações orientais e greco – romana, o aborto era permitido. De acordo com Beauvoir (2016, p.172) “o direito romano não concedia proteção especial à vida embrionária”. Assim, a prática abortiva era vista como algo comum. Contudo, o crime que poderia ser praticado pela mulher, nessa época, consistia em sua desobediência ao marido, ou seja, se esta abortasse o filho contra a vontade de seu cônjuge. (BEAUVOIR, 2016).
Com a alavancada do cristianismo, a visão sobre o aborto se modificou, de maneira que, ao longo dos tempos, a regulação dos corpos das mulheres se tornou ainda mais rígida, vindo o patriarcado a dominar. Assim, o embrião passou a ter alma, sendo o aborto considerado um crime contra o feto.
Durante a Idade Média, o livro penitencial declara: “Se uma mulher grávida faz perecer seu fruto antes de quarenta e cinco dias, sofre uma penitência de um ano. Se fizer ao fim de sessenta, de três anos. Finalmente, se a criança já estiver com alma deverá a mulher ser tratada como homicida. (BEAUVOIR, 2016, p.173)
No transcorrer do século IV, ante a ampla influência da Igreja Católica, diversas doutrinas, fundamentadas em São Basílio, repugnavam qualquer forma de prática abortiva. Já no século VI, tal visão fora reformulada pelo Código de Justiniano, que dava respaldo para a prática de aborto nos primeiros quarenta dias de gestação, perdurante essa visão por dez século (VERARDO, 1987).
No ano de 1588, com a grande influência da religião na elaboração das normas, o Papa Sisto V retomou o entendimento de são Basílio, vindo a repugnar qualquer forma de aborto. Contudo, em 1591, tal visão fora, novamente, revogada, pelo Papa Gregório XIV, sob o argumento de que um feto não possuía alma até começasse a se movimentar. Aproximadamente 3 séculos depois, o Papa Pio IX, voltou a posição de proibir o aborto, posicionamento que permanece até os dias atuais, sendo a visão oficial da Igreja Católica. (JONES, 2005; VERARDO, 1987, p. 48).
No ano de 2015, o atual Papa Francisco, deu respaldo para que os sacerdotes concedessem o perdão as mulheres que abortaram, sob o condicionamento de que estas viessem a pedir remissão de seus atos. Esse perdão, entretanto, não vai ao encontro da posição da Igreja Católica, que é contra o aborto (NOSSA OPINIÃO- O GLOBO, 2015).
No entendimento de Martins Melo (2014), um aborto pode ser considerado seguro quando é praticado em conformidade com o atendimento técnico necessário, por serviços de saúde estruturados, e além de assistência médica, deve haver um apoio psicológico a mulher que opte por abortar.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (2013, p.18), o aborto inseguro “é um procedimento para finalizar uma gravidez não desejada, realizado por indivíduos sem as habilidades necessárias e/ou em ambiente abaixo dos padrões médicos exigidos”. Nas ideias de Martins Melo (2014, p.509) “o aborto inseguro representa uma questão polêmica e desafiadora, que incorpora aspectos de justiça social em países de baixa e média renda, envolvendo uma complexa rede de fatores legais, econômicos, sociais e psicológicos”.
Simone Beauvoir (2016), apresenta algumas modalidades de aborto inseguro, normais para os anos quarenta, porém ainda possíveis de serem vistos, atualmente:
Na cidade, as mulheres auxiliam-se mutualmente. Mas nem sempre é fácil descobrir uma “fazedora de anjos” e menos ainda juntar a importância exigida; a mulher grávida pede socorro a uma amiga ou opera-se a si mesma; essas cirurgiãs ocasionais são muitas vezes pouco competentes; facilmente se perfuram com o gancho ou a agulha de tricô; um médico contou-me que uma cozinheira ignorante, querendo injetar vinagre no útero, injetou-o na bexiga, o que lhe provocou horríveis sofrimentos. Brutalmente executado e maltratado, o aborto, muitas vezes mais penoso do que um parto normal, é seguido de perturbações nervosas podendo ir até a beira do ataque epilético, provoca às vezes graves moléstias internas e pode desencadear uma hemorragia mortal. Colette contou em Gribiche a dura agonia de uma pequena dançarina de music hall entre às mãos ignorantes da mãe; um remédio habitual era, diz, beber uma solução concentrada de sabão e correr em seguida durante um quarto de hora: com tais tratamentos é muitas vezes matando a mãe que se suprime o filho. Falaram-me de uma datilógrafa que ficou durante quatro dias no quarto, banhada em sangue, sem comer nem beber, porque não ousara pedir socorro. (BEAUVOIR, 2016, p.285-286)
Um caso semelhante a experiência apresentada por Beauvoir (2016), ocorreu no Brasil, em 2018, quando Ingriane Carvalho, de 31 anos, abandonada pelo companheiro, faleceu em Petrópolis – RJ, ao tentar acabar com sua gravidez, de 4 meses, introduzindo um talo de mamona no útero. Ingriane estava na fila, a fim de conseguir realizar o procedimento de laqueadura, pelo SUS. Em julho de 2018, a mulher que lhe auxiliou no aborto fora presa, de acordo com matéria divulgada no portal Catarinas, por Paula Guimarães:
Em relato ao delegado titular da 105ª Delegacia de Polícia, Claudio Batista Teixeira, a mulher de 42 anos que teria ajudado Ingriane a realizar o abortamento, contou que a jovem a procurou depois de recorrer a um método mal sucedido. Após insistência da vítima, ela teria aceitado fazer o procedimento pelo qual cobrou R$ 300. “Ingriane estava chorando muito e comunicou que já havia tentado outras manobras abortivas, inclusive procurou uma senhora que colocou uma espécie de ferro nela, porém não resolveu”, diz trecho do relato nos autos. (GUIMARÃES, 2018, p.02)
Baseando nos ensinamentos de Martin Melo (2014), o caso acima citado, apresenta um desencadear de questões que abarcam um aborto inseguro qual seja: uma jovem, aflita por uma gravidez não planejada, que tem o desejo de interrompê-la. Caso Ingriane, que era de origem pobre, fosse de uma classe social mais alta, teria instrumentos para procurar clínicas em países onde o aborto é legalizado, bem como maneiras mais seguras de abortar. A narrativa da matéria sobre o caso ainda reforça o contexto socioeconômico da mulher que abortou e da mulher que ajudou no abortamento:
Ingriane chegou até a esta mulher por intermédio de um amigo próximo. A suspeita, também mulher negra, informou que o valor pago pela vítima foi utilizado para comprar alimentos para a casa. Ela tem uma filha de dez anos. Será julgada por um júri popular pelos crimes previstos nos artigos 126 e 127, respectivamente provocar aborto na gestante com o seu consentimento e aborto qualificado, quando resulta em morte, que pode levar a uma condenação de 20 anos de reclusão. (GUIMARÃES, 2018, p.02).
Segundo o relatório Abortion Worldwide (2017), os abortos inseguros, acontecem, ainda mais, em países de baixa e média renda, em que as normas são mais punitivas. Contudo, tal documento frisa que a simples mudança na legislação, em que pese seja importante, ainda não é suficiente, requerendo “vontade política e plena implementação da lei para que todas as mulheres - apesar da incapacidade de pagar ou da relutância em enfrentar o estigma social - possam procurar um aborto legal e seguro” (SINGH, 2017, p.05).
Desse modo, se não há garantia de que leis mais flexíveis garantam, por si só, um aborto mais seguro, se estas não implementarem políticas, serviços que as executem, leis mais restritivas também não inibem as práticas de abortamento, fazendo com que estas se tornem, cada vez mais, inseguras.
A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA, 2016), apresentou que, em que pese a prática seja ilegal no país, cada vez mais, mulheres tem usado métodos mais seguros para abortar. A pesquisa demonstro que 48% das mulheres que abortaram, afirmaram que o fizeram por meio do uso de medicamentos, e uma quantidade igual de mulheres, 48%, necessitaram de internação, a fim de que fosse possível findar a prática (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017).
Nesse sentido, segundo Martins Melo (2014) a diminuição da quantidade de abortos inseguros, atrela-se a elevação do abortamento por medicamentos, uma melhoria ao acesso a programas e informações de planejamento familiar, e métodos contraceptivos mais eficazes.
Um dos medicamentos mais usados, para a prática de aborto é o misoprostol, popularmente chamado de Cytotec, tal fármaco é usado, também, para induzir parto, prevenir úlcera estomacal, estancar o sangramento intrauterino. A OMS recomenta esse medicamento, para a prática de aborto seguro.
No Brasil, como será demonstrado na seção que segue, o abordo só é permitido em determinadas situações, previstas em lei. Contudo, o processo e a prática do abortamento no Brasil já é, por si só, uma experiência violenta que deixa marcas psíquicas, morais e físicas. Supõe-se que, muitas das razões pelas quais a mulher deseja abortar, acaba por coincidir com seu histórico de violência familiar, ou fora deste, por negligência do Estado, acabando o aborto há se tornar um dos meios usados para se findar tal ciclo de violência e abusos.
3.2. O aborto na legislação penal brasileira
O Código Penal vigente (de 1940, com reforma na parte geral em 1984) trata do assunto nos artigos 124 a 128. Não há distinção entre óvulo fecundado, embrião ou feto. A interrupção da gravidez extrauterina (no ovário, fímbria, trompas ou na parede uterina) ou da gravidez molar (formação degenerativa do óvulo fecundado) não configuram aborto, uma vez que o produto da concepção não atinge vida própria, embriologicamente falando.
A legislação sobre o aborto, dependendo do ordenamento jurídico vigente, considera-o como uma conduta penalizada ou despenalizada, atendendo a circunstâncias específicas.
O Código Penal Brasileiro criminaliza o aborto, com exceção aos casos de estupro e de risco à vida da mãe. Assim, para muitos, o aborto ainda é uma forma de homicídio, embora possa ser justificado em circunstâncias especiais.
Dessa forma, de acordo com o Código Penal, existem quatro formas de aborto, diferenciadas pela natureza do agente e pela existência ou não do consentimento da gestante, quais sejam: aborto provocado pela própria gestante; aborto provocado sem o consentimento desta; aborto provocado com o seu consentimento e, o aborto realizado pelo médico, os quais serão abordados um a um ao longo deste capítulo.
Este último, em determinadas circunstâncias, não é passível de condenação, tendo em vista as hipóteses nele inseridas, ou seja, o chamado aborto necessário para salvar a vida da gestante, o aborto terapêutico e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, também chamado de aborto humanitário ou piedoso em virtude da violência sofrida pela gestante, momento este em que é reconhecida a antijuridicidade do delito.
O Código Penal Brasileiro não pune os médicos que interrompem uma gravidez quando há risco de vida ou quando a mulher tem gravidez advinda de um estupro. A mulher grávida, que corre risco de morte com a gestação, ou que engravidou por ocasião de um estupro, não precisa procurar clinicas clandestinas, pois tem o direito de ser atendida na rede pública hospitalar.
Frise-se bem que, o que se discute no aborto é o bem jurídico ora protegido, ou seja, a vida do ser humano ainda em processo de formação.
Dentro desse contexto doutrinário, Nucci (2013) nos afirma que, aborto é a cessação da gravidez cujo início se dá com a nidação, antes do termo normal, causando a morte do feto ou embrião.
O produto da concepção (feto ou embrião), ainda não é uma pessoa, embora alguns doutrinadores assim o considerem, uma vez que há uma mera expectativa de que o feto ou embrião se desenvolva e venha a nascer com vida.
Assim, de acordo com Bitencourt (2012, p.959/960), deve-se fazer a distinção entre aborto e homicídio, conforme ele apresenta em sua doutrina:
Apresentam-se duas particularidades: uma em relação ao objeto da proteção legal e outra em relação ao estágio da vida que se protege: relativamente ao objeto, não é a pessoa humana que se protege, mas a sua formação embrionária; em relação ao aspecto temporal, somente a vida intrauterina, ou seja, desde a concepção até momentos antes do início do parto.
Dentre os sujeitos do crime, temos como no sujeito ativo do auto abortamento e no aborto consentido, a figura da própria gestante, uma vez que somente ela pode provocar em si o aborto, ou dar o consentimento para que alguém lhe provoque o abortamento. No aborto provocado por terceiro, independente de consentimento ou não, o sujeito ativo passa a ser qualquer pessoa.
Já como sujeito passivo, no auto aborto e no aborto consentido, temos o feto, ou para alguns, o produto da concepção, genericamente falando.
Existe ainda a possibilidade de dupla subjetividade passiva, sendo, nesse caso, a gestante, sujeito passivo no aborto provocado por terceiro, sem que tenha consentido. Nessa espécie de aborto, o feto e a gestante serão sujeitos passivos do mesmo crime.
3.3. Aborto e Violência: possíveis associações
Pesquisa realizada com mulheres pacientes de diferentes departamentos do hospital Metropolitan Boston (EUA) concluiu que “o aborto está fortemente associado à violência baseada em gênero, mesmo quando se ajusta para traumas de infância e características demográficas” (MCCLOSKEY, 2016, p.158, tradução nossa). O referido estudo abordou quatro diferentes formas de violência baseada em gênero: abuso sexual infantil; violência física em namoro na adolescência, violência praticada por parceiro íntimo e violência sexual fora de relação íntima, e mostrou que o efeito cumulativo das múltiplas formas de violência contra a mulher aumenta as chances de a mulher abortar.
A análise dos resultados também apontou que 40,9% das mulheres que declararam sofrer violência por parceiro íntimo (VPI) foram vítimas de abuso sexual na infância. Quando se trata de mulheres vitimadas na adolescência, que também sofreram abuso na infância, esse número é ainda maior: 56,9%. A maioria das mulheres que declararam ter sofrido abusos sexuais na infância e violência na adolescência passaram por relacionamentos violentos, mostrando uma tendência de perpetuação da vitimização ao longo da vida (MCCLOSKEY, 2016).
A VPI na idade adulta está associada a mais gravidezes indesejadas e abortos e desfechos adversos ao nascimento que se estendem à prematuridade neonatal, baixo peso ao nascimento e Unidade de Terapia Intensiva Neonatal. De acordo com um estudo de mulheres jovens que elegeram um aborto, 39,5% revelaram no ano passado VPI (MCCLOSKEY, 2016, 9.154, tradução nossa)
Entende-se, a partir dos dados apontados, que muitas vezes a violência na vida de uma mulher pode ser cíclica, iniciando por meio da violência doméstica praticada por qualquer pessoa de seu convívio permanente, como, por exemplo, pelo pai, tio, vizinho, passando futuramente às relações íntimas com o parceiro.
Outras pesquisas americanas, desenvolvidas por pesquisadores da Universidade da Califórnia, baseadas num estudo de coorte prospectivo chamado “Turnaway”, acompanharam por dois anos e meio mulheres que procuraram clínicas de aborto, mas que tiveram o procedimento negado devido à idade gestacional, em comparação com o grupo de mulheres que abortaram. Após análise do banco de dados de 30 clínicas de aborto norte-americanas, concluiu-se haver associação direta entre aborto e redução de violência física praticada pelo parceiro. Nesse sentido, o aborto induz, portanto, na diminuição de violência física pelo companheiro, ao passo que levar uma gravidez indesejada a termo pode resultar na perpetuação das agressões (ROBERTS, 2014).
O estudo também analisou como parceiros íntimos afetam na decisão do abortamento e nas suas consequências, e concluiu que são as mulheres quem geralmente tomam a decisão de interromper a gravidez, sendo levado em conta, para essa decisão, a qualidade dos relacionamentos, e o apoio dado pelo parceiro. A maioria das mulheres que relataram VPI buscou no aborto uma forma de acabar com o relacionamento abusivo, sem que houvesse coação do companheiro para que fosse mantida a gravidez (CHIBBER, 2014).
A conclusão de uma das pesquisas realizadas com dados do estudo “Turnaway” apontou preocupação com a crescente onda de restrições às políticas de abortamento nos EUA. O impedimento às mulheres à interrupção da gravidez pode ocasionar na manutenção destas em relacionamentos violentos, colocando-as em risco juntamente com os seus filhos, podendo gerar até mesmo efeitos nocivos à saúde (ROBERTS, 2014).
Nesse sentido, uma análise realizada pela London School of Hygiene and Tropical Medicine, em clínicas locais de aborto em Londres, buscou explorar a “conveniência e viabilidade de oferecer serviços de VPI dentro do atendimento ao aborto em um ambiente local” (KEKANA, 2016, tradução nossa). O serviço de prevenção à VPI em Londres já é ofertado em maternidades, com sistema de serviços integrados, conscientização, consultas, ações comunitárias, etc. O estudo apontou que as mulheres que vivenciam VPI e abortam não são identificadas nas clínicas de aborto e os profissionais que fazem o atendimento nessas clínicas não passam por treinamento, além de possuírem pouco conhecimento sobre as questões relativas à violência. Há certa preocupação em relação à estigmatização das mulheres que procuram clínicas de aborto como “vítimas de violência”, o que também não é intenção do presente estudo, dado os diferentes motivos para a busca da interrupção de uma gravidez (KEKANA, 2016).
Uma pesquisa qualitativa realizada no Brasil, pela UFMG, entre 2013 e 2015, buscou compreender aspectos motivacionais e o processo de tomada de decisão de mulheres que realizaram aborto clandestino.
Segundo Beraldo (2017, p.1154), o estudo mostrou que o processo de decisão do aborto envolve todo o contexto em que a mulher está inserida, profissional, religioso, afetivo, no entanto, há também um forte envolvimento do parceiro e a relação do casal. “O modo como o parceiro reage à notícia da gravidez (nos casos em que ele fica sabendo) exerce um impacto fundamental no processo decisório”. As pesquisadoras destacam também, que não há um único motivo para a decisão pelo abortamento, mas sim um conjunto de fatores inter-relacionados que tornam a gestação indesejada. O estudo aponta que
o ponto em que a ilegalidade do aborto mais afetou a experiência das mulheres entrevistadas foi no silêncio a respeito da questão. O medo de serem denunciadas fez com que grande parte delas compartilhasse muito pouco suas vivências. Dessa forma, o aborto tornou-se um tabu em suas próprias vidas, o que evita que ele seja ressignificado. Esse silêncio é estimulado, também, pelo estigma em torno do aborto. O fato de ser ilegal não foi citado nenhuma vez como um motivo para não fazer o aborto. As análises das entrevistas indicam que a clandestinidade não inibe os abortos, mas faz com que eles sejam feitos de forma mais insegura e que não se possa falar sobre o assunto (BERALDO; BIRCHAL; MAYORGA, 2017, p. 1155).
O silêncio, o medo e o impedimento às mulheres em ressignificarem suas próprias experiências também são formas de manutenção do domínio patriarcal instalado em nosso sistema.
Dentre os artigos selecionados, havia também estudos realizados na Nigéria, Bangladesh, França e Índia que relacionavam a VPI com a prática do aborto. O estudo nigeriano avaliou violências conjugais ocorridas nos 12 meses anteriores à pesquisa, a partir dos dados do Inquérito Demográfico de Saúde da Nigéria de 2013. A pesquisa apontou que as mulheres que sofreram violência física tinham 9% mais chances de abortar, e as que passaram por violências psicológicas tinham 33% mais chances (não houve distinção entre aborto espontâneo ou induzido) (BOLA, 2016).
O estudo realizado em Bangladesh foi transversal, e utilizaram dados da Pesquisa Demográfica de Saúde de Bangladesh de 2007, concluindo que a prevenção da VPI pode reduzir as altas incidências de abortamento induzido ou espontâneo no país (RAHMAN, 2015).
A pesquisa francesa, que foi realizada na região da Alsácia, investigou a violência conjugal e o aborto repetido. O estudo transversal realizado entre 2013 e 2014 concluiu que sofrer ou ter sofrido VPI é um fator de risco para o aborto, e é ainda maior em mulheres que buscam o abortamento repetido (PINTON, 2017).
Uma pesquisa realizada na cidade de Sivas, na Turquia, em 2011, investigou a relação da violência doméstica com o aborto espontâneo entre mulheres vitimadas durante a gravidez, e concluiu que mulheres que sofreram violência física tinham 2,5 vezes mais chances de sofrer um aborto espontâneo (NUR, 2014).
Um estudo transversal indiano, realizado em 2014, investigou as consequências da VPI, além do aborto em si, em mulheres da região de Bihar, na Índia. A pesquisa concluiu que as taxas de VPI em Bihar são muito altas e estão associadas ao aumento do risco de aborto espontâneo, morte fetal e complicações de saúde materna. No entanto, essas associações não se atribuem às mulheres de camadas mais pobres (DHAR, 2018).
Outro estudo, também realizado na Índia, analisou dados do Inquérito Nacional de Saúde da Família 1998-1999, a fim de que fosse investigada a associação entre violência e aborto espontâneo ou induzido, e o quanto a experiência do abortamento afetam outras experiências de violência física, sexual e verbal. Concluiu-se que
mulheres que sofreram violência física têm chances significativamente maiores de relatar aborto induzido subsequente, ao passo que as mulheres que tiveram um aborto induzido probabilidade significativamente maior de relatar violência sexual e verbal subsequente (STEPHENSON, 2016, p. 1642, tradução nossa).
A referida pesquisa traz à tona a probabilidade de a mulher sofrer novas violências subsequentes à pratica do aborto, além de aumentar inclusive as chances de reincidência da interrupção da gravidez. As violências podem ter ocorrido, neste caso, em qualquer época da vida, por pessoas de seu próprio convívio. Em estudo qualitativo realizado no Brasil, com mulheres internadas em Salvador- BA que induziram aborto, constatou-se que a maioria das entrevistadas era negra, com baixa escolaridade, além de apontar que o cotidiano dessas mulheres “foi permeado pela vivência de violência doméstica, durante sua infância e adolescência, marcada pelo abandono e rejeição por parte da família” (COUTO, 2015, p. 266). A pesquisa conclui que as mulheres que se inserem precocemente na vida adulta, com vivência da sexualidade desprotegida, tendem a resultar em gravidez indesejada e aborto.
A violência contra a mulher e a prática do aborto no Brasil atingem mulheres de todas as classes, raças, idades e religiões, todavia, há um perfil sociodemográfico de vitimização maior que outros, geralmente de mulheres negras, pobres e de baixa escolaridade.