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Incompetência relativa:

exceções à regra da impossibilidade de conhecimento de ofício

26/11/2006 às 00:00
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RESUMO: A regra a respeito da incompetência é a de que a absoluta deve ser conhecida de ofício pelo Juiz, enquanto que a relativa somente pode ser conhecida pelo magistrado depois de argüida pela parte através de exceção. Entendemos que a incompetência relativa não deve ser tratada com um obstáculo intransponível para o conhecimento de ofício pelo juiz, nem pode ser, por outro lado, um ato de liberalidade do mesmo. Para nós, a incompetência relativa pode ser conhecida de ofício pelo juiz quando a própria lei assim determinar. Esse o objeto de nosso estudo.

PALAVRAS-CHAVE: JUIZ, MATÉRIAS, ARGÜIR.


1- INTRODUÇÃO

Há casos em que o interesse público recomenda a fixação de regras de competência que não podem ser alteradas, sob pena de grave prejuízo ao funcionamento do Judiciário; há outros em que razões imperativas dessa ordem não estão presentes, devendo ser preservadas a liberdade das partes e a comodidade de seu acesso à justiça. [01]

Com base em tais critérios, a competência é classificada como sendo absoluta e relativa.

A incompetência absoluta deve ser declarada de ofício pelo Juiz (art. 113 do CPC). A incompetência relativa somente pode ser argüida pelas partes através de exceção (art. 112 do CPC), caso contrário, ocorrerá o fenômeno da prorrogação de competência (art. 114 do CPC). Tal definição, todavia, é motivo de debates na doutrina e jurisprudência, como veremos a seguir.


2- POSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO DE OFÍCIO DA INCOMPETÊNCIA RELATIVA

A corrente dominante, que conta com adeptos do porte de BARBOSA MOREIRA [02] e CÂNDIDO DINAMARCO [03], sustenta que a lei não confere ao juiz o poder discricionário de reconhecer a incompetência relativa, face ao contido no artigo 114 do Código de Processo Civil, aplicável à luz do artigo 112. E isto porque as regras de determinação da competência relativa atendem precipuamente ao interesse das partes, não sujeito à discricionariedade da autoridade judiciária, sendo ainda certo, à luz dessa premissa, que à parte cabe com exclusividade a faculdade de excepcionar a incompetência relativa, até mesmo porque o ajuizamento da ação no foro ou no juízo relativamente incompetentes poderá redundar em uma situação de vantagem para qualquer dos sujeitos parciais da relação processual em decorrência da prorrogação da competência. [04]

Não valeria, por outro lado, segundo a corrente ora em estudo, o argumento de que só caberia tal reconhecimento em se tratando da hipótese do artigo 114, visto que a lei não traça qualquer distinção, nesse particular, ao cuidar das duas causas de prorrogação voluntária da competência, devendo ser desprezados, finalmente, argumentos de caráter pragmático, pois em [05]"um regime de direito escrito, de legalidade processual estrita, não se pode deixar ao magistrado a faculdade de aceitar ou não o processo segundo a sua própria comodidade". [06]

A Súmula nº 33 do Colendo Superior Tribunal de Justiça dispondo que "A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício" veio a confirmar a prevalência da tese defendida pela supracitada corrente.

Adotando tese exposta, LOPES DA COSTA, citado por MONIZ DE ARAGÃO, sustenta enfaticamente a possibilidade de o juiz declinar de ofício sua incompetência relativa, afirmando que "No Brasil, lei alguma proíbe aos juízes declarar de ofício a incompetência relativa; tampouco os compele a aceitar passivamente a prorrogação da competência, por ser relativa. O que não se lhes consente é deixar de fazê-lo no primeiro momento em que atuem no caso, ao apreciar a petição inicial, pois aí se firmará a prorrogação, que ficará a critério do réu obstar." E mais adiante assevera:"Ajuizada ação com infringência de norma de competência territorial, poderá o juiz, no primeiro ato a praticar, que é a apreciação da petição inicial, recusar de ofício a competência, como ficou visto no nº 192, pois, do contrário, precluir-lhe-á a faculdade e a regra da competência, que nesse preciso momento comportaria o tratamento dispensado à nulidade relativa, passará a subordinar-se unicamente aos princípios que regem a anulabilidade, ou seja, apenas o réu poderá impugnar a infração ocorrida, desde que o faça na forma e no prazo dos arts. 297 e 304, sob pena de perder a faculdade de fazê-lo, completando-se a prorrogação: a anulabilidade desaparece e o vício está sanado pela ausência da condição resolutiva." [07]Tal posição é compartilhada por HÉLIO TORNAGHI [08] e MENDONÇA LIMA. [09]

O já extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo chegou a adotar tal entendimento, com a edição da Súmula nº 28, com o seguinte enunciado: Pode o Juiz declarar de ofício da incompetência relativa, desde que o faça em sua primeira intervenção no processo.

A Câmara Especial do Tribunal de Justiça, à qual compete julgar, enquanto derivadas de incidentes autônomos, todas as questões envolvendo competência, seguia a orientação de que o juiz poderia reconhecer de ofício a incompetência relativa, desde que não houvesse ainda praticado ato que o vinculasse ao processo; cessaria tal faculdade, no entanto, se já operada a prorrogação da competência por força do artigo 114 - até porque, a essa altura, o juiz estaria vinculado ao processo. [10]

Inobstante a existência das duas correntes acima elencadas, capitaneadas por expoentes do nosso direito processual, entendemos que nem a incompetência relativa deva ser tratada com um obstáculo intransponível para o conhecimento de ofício pelo magistrado, como pretende a primeira corrente, nem que tenha o magistrado ampla liberdade para conhecê-la de ofício, desde que o faça na primeira oportunidade em que atuar no processo, como defendido pela segunda corrente. Para nós, a incompetência relativa pode ser conhecida de ofício pelo juiz quando a própria lei assim determinar. Portanto, a regra é a de que realmente o Juiz não pode conhecer de ofício a incompetência relativa, todavia, tal regra comporta exceções, como as que citaremos e brevemente analisaremos no presente estudo.


3- DA INCOMPETÊNCIA RELATIVA EM RAZÃO DO TERRITÓRIO

Segundo Humberto Theodoro Jr., existem "exceções à relatividade da competência territorial, por ressalvas feitas pelo próprio legislador. Assim, embora se trate de competência de território, são imodificáveis (...)" [11], conhecíveis de ofício, portanto.

Desta forma, somente podem ser citadas as seguintes exceções à regra de que o juiz não poderia conhecer de ofício a incompetência relativa em razão do território, quais sejam:

a)As ações imobiliárias relativas a direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova (segunda parte do art. 95 do CPC);

b)As ações em que a União for autora, ré ou interveniente (art. 99 do CPC);

c)As ações de falência, em que o foro competente deve ser aquele onde se encontra situada a direção da empresa, de onde parte o comando de seus negócios, onde se situa o centro das suas principais atividades (artigo 7º, da Lei de Falências); e,

d)A situação que era excepcionada pela doutrina e jurisprudência, em contratos pertinentes à relação de consumo, em casos de contrato de adesão, onde a fixação de foro diverso daqueles previstos em Lei criasse obstáculo ao direito de ação, ou ao exercício do contraditório e da ampla defesa do consumidor. A entrada em vigor da Lei nº 11.280/06 veio reafirmar esse posicionamento, acrescentando o parágrafo único ao art. 112 do CPC, dispondo que a nulidade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz.

Desta forma, dentro dos exemplos acima citados, deve o juiz conhecer de ofício a sua incompetência em razão do território, mesmo sendo esta relativa.


4- DA INCOMPETÊNCIA RELATIVA EM RAZÃO DO VALOR

A competência em razão do valor era tida como absoluta. Não o entende, assim, porém, a moderna doutrina processual; e algumas legislações dão o caráter de relativa, para alguns casos, a essa forma de competência. [12] Segundo JAEGER, dá-se hoje importância relativa ao valor da causa, sobretudo porque são adotados critérios aproximativos e empíricos para o seu cálculo. Ademais, prevalecem sobre a competência em razão do valor as exigências do simultaneus processus. Uma causa de pequeno valor deve ser processada e julgada com a de maior valor (embora atribuídas respectivamente a juízes diversos), quando conexas. [13]

O vigente Código de Processo não derrogou o princípio de que a competência em razão do valor é absoluta para o mais e relativa para o menos. [14]

Ademais, convém ressaltar que, o critério objetivo de fixação de competência em razão do valor leva em consideração o valor atribuído pelo autor à causa na inicial, uma vez que se trata de requisito obrigatório desta (arts. 259, caput, e 282, V, ambos do CPC). Mesmo quando a causa não tem valor econômico imediato, o valor da causa é obrigatório (art. 258 do CPC). Impugnado pelo réu o valor dado à causa na inicial do autor, ao juiz caberá determiná-lo (art. 261 do CPC). Não havendo impugnação presume-se aceito o valor atribuído à causa na petição inicial (art. 261, parágrafo único, do CPC).

Uma hipótese de influência do valor da causa sobre a competência recursal ocorre com os executivos fiscais de pequeno valor, já que a impugnação da sentença não será endereçada ao tribunal de segundo grau, mas ao próprio juiz prolator da decisão (Lei nº 6.830, de 22.09.1980, art. 34, § 3º). [15]

Pois bem, os dois exemplos clássicos utilizados pela doutrina como exemplos de competência com relação ao valor sempre foram os Tribunais de Alçada, nos estados em que existiam, e os Juizados Especiais Cíveis [16].

Ocorre que, com a Emenda Constitucional nº 45/04, os Tribunais de Alçada foram extintos, razão pela qual, o primeiro exemplo acima citado não pode ser mais empregado.

Ao analisarmos o segundo exemplo - Juizados Especiais Cíveis -, é necessário fazermos uma distinção entre o Juizado Especial Cível Estadual e o Juizado Especial Cível Federal, senão vejamos:

4.1- OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS

Os Juizados Especiais Cíveis Estaduais, segundo o art. 3º, I, da Lei nº 9.099/95, têm competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas aquelas cujo valor não exceda a 40 (quarenta) vezes o salário mínimo.

Ocorre que os Juizados Especiais Cíveis Estaduais também são exemplo de exceção à regra de que o juiz não pode conhecer de ofício a incompetência relativa, isso porque o magistrado que atua no Juizado, ao detectar que a causa não se encontra na hipótese do art. 3º, I, da Lei 9.099/95, extingue o processo com base no art. 51, II, da citada lei, reconhecendo de ofício, portanto, a sua incompetência - mesmo que de forma anômala, uma vez que a regra seria de remessa dos autos ao juízo competente.

Importante destacar que o procedimento dos Juizados Especiais Cíveis é facultativo para o autor, segundo corrente majoritária na doutrina e na jurisprudência [17], razão pela qual, não pode ser adotado como hipótese de competência absoluta.

4.2- OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS FEDERAIS

A Lei nº 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Cíveis Federais, dispõe em seu artigo 3º que "Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar suas sentenças."

Assim, à primeira vista, poderia parecer que os Juizados Especiais Cíveis Federais seriam exemplo de competência relativa em razão do valor.

Entretanto, os Juizados Especiais Cíveis Federais não podem ser utilizados como exemplo de competência relativa em razão do valor, eis que, o próprio § 3º, do artigo acima citado, determina que no foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial Federal, a sua competência é absoluta. Ora, se a própria lei dispõe que a competência dos Juizados Especiais Federais é absoluta, não podem ser os mesmos citados como exemplo de competência relativa com relação ao valor.

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Desta forma, por ser caso de incompetência absoluta, muito embora relacionada ao valor da causa que, em regra, seria relativa, o juiz deve conhecer de ofício a sua incompetência, uma vez que a própria lei assim o determina.


5- CONCLUSÃO

Conclui-se, portanto, que a regra é a de que a incompetência relativa não pode ser realmente conhecida de ofício pelo juiz. Todavia, tal regra comporta as exceções acima analisadas. Ou seja, a incompetência relativa pode ser conhecida de ofício pelo juiz desde que a própria lei assim determine.


6- BIBLIOGRAFIA

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, 10. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2004.

BERMUDES, Sergio. Introdução ao Processo Civil, 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Teoria Geral do Processo, 2. ed.São Paulo: Saraiva. 2003.

FILHO, Cármine Antônio Savino Filho. Direito Processual Civil Resumido, 4. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica. 2005.

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1.

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro, 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 1.

GRINOVER, Ada Pelegrini. Teoria Geral do Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais.

MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil, 2. ed. Campinas: Milennium. 1998.

MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil, 1. ed. Campinas: Millennium, 2000. v. 1.

NOGUEIRA, Gustavo Santana. Curso Básico de Processo Civil, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, v. 1.

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil, 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 1.

SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil, 11. ed. São Paulo: Saraiva. 2006.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1.

SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de Processo Civil, 6. ed. São Paulo: RT. 2002, v. 1.

TEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 1.


Notas

01 Marcus Vinicius Rios Gonçalves, Novo Curso de Direito Processual Civil, 3ª ed., v. 1, p. 57.

02 Pode o juiz declarar de ofício a incompetência relativa?, ‘in’ Temas de direito processual, São Paulo, Saraiva, 5ª série, pp. 63 a 76.

03 Declaração ex officio da incompetência relativa?, ‘in’ Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1986, nºs 234 e 235, pp. 375 e 376 e Direito processual civil, São Paulo, José Bushatsky Ed., 1975, nº 86, pp. 138 e 139.

04 Antonio Carlos Marcato, Site Jus navegandi. Endereço: http://jus.com.br/artigos/3351.

05 Antonio Carlos Marcato, Site Jus navegandi. Endereço: http://jus.com.br/artigos/3351.

06 CÂNDIDO DINAMARCO, Declaração ‘ex officio’ da incompetência relativa?, nº 233, p. 375.

07 1. Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, Rio, 2ª ed., 1976, vol. II, nº 192, pp. 188 a 191 e nº 348, pp. 331 a 334.

08 Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1974, vol. I, pp. 360.

09 A nova sistemática das exceções, Revista de Processo, vol. 2, pp. 61 a 76.

10 Antonio Carlos Marcato, Site Jus navegandi. Endereço: http://jus.com.br/artigos/3351.

11 Humberto Theodoro Jr., Curso de Direito Processual Civil, 22ª ed., v. I, nº 169, p. 178.

12 Cf. José Alberto dos Reis, Comentários ao Código de Processo Civil, 1945, vol. I, p. 251.

13 José Frederico Marques, Instituições de Direito Processual Civil, 2000, vol. I, p. 442.

14 Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, 1943, vol. II, p. 304.

15 Humberto Theodoro Jr., Curso de Direito Processual Civil, 41ª ed., v. I, nº 154, p. 157.

16 Gustavo Santana Nogueira, Curso Básico de Processo Civil, 1ª ed., tomo I – Teoria Geral do Processo, p. 96.

José Frederico Marques, Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., v. I, p. 370.

Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, 6ª ed., v. 1, p. 59.

17 Coordenadoria dos Juizados Especiais - XV Encontro Nacional de Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil (26 a 28 de maio de 2004 - Florianópolis – SC). Enunciados Cíveis: Enunciado nº 1 - O exercício do direito de ação no Juizado Especial Cível é facultativo para o autor.

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Sobre o autor
Rodolpho Randow de Freitas

advogado em Vitória(ES), professor universitário, mestrando em Finanças

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Rodolpho Randow. Incompetência relativa:: exceções à regra da impossibilidade de conhecimento de ofício. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1243, 26 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9208. Acesso em: 19 abr. 2024.

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